Livreiro e ex-operador de call-center, divide o seu tempo livre entra a leitura e o ativismo em terrenos como o sindicalismo ou o clima.

M: a crónica de uma fascização (não) anunciada

M - O Filho do Século é a história ficcionada da ascensão de Benito Mussolini, escrita por Antonio Scurati. Entre factos e ficção, traça a genealogia da construção do fascismo sobre a emoção e o ódio. E avisa-nos que poderá ser demasiado tarde quando se chegar a um consenso sobre o que é esta nova ultradireita.

Recensão
24 Fevereiro 2022

O ódio político urrado pelas bocas sensuais das mulheres e dos imberbes era pavoroso, incutia consternação e horror no tipo de homem adulto que tinha impulsionado a guerra. O motivo era muito simples. Àquele homem comerciante, autoritário, patriarcal, misógino, o urro antimilitarista e antipatriótico de mulheres e crianças deixava pressagiar qualquer coisa de aterrorizador e inaudito: um futuro sem eles.

 

Garcia Márquez, na sua Crónica de uma Morte Anunciada, constrói uma narrativa de forma contraintuitiva: nas primeiras páginas do romance é-nos revelado o final da história ― a morte do protagonista ―, obrigando autor e leitor a encontrar em outras subtilezas da escrita, e não na curiosidade sobre o desenlace, as formas de alimentar a narrativa. 

Algo semelhante acontece na obra de Antonio Scurati, M – O Filho do Século. Um leitor interessado conhece os traços gerais da origem, ascensão e declínio do fascismo italiano. A biografia do duce já foi largamente escalpelizada Mas, as oitocentas e cinquenta páginas deste volume inicial (o primeiro de três) impelem a uma leitura insaciável que nos conduz ininterruptamente calhamaço adentro.

Scurati consegue impor um ritmo narrativo que amarra os leitores ao galope da aceleração fascista, da humilde fundação dos fasci di combattimento à consolidação de Benito Mussolini no poder em 1925. É este o período coberto pelo primeiro tomo, publicado entre nós pela Asa há já dois anos. Agora que foi publicada a segunda parte, M – o Homem da Providência, ensaio aqui algumas notas de leitura sobre a primeira.

Ficção que historia a distopia

M é apresentado como uma biografia ficcionada de Mussolini. Porém, a fronteira que a separa da não-ficção é ténue. A cadência narrativa, que torna leves as quase nove centenas de páginas, revela a apurada técnica literária de Scurati, que rivaliza com a dos melhores romancistas. 

É a dimensão psicológica do livro que o ancora à não-ficção. Porque as suas bases históricas são sólidas: não há na narrativa grande espaço para invenção factual; os dias, meses e anos retratados são pormenorizadamente assentes em factos históricos; a geografia é detalhadamente verídica; a entremear os capítulos, o autor fornece elementos documentais ― excertos de notícias, de discursos ou de atas ― que asseguram ao leitor que não é a ausência de factualidade histórica que arruma M no terreno da ficção. É a dimensão psicológica do texto que o faz.

Antonio Scurati é investigador no Centro de Estudos de Linguagem de Guerra e Violência de Milão e doutorado em Comunicação, Oralidade e Retórica. Ora, este livro é um tratado nessas matérias. Mais: é possível que o autor, que inaugurou com este volume a sua produção ficcional, tenha concluído que tanto (ou mais) que as ciências sociais, é a literatura que melhor pode mapear os mecanismos que moldam essas aguçadas arestas do real ― a violência política, a guerra, a ideologia, a psicologia, o indivíduo e as massas.

É a densidade psicológica o traço distintivo desta obra. E ela só podia ser ficcionada, mesmo que apoiada em documentos históricos e pessoais, como são as cartas íntimas dos protagonistas ― sejam eles Mussolini ou o deputado socialista Giacomo Matteotti. Porque, para ultrapassar a superficialidade e penetrar eficazmente nas contradições da subjetividade, só as formas aprimoradas de exploração psicológica, que vão além das expressões externas documentáveis, são úteis. 

Só a literatura, na fronteira móvel entre a ficção e a não-ficção, pode triunfar neste combate: é esse o exercício virtuoso de Scurati em M. Nesta obra, a psicologia das personagens não é individual nem individualizada; ela é tratada como refração particular de uma psicologia de massas, como segmento particular de um tempo tenso, carregado, que encontra nas mentes dos protagonistas uma expressão última. Estes, por sua vez, respondem ao seu tempo agindo ― não só Mussolini, mas a sua amante Margherita Sarfatti, a sua némesis, Matteotti, o seu aliado-rival, o poeta Gabriele d’Annunzio, e muitos outros.

Só a literatura, na fronteira móvel entre a ficção e a não-ficção, pode triunfar no combate entre o facto histórico e as contradições da subjetividade.

M não é um mero retrato de um homem no seu tempo; nem de um tempo, através de um homem. Estas barreiras são, sim, diluídas pela pena de Scurati: o século e o seu filho são faces de uma só moeda. Assim, M é um tratado literário sobre a psicologia política da violência que inundou o pós-guerra europeu e desaguou na meia-noite do século: nas suas páginas, massas, indivíduos, ódio, morte e política amalgamam-se, lutando entre si, rumo ao abismo.

É para nos arrastar para essa tempestade alucinante que o autor nos captura desde as primeiras linhas. O seu estilo é despojado e intenso ― preciso, mesmo; é singelo sem ser pobre, poderoso, mas não pesado ― deste modo, a escrita de Scurati não apenas serve magistralmente o tema como se confunde com ele. Ritmo é o mote de M.

E, por tudo isto, considero indispensável a leitura de M – O Filho do Século. Vou, contudo, mais longe. Este é um livro ― uma série deles, na verdade ― publicado num espaço e num tempo concretos. Itália não foi só o berço do fascismo: é um viveiro e um laboratório do neofascismo contemporâneo.

Há semanas, à cabeça de uma turba que protestava contra as restrições sanitárias, os novos fascistas italianos atacaram a sede da maior central sindical do país. No próximo ano, anuncia-se uma crise de governo que parece fazer do presente arranjo de governo centrista um oásis conjuntural na luta das direitas radicais pelo poder; neste contexto, dois partidos da extrema-direita, a Lega e os Fratelli d’Italia, disputam entre si a pole position para o assalto ao poder.

Também hoje, a tensão do ódio e da violência política se acumulam nos ares, ameaçando a Europa com mais uma tempestade fascista. A Itália tem estado no olho desse furacão. M é também sobre isso: sem uma só referência, ou sequer insinuação, que demonstre qualquer intenção em fazer paralelismos históricos, esta leitura quase que nos obriga a fazê-los.

De alguma maneira, M não é só história ficcionada ― pode também ser lido como uma espécie de uma distopia histórica. Seria um erro ler este livro procurando transladar os acontecimentos da década de 1920 para os dias de hoje. Mas, ao lê-lo, mergulhamos num estudo de caso sobre o que já se chamou a psicologia de massas do fascismo e sobre a forma como esse turbilhão rasga o tecido social, permitindo que a política mais crua irrompa na forma de violência, ódio e morte. Podemos assim compreender melhor o combustível psicossocial do fascismo, armando-nos para o identificar não apenas retroativamente, mas sobretudo no tempo presente.

O ineditismo fascista…

Numa outra obra indispensável que nos chegou em 2020, A Era do Capitalismo da Vigilância, publicada pela Relógio d’Água, a socióloga Soshana Zuboff, apresenta-nos o conceito de ineditismo para descrever a paralisia global perante a ofensiva das novas formas de extração de dados. 

Para melhor explicar o que diz ser um novo tipo de capitalismo, Zuboff chama a atenção para a sua natureza emergente. O capitalismo de vigilância que Zuboff estuda é novo, mas não é um mero desenvolvimento linear de características já presentes no capitalismo tardio. O fascismo é igualmente emergente, ele não estava presente de forma germinal em nenhum sistema político precedente. Sistemas complexos, formados por elementos contraditórios que se combinam e chocam entre si, levam à emergência de fenómenos novos, imprevisíveis ― inéditos.

É esse ineditismo que explica que a estes fenómenos não se oponham no imediato as respostas rápidas e eficazes que, a posteriori, parecem evidentes: o que é inédito, por sê-lo, dificilmente é compreendido em todo o seu alcance no momento em que surge. Tampouco a dimensão das mudanças que acarreta tende a ser reconhecida: "A natureza inédita do capitalismo da vigilância permitiu-lhe eludir uma refutação sistemática, pois não é compreensível a partir de conceitos existentes".

M conta-nos uma história semelhante sobre a emergência original do fascismo. A besta, como uma mancha de óleo imparável, alastrava das margens para o centro, das cidades para os campos ― voltando, depois, destes para aquelas ― e do Norte para o Sul. Mas nem o poder político, nem o poderoso movimento revolucionário italiano vislumbraram a ameaça.

M é a crónica da incompreensão do fascismo pelos seus protagonistas e pelos seus adversários. Poucos conseguiram entender o significado da avalance mussolinista.

As massas que combatiam a ascensão fascista não alcançavam a gravidade da ameaça com que mediam forças; menos ainda o faziam aquelas que assistiam passivamente ao duelo. Nem mesmo a crescente mole fascista se dava conta da incandescência histórica do fogo que ateava.

M é a crónica deste ineditismo: da incompreensão do fascismo pelos seus protagonistas, mas, sobretudo, pelos seus adversários. Poucos, muito poucos, perceberam o significado da avalanche mussolinista no momento em que ela se dava, pelo que ninguém soube levantar-lhe uma resistência à altura.

E isso fica mais evidente nos sucessivos relatos, quase anedóticos, sintomáticos, das reações dos socialistas e comunistas que se enfrentaram com Mussolini nesses anos iniciais. Ao longo do livro, Scurati apresenta-nos a figura do socialista de esquerda, maximalista, Nicola Bombacci. 

Antigo professor primário e colega do futuro duce (que foi também socialista), Bombacci é conhecido como "Cristo dos operários": benevolente e compassivo, calmo e carismático, promete a inevitabilidade da vitória revolucionária, passivamente aguardada como um céu que desceria à terra. A serenidade deste profeta milenarista de um socialismo anunciado aparece-nos inicialmente como sinal de força e de confiança ― mas vai se esvaziando perante a crescente onda fascista, que, ao substituir a mobilização pacífica pela bala e pela moca, revela como anedótico o frágil profeta.

Se Bombacci era a voz dos socialistas ditos centristas ― que ficaram a meio caminho entre a moderação reformista e o comunismo radical do recém-fundado Partido Comunista ―, o ultrarrevolucionário Bordiga não foi tratado como sendo mais eficaz. Nem por Scurati nem pela história. Quando uma delegação das várias fações marxistas italianas ― os maximalistas de Bombacci e os comunistas de Bordiga ― viaja a Moscovo e estes líderes são entrevistados por Lenine, são pedidas, ao chefe dos comunistas italianos, informações sobre a situação no país.

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M - Mussolini - O filho do século, de Antonio Scurati. Edições ASA

"Bordiga alude à questão das relações com o Partido Socialista italiano, mas Lenine interrompe-o. Não tem tempo para essas discussões. Quer saber o que se passa com os fascistas em Itália. Bordiga, obediente, expõe os factos, repete análises e juízos já expostos. A dado momento, o grande homem interrompe-o e pergunta o que pensam os operários e camponeses destes acontecimentos. Bordiga, o chefe dos comunistas italianos, fica embasbacado, como o estudante apanhado de surpresa por uma pergunta que não esperava." Entretanto, enquanto se desenrolava este inquérito moscovita, começava a marcha sobre Roma.

Ainda que sob vestes distintas, o radicalismo pueril de Bordiga, que o levava a desprezar o fascismo, expressava a mesma apatia das fações socialistas mais moderadas perante o ineditismo fascista. Não por acaso, foi Bordiga o autor da asserção que assegurava que social-democracia e fascismo não eram oponentes, mas gémeos ― ideia mais tarde apropriada por Josefa Estaline e que, assumida pelos comunistas alemães, levou à mesma desorientação perante a ascensão nazi. Vladimir Lenine parecia ser dos poucos a intuir o perigo do novo movimento contrarrevolucionário ― mas estava já fraco e doente; e Moscovo longe e cercada.

Em M só o trágico Giacomo Matteotti, jovem líder do socialismo reformista, parece, após uma desorientação inicial, entender a ameaça mortal representada pelo avanço do rolo compressor fascista. Matteotti alerta camaradas e trabalhadores; denuncia insistentemente Mussolini. A queda deste deputado heroico percorre o livro, simétrica, em sentido oposto, à elevação de Mussolini.

Matteotti personifica o fatalismo clarividente. Como a presa hipnotizada pelos faróis do bólide que a atropelará, o socialista é um Quixote que se lança de peito aberto contra o fascismo, armado apenas com o verbo. É o seu assassinato que vai marcar o ápice da ofensiva fascista, assinalando a consumação contrarrevolucionária: a Itália que desperta horrorizada pelo assassinato político descobre-se impotente, já nas mãos de Mussolini. Nesse momento, o fascismo já está no governo e prepara-se para, a partir daí, subverter a frágil democracia que por dentro e por fora.

É a partir do Governo que Mussolini investe definitivamente sobre o Poder. E é nesse momento que Scurati encerra o primeiro livro da série. A subida de Mussolini ao poder está concluída, o caminho de sangue e de ódio é evidente, e  irreversível. O ineditismo fascista garantiu que a dimensão da catástrofe só pudesse ser encarada em retrospetiva.

… e a sua psicologia

Não é apenas na descrição do ineditismo fascista que reside a originalidade de M. O tratamento literário da dimensão psicológica e mesmo psicossocial deste fenómeno é o que faz dele um contributo imprescindível. É a capacidade de descrever a dimensão subjetiva desta corrida para o abismo que resultam em grande literatura ― e é só por sê-lo que M consegue cumprir esta tarefa, abarcando as contradições e subtilezas da psicologia política de tal forma que as ciências sociais não poderiam fazer. Qual é, então, a psicologia do ineditismo fascista?

A paralisação fatalista dos inimigos de Mussolini, perante a sua irrupção galopante, não resulta do talento maquiavélico daquele ― ainda que Scurati não esconda esse pérfido talento político. É, em grande medida, o oposto que sucede, de um ponto de vista racional: o ineditismo nasce da ignorância, não do cálculo. A sua razão é a emoção ― e nisso assenta a sua força.

Mussolini, como é sabido, foi um propagandista destacado do Partido Socialista Italiano e dirigiu mesmo o seu jornal, o Avanti!. Contudo, entrou em choque com o partido por defender, contra a maioria socialista, a entrada de Itália na Grande Guerra. Tornou-se a voz mais sonante da esquerda intervencionista e fundou um movimento para dar corpo a essa corrente. Isto valeu-lhe o desprezo da elite socialista que nunca confiara naquele plebeu grotesco e que aproveitou para o expulsar das fileiras partidárias.

O jornal intervencionista que Mussolini fundou, Il Popolo d’Italia, e os primeiros fasci não se viam, nem eram vistos, como sendo de direita: apresentavam-se como patriotas, mas revolucionários. A sua verve era populista e anticapitalista e a sua base social composta de gente pobre, marginalizada e desclassada. Este perfil atraiu rapidamente os veteranos da guerra sem emprego nem reconhecimento entre o povo socialista que condenava a guerra pare eles heróica. O primeiro projeto de Mussolini e dos fasci era o de federar a esquerda intervencionista, para se candidatar contra a direita e os socialistas.

A paralisação dos inimigos de Mussolini não resulta de um plano premeditado ou do talento maquiavélico do ditador italiano. O seu talento foi fazer do medo, do ressentimento e da emoção, política.

Mussolini não sabia para onde ia, não tinha um plano estratégico para fundar uma nova ultradireita. A humilhação, sim, era a base da sua orientação: a forma como fora desprezado pelos ex-camaradas socialistas e o seu ódio de filho de operário à política oficial irmanava-o irresistivelmente às massas de veteranos, desempregadas e desprezadas, e às classes médias conservadoras, aterrorizadas pelo bolchevismo. O seu talento foi fazer disso política.

O seu sucesso resultou de descobrir nesses sentimentos o combustível necessário para o assalto ao poder. A sua arte, a de sacrificar todos os princípios a essa disputa, tenaz e obcecada. Mais do que socialistas, comunistas, liberais e conservadores, compreendeu o poder como o objetivo da política. E foi o primeiro a descobrir o medo, o ódio e a humilhação como forças propulsoras para o alcançar. Tal como hoje sucede.

Não obstante, pouco disto foi racional. Quase tudo foi intuição, ardor do ódio nascido da humilhação pessoal. As táticas de Mussolini na luta pelo poder nasceram de choques violentos com a realidade; e a estratégia fascista emergiu como consequência última, desesperada, mas consequente, dos ziguezagues táticos. Se o ódio movia as massas, a violência política era o resultado lógico ― e se a violência era o meio, o poder fascista seria o fim que dele irrompia.

A mestria de Scurati é a de condensar na psique do duce o turbilhão que abriu este caminho; a de, no retrato da decadente de Itália de então, descobrir as convulsões que a personalidade Mussolini decantava em política. E assim avança, possuído e possuindo o espírito do século: se tem de escolher entre ser de esquerda e patriota, escolhe a segunda hipótese, porque dela está mais perto o poder.

Se lhe dizem para optar entre a violência na rua e a disputa parlamentar, ele não o faz: usa alternadamente uma contra a outra. Se despreza os políticos oficiais e a burguesia que, por seu lado, o menosprezam a si, não hesita em passar de seu inimigo a aliado, para poder chegar a seu líder.

É nas relações com os que se lhe são próximos que Mussolini avança, por saltos, desvios e golpes, neste caminho de onde, inesperadamente até para ele, resulta o fascismo como fenómeno político. É o seu braço direito, Cesare Rossi, que insistentemente o leva a compreender a necessidade de casar a violência política com um perfil de ultradireita; é em Gabriele d’Annunzio, poeta nacionalista e herói de guerra, que se inspira e apoia para navegar na onda nacional-populista. É a sua amante, a intelectual burguesa Margherita Sarfatti, que o treina nos modos da elite, tornando-o apto para a seduzir e depois submeter e servir.

O fascismo é um movimento que, mesmo na mente do seu líder, não sabe para onde vai, nem quer saber. Por isso sempre surpreendeu e, por isso, venceu.

É ao reconstruir cirurgicamente esta dialética que Scurati nos revela a psicologia do ineditismo fascista: tirando os seus pressupostos visceralmente básicos ― a violência, o ódio e a ânsia pelo poder ―, a estratégia de Mussolini é improvisada, emerge da própria realidade para a subverter. Ele, com a sua mente histriónica e algo desequilibrada, traduz melhor que ninguém uma Itália em desespero, em que as massas populares agem nas ruas sem bússola nem objetivo. Como hoje, na Itália pré-fascista irrompem movimentos que não se explicam pela racionalidade tradicional ― não são de esquerda nem de direita, diríamos ― contrariando a ordem existente sem, à medida que a revolução socialista desvanece no horizonte, perspetivar uma nova.

Uma subversão sem emancipação, eis o combustível do fascismo que Scurati identifica. Em M, vemo-la na revolta nacional-populista que defende a anexação de Fiume (hoje Rijeka, na Croácia), hoje podemos encontrá-la nos protestos antivacinas ou nos coletes amarelos. Ele, Mussolini, dará corpo a essa revolta desesperada, e a nova ordem que dela resulta é ele mesmo. 

Scurati, ao diluir as fronteiras entre o pessoal, o social e o político, usando a literatura para desenhar um movimento psicológico total que Mussolini ― o seu e o histórico ― consegue deixar, explica-nos a força demolidora da ascensão fascista de forma nova. A força da sua rápida subida ao poder, vista a partir das coordenadas tradicionais, como são a racionalidade, a previsão estratégica e a coerência política, pode ser confundida com um plano político friamente gizado. Mas Scurati fornece uma nova régua para medir o fenómeno, desconstruindo esse equívoco.

O fascismo é um movimento que, mesmo na mente do seu líder, não sabe para onde vai, nem quer saber. Por isso sempre surpreendeu e, por isso, venceu. Mussolini talvez tenha compreendido essa sua força, talvez não ― Scurati não se preocupa em encerrar esse dilema ―, porém protagonizou-a; abraçou o seu ineditismo total, que o era também para ele, movido apenas pelo ódio e ânsia de poder. "Estamo-nos nas tintas": eis o grito de guerra que Scurati atribui as hordas fascistas. Nas tintas para o mundo, para o futuro, para a vida, mas não para a vitória.

O retorno do inédito

O retrato que Scurati faz do fundador do fascismo, neste primeiro volume da série M, permite leituras diversas. Este é um livro que tem um valor literário autónomo ― não exige do leitor uma reflexão política, como a que aqui teço, para se revelar magnífico. Mas tem também um valor político: pode fornecer novas coordenadas para entender o fascismo do tempo presente.

E, sobretudo, alerta que essas coordenadas valem tanto mais na medida em que não sejam vistas como tal: a bússola política tradicional não pode antever a irrupção do fascismo, menos ainda a dimensão da sua ameaça. O ineditismo é o que se repete no fascismo. Filho do século, ele não renasce no presente sob as formas do passado.

Esperar por uma categorização definitiva dos novos movimentos de extrema-direita é demasiado perigoso. O fascismo nunca esperou por certezas para levar o combate até ao fim.

A já gasta discussão sobre os termos que melhor caraterizam a nova ultradireita ― populismo, neofascismo, pós-fascismo, etc. ― arrisca-se a levar os seus debatedores ao beco em que Bordiga se viu quando interrogado por Lenine. Cair na figura do "estudante apanhado de surpresa por uma pergunta que não esperava" é o risco paralisante do analista. Parafraseando Shosana Zuboff, a natureza inédita do fascismo permite-lhe eludir uma refutação sistemática, pois não é compreensível a partir de conceitos existentes. 

Não será pela reencarnação dos traços do fascismo tradicional que o fascismo do tempo presente fará ― e faz ― o seu caminho, mas pela sua tendência a encarnar a psicologia social da catástrofe, de movimentos de ódio e desespero político que, por não terem um horizonte definido, se caraterizam pelo ineditismo. Ódio, violência e poder, subversão sem emancipação, eis o combustível da psicologia de massas do fascismo ― e ele está aí. 

Esperar pela categorização definitiva destes movimentos como fascistas para se lhes opor um combate à altura é demasiado perigoso. O que nos lembra Scurati é que Mussolini não esperou por certezas definitivas para, do outro lado, levar o combate até ao fim.