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Polícias Sem Lei:
o ódio de 591 agentes de autoridade

Por Filipe Teles e Pedro Coelho com Cláudia Marques Santos , Paulo Pena e Ricardo Cabral Fernandes - Consórcio de Jornalistas de Investigação

16 de novembro de 2022





Andreia, filha de Olga Araújo, sobrinha de Bruno, toma conta de uma das filhas do falecido ator. Beatriz, a filha de Candé, tem cinco anos e fala muito do pai. “Pergunta muito onde é que o pai está”, conta-nos a sobrinha, de 38 anos, que relembra o tio com carinho. “Éramos muitos chegados”, diz. “Era um gozão. Sempre com um sorriso bem grande.”

Qualidades que Beatriz herdou. “Tem a maneira do pai. Muito sorridente, brincalhona, gozona.”

Bruno Candé era “o orgulho da família”, que não percebe o porquê de o ator ser tão desprezado por elementos das forças de segurança no Facebook. Um dos polícias acusou Candé de ter um “aspeto medonho” e de causar problemas com a vizinhança . “O que posso dizer é que o Bruno não era medonho. O Bruno é africano, é corpulento, ele praticou desporto. O Bruno foi campeão de luta livre e ele nunca usou isso contra ninguém. Tenho a certeza que a pessoa que escreveu essa mensagem não o conhece”, indigna-se Olga.

Ao contrário do que apregoa a notícia, na publicação comentada pelo militar da GNR, o assassinato do ator não garantiu qualquer subsídio vitalício à família. “Nem aos filhos”, responde-nos Olga, que toma conta de Rubén, o filho do meio de Candé. “Não há nenhum subsídio, não há nada. A família está a ajudar a criar os filhos com os nossos meios. Sem a ajuda do Estado.”

Andreia, muito pelo contrário, enfrenta uma ação de despejo por parte da Gebalis. Quando decidiu acolher Beatriz, Andreia mudou-se para casa de Bruno Candé, onde também vive o companheiro. “Tenho um problema porque dizem que tenho de sair, que não tenho direito à casa. Mas a Beatriz é filha do falecido, do Bruno, que nasceu naquela casa. Tem o nome na ficha”, conta-nos a sobrinha. “Qualquer dia podem aparecer lá polícias para nos despejar e é muito mau para uma criança que passou e que está a passar pela dificuldade de não ter um pai.”

Bruno Candé e a família não são as únicas vítimas do ódio de membros das forças de segurança na rede social de Mark Zuckerberg.

Comportamentos contrários ao Estado de Direito, apelos à violência e à violação de mulheres, comentários racistas, xenófobos, misóginos e homofóbicos, simpatia pelo Chega e por outros movimentos de extrema-direita e saudosismo salazarista. Estivemos no Facebook dos profissionais das forças de segurança.

Olga Araújo é irmã de Bruno Candé, o ator negro assassinado em plena luz do dia na Avenida de Moscavide, no dia 25 de julho de 2020. Quem apelidou Olga e a sua família de “parasita” foram dois militares da Guarda Nacional Republicana. Entre vários insultos, acusaram a família de Candé de ter obtido um subsídio vitalício após o homicídio de Bruno.

Um grupo de investigadores digitais identificou 591 elementos das forças de segurança no Facebook

Estes profissionais reproduzem discursos de ódio e manifestam simpatia por ideais de extrema-direita

296 são polícias da PSP
e 295 são militares da GNR

fazem comentários e partilham publicações sobre conteúdos que desrespeitam os princípios mais básicos do Estado de Direito

Apelam à violência contra políticos, minorias, mulheres e alegados criminosos

O Consórcio de Jornalistas de Investigação analisou 3090 prints recolhidos pelos investigadores digitaiS

Os agentes da autoridade estão impedidos de fazer declarações que atentem contra a legalidade democrática, seja em que fórum for. “Outro aspeto a que temos estado particularmente atentos é a interação nas redes sociais. Não queremos que um agente de autoridade em serviço, que tem de ter um comportamento compatível com o Estado de Direito, nas redes sociais defenda valores que são contrários a esse Estado de Direito”, diz Anabela Ferreira.

O Movimento Zero, um movimento sem rosto, criado em maio de 2019, ficou conhecido aos olhos do grande público na manifestação de novembro do mesmo ano, onde André Ventura foi ovacionado pelos polícias. E onde os manifestantes ostentaram o gesto “zero” com as mãos, associado a movimentos de supremacia branca: um símbolo que ficou conotado com “white power [poder branco]”.

Foi pouco depois que Anabela Ferreira apresentou o Plano de Prevenção de Práticas Discriminatórias nas Forças de Segurança, em julho de 2020. “Fazemos a monitorização da intervenção de agentes da autoridade nas redes sociais”, assegura a inspetora-geral da IGAI. “Sempre que verificarmos que há comportamentos discriminatórios, obviamente que agiremos em sede disciplinar.”

Anabela Ferreira, contudo, não crê que o problema do racismo e da xenofobia afete as forças de segurança no seu todo. Que a questão seja estrutural. “Tenho boas razões para concluir que não está suficientemente implantado”, defende.

Anabela Cabral Ferreira assumiu o comando da Inspeção Geral da Administração Interna, conhecida como a “polícia das polícias”, num período em que as forças de segurança estavam envoltas em acusações de racismo estrutural e em que muitos ativistas, investigadores e instituições internacionais denunciavam que os profissionais das forças de segurança eram afetos aos ideais de extrema-direita.

Passara-se, por exemplo, o caso da Esquadra de Alfragide, onde oito agentes foram julgados e condenados por agressões, injúrias e sequestro contra seis cidadãos negros, residentes na Cova da Moura. O primeiro desfecho deste processo havia espoletado, em 2019, a criação do Movimento Zero, um movimento anónimo de polícias nas redes sociais.

“As forças de segurança são a autoridade do Estado. São a expressão da soberania do Estado, por isso, quem defenda ideias racistas, xenófobas, homofóbicas, em qualquer das vertentes da discriminação, não é bem-vindo nas forças de segurança”, defende a inspetora-geral da IGAI, Anabela Ferreira. “É o suficiente existirem alguns casos para que esse problema nos preocupe”, garante.

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Anabela Ferreira é inspetora-geral da IGAI desde julho de 2019.

Recolhemos operacionais das Forças de Segurança em todos os distritos

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Os investigadores digitais que nos entregaram a base de dados entraram em vários grupos fechados, muitos dos quais são compostos apenas por profissionais das forças de segurança.

Foram aos confins de grupos como o GNR - Só Camaradas, Polícias - Profissão de Risco, Pela PSP, PSP-Portugal, Forças de Segurança, Profissão de risco, GNR-Portugal e GNR - Apenas GNR, entre outros. Tiveram a ajuda de profissionais das forças de segurança preocupados com o que viram nestes espaços.

No ecossistema destes grupos, abundam as notícias sobre questões laborais da classe e sobre medidas do Ministério da Administração Interna, os polícias partilham informações sobre candidaturas a cargos, sobre formações específicas para polícias, e, sobretudo, partilham as suas frustrações laborais e rancores financeiros.

Muitos partilham – não só nos grupos privados – conteúdos do Notícias Viriato e do Invictus Portucale, sites e páginas de propaganda de extrema-direita que publicam notícias falsas e descontextualizadas.

Mas quando se partilham notícias sobre alegados crimes, os ânimos dos polícias fervem.

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“BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO"
A expressão está muito presente nas redes dos polícias.
“BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO"
Parecem inspirar-se no sargento Gilson Fahur, um polícia militar reformado do estado do Paraná.
“BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO"
Hoje, Fahur é deputado federal pelo partido Social Democrático.

Nas areias movediças do ódio, dos insultos racistas, misóginos e homofóbicos, da desinformação e da mentira pura que vimos fluir nestes grupos, encontram-se muitas referências a figuras públicas. Sobretudo quando são mulheres, rostos conotados com a esquerda política ou pessoas racializadas.

A primeira ministra da Justiça negra em Portugal, Francisca Van Dunem, é uma dessas personalidades. Recentemente jubilada como juíza do Supremo Tribunal, Van Dunem surpreende-se com o número de polícias que identificámos. “É muita gente”, diz.

Faz um alerta e nota contradições quanto ao comportamento que estes polícias demonstram nas redes sociais. “As forças de segurança integram um sistema de segurança interno, que se destina à proteção dos cidadãos”, alerta a antiga ministra. “É completamente contraditório e não faz qualquer sentido que, do sistema organizado para defender as pessoas, venham ataques” racistas e “incitamentos” à violência, critica.

Quem veste farda não vive num regime constitucional à parte, antes pelo contrário. “As forças de segurança também são da democracia e devem respeito à Constituição. Do ponto de vista da Constituição, e daquilo que são as regras do regime democrático, é absolutamente inaceitável que haja um discurso desse tipo”, continua a antiga ministra da Justiça, acrescentando que as forças de segurança não podem difundir discursos que apelam à “violência e à estigmatização em função de critérios que são absolutamente inadmissíveis.”

Todos os líderes sindicais da PSP e da GNR que entrevistámos condenaram o conteúdo dos comentários, posts e partilhas de que lhes falámos. Acreditam que estes quase 600 elementos das forças de segurança são uma exceção à regra - que muitos dos comentários que recolhemos são “desabafos” - e que não existe um problema transversal nas forças de segurança de racismo e de afeição a ideais contrários ao Estado de Direito democrático.

César Nogueira está há dez anos à frente da Associação Profissional dos Guardas, a principal associação profissional da GNR. “Isso é muito grave para uma força de segurança, quanto mais para as duas. Que credibilidade passamos para os cidadãos?”, questiona Nogueira. “Vão sentir que estão em risco, que não podem confiar em todas as polícias. São números que devem ser detetados e deve haver alguma ação por parte de quem nos tutela”, defende. “Acredito que muitos possam ser desabafos, mas para terem desabafos desses é porque sentem que alguma coisa está mal.”

A Associação Sindical dos Profissionais da Polícia é a maior organização sindical da Polícia de Segurança Pública. O líder deste histórico sindicato da PSP está a par de alguns comportamentos contrários ao Estado de Direito por parte de profissionais da PSP nas redes sociais. “O espaço público é um direito de cada um, mas não secundarizo os sinais de alguns comentários que não correspondem ao expectável para uma força de segurança”, começa por dizer Paulo Santos. “O racismo e outros comportamentos não têm que ver apenas com a PSP, têm que ver com a sociedade em geral”, argumenta.

O Sindicato Independente dos Agentes das Polícias, uma das estruturas que tem um assento à mesa das negociações com o Ministério da Administração Interna, é liderado por Carlos Torres. “Condeno plenamente essas situações, porque não são os meus ideais enquanto homem, polícia e líder sindical”, garante o homem que comanda o SIAP. “Eu falo do conhecimento que tenho. Não tenho conhecimento de nenhum elemento que trabalhe comigo [que tenha esse tipo de atitudes nas redes sociais]. Nunca verifiquei nenhuma situação dessas no dia a dia do trabalho.”

O vice-presidente de Carlos Torres está na base de dados. Mas não é o único dirigente ou antigo dirigente sindical na lista.

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Nuno Afonso é, hoje, um homem isolado no Chega. Mas houve tempos em que não foi assim - é o militante número dois do partido e foi chefe de gabinete quando Ventura era deputado único. O vereador foi a ponte entre o Movimento Zero e a formação de extrema-direita, uma relação que atingiu o seu auge na manifestação de novembro de 2019.

O antigo vice-presidente do Chega tem um palpite. “Grande parte dos elementos das forças de segurança serão apoiantes do partido”, conjetura. “Talvez mais de metade dos elementos das forças de segurança sejam apoiantes do Chega.”

A defesa das forças de segurança não foi mera convicção do Chega. “É uma questão estratégica. Se falarmos de elementos das forças de segurança, mais as suas famílias, mais amigos próximos, estamos a falar de muita gente.”

A polícia é das instituições mais respeitadas em Portugal e o apoio de quem a compõe foi fundamental para o partido de André Ventura se tornar aceitável aos olhos dos eleitores.

“Nós éramos um partido muito ostracizado pela comunicação social, mas também pela sociedade civil. Éramos vistos como racistas, radicais e xenófobos”, diz Nuno Afonso. “A normalização vem sempre da sociedade civil ou pelo reconhecimento dos outros partidos”, continua. "O facto de essa aceitação ter vindo das forças de segurança e, ainda por cima, de uma base tão alargada e abrangente, acabou por ser muito positivo para o partido e para essa normalização de que precisávamos.”

Já Paulo Santos, líder da ASPP, organização sindical tradicionalmente ligada ao PCP, não crê que os profissionais das forças de segurança sejam favoráveis à extrema-direita. “O que esses profissionais vêm verter nas redes sociais corresponde mais a estados de alma do que à aproximação ideológica a esses fenómenos”, alega.

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César Nogueira é presidente da APG/GNR desde 2012.

dos polícias na base de dados são simpatizantes do CHEGA

desses simpatizantes apelam ao discurso de ódio

apelam à violência

75,6%

75,2%

39,8%

Luís Filipe dos Prazeres Maria é o protótipo dos 591 polícias que habitam a base de dados. Dirigente número 433 da Organização Sindical das Polícias, este agente da PSP partilha posts a apelar ao assassínio de políticos, demonstra querer o regresso de António Oliveira Salazar e simpatiza com o Ergue-te (antigo Partido Nacional Renovador).

“Todos nós temos as nossas convicções políticas e religiosas”, justifica Pedro Carmo, presidente da OSP. “Ele [Luís Maria] publicamente contém-se e não expressa as suas ideias. Mas ele lê muito, é muito literário.”

O líder da OSP, chefe na esquadra de Cascais, atribui estes “desabafos” à precariedade. “Há pessoas que, face a determinadas situações, acabam por deixar fugir aquele nervo inicial”, justifica. “Mas ninguém instiga para que se faça alguma coisa”, continua Pedro Carmo. “As pessoas têm as suas filosofias pessoais, mas não é uma instigação direta às coisas, até porque ele é meu dirigente e, se assim não fosse, não estaria cá.”

A história de Luís Maria não se fica por aqui. Em 2011, segundo um processo que consultámos, este PSP incriminou um inocente.

Por um motivo aparentemente insignificante: uma pequena dívida de condomínio. Luís Maria, administrador do condomínio, armou uma cilada ao devedor, Mário Brites, que lhe podia ter custado o resto da vida.

Os ponteiros do relógio apontavam para as 21h15, no dia 30 de abril de 2011, quando Mário Brites e Luís Maria, por causa da pequena dívida de 1000€, alegadamente se envolveram num confronto físico, no Cacém. Após esta alegada contenda, Luís Maria acusou Mário Brites, que não ficou provada e que Brites contesta ter existido, de ter disparado com a arma para o ar, perto do pescoço do hoje dirigente da OSP. A arma pode ter sido disparada, porém, concluiu o tribunal de Sintra, longe do local onde ambos supostamente se confrontaram.

“Estive preso cinco meses”, lembra Mário Brites, que nos conta que Luís Maria ainda arranjou um exército de polícias para testemunhar a favor dele. “Perto de uns 23”, diz. “Mesmo assim, vá lá, não conseguiram provar nada em tribunal.”

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Luís Maria (à esquerda) reuniu com o Chega no dia 21 de junho de 2022.

Mário Brites esteve cinco meses preso.

Forçado a exilar-se em Antuérpia, Bélgica, depois de ter estado na cadeia, Mário Brites não quer mais voltar a Portugal, traumatizado depois do que se sucedeu. Perdeu tudo: a família, hipóteses de arranjar emprego, de ter uma vida digna no país.

Quando mostrámos a imagem que Luís Maria partilhou, onde o dirigente sindical partilha uma fotografia a dizer que se procura um sniper para disparar contra políticos, Mário Brites revolta-se. “Afinal de contas, o assassino não sou eu”, afirma. “Afinal o assassino é ele, uma vez que publica isso no Facebook”, acrescenta. “Um agente da PSP a dizer isso? Devia ter vergonha na cara.”

Luís Maria não é o único que faz estes “desabafos” contra políticos.

Ernesto Peixoto Rodrigues foi dirigente do Sindicato Unificado dos Polícias e candidato nas eleições europeias de 2019 pelo Basta, a coligação de direita populista liderada pelo Chega. É o administrador do grupo Polícias-Profissão de Risco. Cuidadoso naquilo que publica, atua como instigador e desencadeia ondas de insultos.

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Um dos mais consagrados constitucionalistas portugueses, Jorge Bacelar Gouveia, presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, vê o comportamento destes 591 profissionais das forças de segurança como uma autêntica bomba-relógio.

“Podemos ter a ideia de que não é motivo de preocupação por serem apenas 600 em 44 mil. Mas isso não é bem assim”, adverte Bacelar Gouveia. “Nem que fosse um: 600 é bastante nesse grande conjunto e, sobretudo, isso é muito preocupante”, alerta o constitucionalista. “Essas pessoas - a ser verdade - por enquanto ainda estão nas palavras, mas podem passar aos atos muito rapidamente.”

José Semedo, advogado negro, por outro lado, não é alheio à violência policial. Já foi vítima dela e, hoje, ajuda a defender muitas vítimas de racismo e xenofobia. Foi o advogado da família de Bruno Candé e das seis vítimas de agressões na Esquadra de Alfragide.

“Eu próprio já passei por situações em que colegas tiveram acesso a prints de polícias. Até já recebi um sobre mim, a dizer: ‘Deem-me dois minutos com esse advogado e eu mostro-lhe como é que as coisas são’”, conta-nos Semedo. “É diferente ser ameaçado por um polícia ou por um bombeiro. A ameaça torna-se muito mais real quando vem das forças policiais, pois têm ferramentas que lhes permitem saber onde vivemos, qual o nosso carro, o que falamos ao telefone”, nota o advogado. “E têm armas.”

O nome completo do agente que algemou e imobilizou Cláudia Simões, mulher negra, numa paragem de autocarro no Casal de São Brás , Amadora, em 2020, é Carlos Humberto Nascimento Canha. Este agente da PSP lembrou aos internautas, no Facebook, aquilo que José Semedo mais teme, meses depois da agressão a Cláudia Simões: que tinha uma arma.

Quando confrontámos Canha com a publicação, no seu mural (de acesso público), disse-nos que ia fazer “um auto de notícia” sobre a base de dados a que tivemos acesso.

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O Ministério Público, posteriormente, acusou Carlos Canha pelos crimes de ofensa à integridade física qualificada, sequestro agravado, abuso de poder e injúria agravada contra Cláudia Simões. A alegada vítima acusa este polícia de ter desferido socos e pontapés, no interior da viatura policial, que se deslocava para a esquadra, enquanto insultava: “sua filha da p***, preta, macacos, vocês são lixo, uma merda”.

As ações de Canha, todavia, foram amplamente defendidas nos grupos que os nossos investigadores visitaram.

A página oficial do Sindicato Unificado das Polícias, por exemplo, um dia depois da agressão, publicou uma fotografia das mãos de Canha (Cláudia Simões mordeu o agente enquanto era agredida), aludindo à possibilidade de Cláudia Simões ter doenças. “A defesa da cidadã está a começar a ser orquestrada pelo ódiomor de brancos”, lia-se na publicação, entretanto apagada.

Esta publicação foi alvo de um inquérito por parte da IGAI, que foi, entretanto, arquivado, revelou-nos a instituição. No arquivamento concluiu-se que não se pode “afirmar que a publicação efetuada” vise “difamar determinada pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor ou origem étnica”. E que “não foi possível apurar qual o autor da publicação”.

Na altura presidente do sindicato, Peixoto Rodrigues, por momentos, admitiu-nos ter sido o autor da publicação. “Eu recordo-me de ter proferido [essas declarações]. Agora, é preciso retirar qual o contexto desta minha afirmação. Como todos sabemos, uma mordidela de um ser humano pode causar problemas graves de saúde. Isso foi retirado do contexto e criou alguma celeuma.”

E depois lembrou-se. “Na altura, se me recordo, quando prestei declarações na IGAI, o nosso site tinha sido pirateado”, disse. “Ainda hoje estamos para perceber quem é que colocou lá essa imagem com essas declarações.”

A atuação de Canha, aliás, foi defendida pela própria direção nacional da PSP. Foi mesmo uma das primeiras tomadas de posição de Manuel Magina da Silva, que defendeu Carlos Canha no dia da sua tomada de posse como diretor.

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Na entrevista que nos deu para esta investigação, Anabela Ferreira, inspetora-geral da IGAI, confessou não compreender o comportamento do diretor nacional. “A PSP entende, no caso de Cláudia Simões, que o agente envolvido agiu de acordo com os deveres a que estava obrigado”, afirma Anabela Ferreira. “Eu confesso que nunca verá, da parte da IGAI, qualquer comunicado antes de um processo estar concluído. É importante por uma questão de transparência.”

A inspetora-geral da IGAI não tem papas na língua quando critica a direção nacional da PSP por “continuar a emitir comunicados” imediatamente depois do “acontecimento”. “Não me parece uma boa prática, venha de que força ou serviço de segurança for.”

A conferência que apresentou o Plano de Prevenção de Práticas Discriminatórias nas Forças de Segurança ocorreu em julho de 2020. Magina da Silva foi um dos intervenientes na conferência. Culpando as “discussões identitárias de base rácica e de género” pela “ampliação mediática” do escrutínio às forças policiais, colocou a polícia no topo da hierarquia das vítimas de discriminação: “Recusamos ser os bodes expiatórios”.

a análise que fizemos mostra que a PSP instaurou quase 29 mil processos aos seus profissionais entre 2006 e 2021

22 mil (77,8%) processos foram arquivados

820 (2,9%) resultaram em suspensão

226 (0,8%) tiveram como consequência a demissão

Dos 296 PSP identificados na base de dados

identificámos 212 que reproduzem discursos de ódio

O antigo presidente da comissão parlamentar para os Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias já teve melhor opinião da polícia. Para Pedro Bacelar Vasconcelos, a injustiça não justifica a ignomínia. “O facto de haver inúmeras razões sindicais e económicas não desculpa os comportamentos a que temos assistido, quer da parte de agentes, quer da parte das hierarquias.”

Quando foi governador civil de Braga, Bacelar Vasconcelos lidou com um caso feroz de racismo contra a comunidade cigana de Vila Verde. Elogia aquilo que diz ter sido o comportamento exemplar que a GNR teve na altura na defesa da comunidade. Hoje, pensa que a polícia, pelo menos parte dela, se afastou do caminho e enveredou por trilhos que não fazem parte do seu ofício. “A própria disciplina inerente ao funcionamento destes corpos acaba por assumir uma solidariedade corporativa, que faz com que, do topo da hierarquia, haja a tentativa de ocultar flagrantes violações daquilo que é a sua missão cívica”, reitera.

No entulho dos comentários de ódio, encontrámos afirmações violentas, difamações, ameaças. Quando este tipo de declarações se unem contra minorias, o teor das palavras dos polícias torna-se ainda mais feroz. A comunidade cigana é, por sua vez, uma das maiores vítimas dos comentários de ódio dos profissionais da base de dados.

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O Bairro das Pedreiras pode muito bem servir de metáfora para a condição histórica da comunidade cigana em Portugal: uma história de exclusão, opressão, miséria e vulnerabilidade. Aqui dominam as barracas, o entulho, as moscas. Quando este bairro foi construído, a Câmara de Beja ergueu um muro - já deitado abaixo - para separar a comunidade do resto do município: criou um autêntico gueto.

Mostramos alguns comentários dos polícias aos residentes. “Racistas”, comentam vários, indignados.

Cláudio, de 25 anos, é um dos dois ciganos que tem emprego no bairro. Empurrado para a pobreza pela sua condição étnica, faz o que pode para ajudar a comunidade. Enquanto nos mostra o bairro, aproveita para distribuir latas de tinta aos habitantes.

Cláudio é mediador da comunidade cigana do Bairro das Pedreiras

Ana Rita Alves traça o ano de 2006 como fundamental na institucionalização das representações antinegras e anticiganas e a sua vinculação à criminalidade. E esta institucionalização tem um território, as chamadas Zonas Urbanas Sensíveis. "A Diretiva Estratégica 16/2006 veio estabelecer um barómetro de classificação para o que seriam estas zonas sensíveis, para que se pudessem adequar os meios de policiamento", explica a investigadora do Centro de Estudos Sociais de Coimbra.

“São sensivelmente dez critérios para se perceber se a zona é sensível”, informa-nos Ana Rita Alves. “Um dos critérios utilizados para isso é a composição étnico-racial de determinado tipo de bairro, que depois pode ser considerado como estável, instável, muito instável ou pouco estável.”

A investigadora argumenta que este dado, por si só, é muito revelador. “Num país que teima estruturalmente em negar o seu racismo sistémico e o seu racismo institucional, parece-me que esta é a prova inequívoca”, diz.  

“Esta segunda geração de imigrantes, esta nova juventude, negra, vai ser rotulada como sendo culturalmente inadaptada”, continua Ana Rita Alves. “E, como tal, como tendo comportamentos desviantes e criminais.”

Os sucessivos governos têm culpa no cartório, na associação entre etnia e criminalidade, segundo a investigadora do CES. “Os Relatórios de Segurança Interna, quando falam de aumentos de criminalidade, vão atribuir os aumentos da criminalidade às ‘vagas de imigrantes’ provindas de países africanos e da Europa de Leste."

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Diana Andringa foi uma das jornalistas que realizou o documentário Era uma Vez um Arrastão, um caso em que a polícia perseguiu jovens negros na praia de Carcavelos por crimes que não existiram. Uma mentira amplamente reproduzida pela comunicação social.

Andringa recebe-nos em casa, num longo jardim. Sente-se frustrada por voltarmos a um tempo em que a afinidade por ideais de extrema-direita esteja novamente em voga. Afinal, lutou contra o Estado Novo.

“O facto de termos a extrema-direita institucionalizada, com deputados eleitos no parlamento, permite que a direita que existe na polícia se manifeste mais”, diz a jornalista. “Passaram a ter alguém que fala em nome deles e alguém que diz coisas que, mandava a boa educação, se esperava que não fossem ditas na Assembleia da República”, acrescenta Andringa. “E isso dá-lhes força.”

Não é só em Portugal que as forças policiais portuguesas amontoam críticas: desde 1997 que a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), do Conselho da Europa, cita problemas de racismo nas forças de segurança nos seus relatórios.

Mas no último relatório da ECRI, publicado em 2022, surge um alerta: o perigo da infiltração de movimentos supremacistas brancos nas instituições policiais.

“Temos visto, em vários Estados-membros, ideias nazis a serem refletidas na polícia. A linguagem racista tem sido usada entre vários membros da polícia nas redes sociais”, afirma Maria Marouda, delegada do Conselho da Europa, em entrevista ao Consórcio de Jornalistas de Investigação.

Dos polícias da base de dados mostraram afinidade por movimentos da extrema-direita marginal

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Encontrámos um polícia que disse que ia dar "banhos" a cidadãos romenos e à "ciganada"

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Mamadou Ba e Joacine Katar Moreira são amplamente Referidos pelos polícias da base de dados

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Mamadou Ba é a segunda pessoa mais referida nos 3090 prints que analisámos, a seguir a André Ventura.

O sistema imunitário do ativista do SOS Racismo, todavia, já está vacinado contra os comentários e mensagens de ódio de que é alvo nas redes sociais, pois é o epicentro de muitas ameaças racistas desde 2012. “Ninguém se devia habituar à indignidade, mas eu estou habituado”, admite. “Se eu não me habituar à indignidade do racismo, não terei forças para combater o racismo. É um jogo um bocado triste, mas é este é o jogo.”

Apesar de tudo, Mamadou Ba preocupa-se menos com o lado pessoal. “Tem impacto, evidentemente, porque sou uma pessoa e tenho uma família”, diz. “Mas a partir do momento em que pessoas com visibilidade, como é o meu caso, são o alvo desse tipo de ataques, significa que a expressão do ódio dentro das forças de segurança tomou uma dimensão institucional.”

A estruturalidade do racismo no país é, para Mamadou Ba, o que permite que este lamaçal de insultos prospere no baú dos grupos fechados das forças de segurança no Facebook. “A expressão do racismo nas relações institucionais é real e existe”, comenta. “Há um sentimento de impunidade porque os agentes – sejam da PSP, da GNR e até militares – sentem-se muito mais confortáveis por detrás de um ecrã, pois há uma impessoalização do espaço público em que estão.”

O tom dos comentários dos polícias não é, para Joacine Katar Moreira, qualquer surpresa, pois carrega aos ombros uma dupla condição que atiça ainda mais o ódio: é mulher e é negra. “Isto é algo que não me surpreende porque, durante toda a minha legislatura, fui alvo sistemático de discurso de ódio”, confessa.

Não passou muito tempo para Joacine Katar Moreira perceber que muitas das várias cavalgadas de ódio que recebia também vinham da parte de polícias. “Alguns elementos [contidos nas ameaças] remeteram-me para as forças de segurança, nomeadamente a alusão a armas”, diz-nos.

Diziam à antiga deputada que lhe iam “dar um tiro”. “Que me iriam enfiar a arma pelos órgãos genitais, que iriam meter a arma na minha boca”, conta-nos.

Acima de tudo, convergem Mamadou Ba e Joacine Katar Moreira, este ódio pode ter repercussões reais, fora dos limites dos ecrãs. “O que leva um agente a achar que pode sentar-se à frente do computador e atirar todos os insultos possíveis e imagináveis”, começa por dizer o dirigente do SOS Racismo, “é o que o levará a, quando encontrar um jovem menos preparado e com menos literacia jurídica, abusar dele, a violentá-lo. E depois terá a certeza de que ninguém vai saber aquilo que aconteceu.”

Para a ex-deputada não inscrita, no fundo, é o Estado que a ameaça. “As forças de segurança, como elementos do Estado, são, para mim, a sua face mais visível, a da força”, explica. “Se algo me acontecer, se eu for ameaçada, vou necessitar de segurança e só o Estado me pode dá-la. Mas ao mesmo tempo estou a ser ameaçada por membros da segurança deste mesmo Estado. Isto é muito sério.”

Os jornalistas e a comunicação social, por sua vez, também não ficam atrás nos comentários de ódio reproduzidos pelos policiais da base de dados.

A jornalista do Diário de Notícias Fernanda Câncio escreve sobre as forças de segurança desde a década de 1990. Os polícias, por isso, não lhe perdoam - e apelam à sua violação.

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O nome de António de Oliveira Salazar, entre os 3090 prints que analisámos, é o terceiro mais citado. O tom dos polícias salazaristas é de saudosismo para com o Estado Novo: pedem o regresso do ditador, elogiam o Portugal colonial, aplaudem a gestão das finanças públicas de Salazar, gabam o alegado país sereno e seguro que era Portugal durante o Estado Novo.

Alguns profissionais das forças de segurança pedem até o regresso da polícia política.

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Sente-se o cheiro a peixe regado com óleo de palma no ar, um prato feito por Olga, hoje cozinheira no Reino Unido. O sorriso de orelha a orelha e a simpatia com que nos recebe em sua casa é contagiante, apesar de o tema que nos leva ao seu lar ser tudo menos uma ocasião feliz.

Lembra Bruno Candé com carinho. “Era um jovem normal, que lutava para concretizar os seus sonhos. Alegre, muito bom amigo”, recorda Olga.

Bruno era um homem realizado, até um sobressalto interromper a sua caminhada de sucesso. “Um acidente que até hoje não foi esclarecido”, conta-nos Olga. “Ele estava a ir para casa de bicicleta, pelo que nos dizem foi uma queda. Mas a bicicleta estava intacta, e ele não tinha arranhões.”

A vida de Bruno, a partir desse momento, virou do avesso. “Perdeu a memória praticamente na totalidade”, diz a irmã. Pouco a pouco, Candé foi recuperando. Caminhava muito a pé, principalmente após um amigo lhe ter oferecido a Pepa, uma cadela, para colmatar a sua solidão. “Quando ele estava cansado sentava-se muito ali naquele local, onde há muitos cafés, muita gente a passear”, lembra Olga, referindo-se ao banco em que Candé se encontrava quando foi atingido com cinco tiros por um antigo combatente colonial, Evaristo Marinho.

Dias antes do assassinato, Bruno Candé e o seu homicida tinham-se envolvido numa discussão por causa de Pepa. Evaristo Marinho, de 77 anos, chamou o ator de “preto de merda” e mandou-o para a sua “terra”, apesar de Bruno Candé ter nascido em Portugal. “A tua mãe devia estar numa senzala”, proferiu, igualmente, Marinho, que admitiu os factos e foi condenado a 22 anos e nove meses de prisão.

O comportamento destes militares no Facebook, por isso, entristece Andreia, a sobrinha de Candé. “Fico triste porque eu nasci e cresci em Portugal. Tenho orgulho em ser portuguesa e é muito feio e triste ver pessoas da mesma nação a atacarem-se assim, sem saberem quem é a pessoa”, diz Andreia.

O facto de serem elementos das forças de segurança a atacar o tio agudiza a mágoa de Andreia. “Porque um polícia é para nos defender”, reitera. “Aqui ataca. E forte. O que magoa muito.”

A Magina da Silva foi colocada uma pergunta muito clara, numa entrevista publicada pela Renascença e pelo Público no dia 27 de outubro deste ano. Como se impede que elementos com ideais extremistas se juntem às polícias? Qual é o filtro? “No Facebook, nas redes sociais. É aí que se vê”, respondeu o diretor nacional da PSP.

Dos 591 profissionais das forças de segurança que identificámos no Facebook, da GNR e da PSP, 420 (71,91%) manifestam discursos de ódio; 246 apelam à violência ou fazem ameaças contra políticos, mulheres e minorias. Entre 2020 e 2022, disse-nos a PSP, foram instaurados 15 processos sobre o comportamento de elementos das forças de segurança nas redes sociais. Resultado: nenhuma demissão e apenas seis profissionais foram multados ou suspensos.

Existem, todavia, leis para prevenir que estes discursos, do ódio e da violência, proliferem no espaço público. “Pelo que me está a dizer [sobre o comportamento dos polícias], isso configura vários crimes: incitamento ao ódio, xenofobia, comportamento de coação sobre as mulheres. Tudo isso tem um enquadramento penal”, diz Bacelar Gouveia, constitucionalista. “São poucas as diferenças entre as palavras e os atos.”

No caso de Bruno Candé, o gelo fino que separa as palavras dos atos quebrou-se. E foi fatal.

A direção nacional da PSP, o Comando Geral da GNR e o Ministério da Administração Interna recusaram dar-nos uma entrevista

Alguns comentários e publicações foram levemente editados para uma melhor compreensão do leitor

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