Emigrantes Portugal

Fotografia: Lusa

Xenofobia em Portugal: Não é só denunciar, é preciso ter uma rede de apoio

Estudos afirmam que 75,4% pessoas imigrantes já sofreram algum tipo de discurso de ódio baseado em preconceitos e estereótipos sobre a imigração, em Portugal. Casos de xenofobia para com imigrantes brasileiros têm-se registado em grande escala nas redes sociais e nos serviços públicos.

Direitos humanos
9 Junho 2022

Na casa de Letícia Mendonça as ‘boas-vindas’ são feitas ao som de Chico Buarque. “Apesar de você, amanhã há-de ser outro dia”, ouve-se. Por toda a sala vêem-se pequenas recordações, bilhetes de viagem soltos e fotografias de família, onde os seus pais estão presentes. Era deles que falava e da sua chegada a Portugal quando bateram à porta. Juntaram-se à conversa, quando a jovem de 26 anos contava ao Setenta e Quatro o episódio de xenofobia e preconceito de que foi alvo, no trabalho, na passada quarta-feira.

“Um cliente veio falar comigo na receção do hotel, com segundas intenções. Recusando-me dar qualquer atenção, agarrou-me o braço e disse que, por ser brasileira, já estava acostumada a ir para o quarto de outros”, conta com indignação. Apresentou queixa, porque tinha um apoio no próprio espaço de trabalho, mas no ato da denúncia houve quem lhe dissesse que “a justiça de Portugal não defende imigrantes”.

Esta não foi a primeira vez que Letícia Mendonça vê a sua nacionalidade, sexo e género serem atentados. Uma outra situação que lhe vem logo à memória foi no dia em que chegou a Lisboa. “Normalmente, quando cá chegamos, há um misto de sensações: ou ficas feliz porque o serviço fronteiriço não te fez ficar horas retida ou começas a ficar desesperada pela espera.” No seu caso, a única coisa que sentiu foi medo. “Um funcionário perguntou-me quanto eu cobrava para sair com ele, assim não teria de ficar retida”, conta. Nessa altura, tinha 16 anos. Não conseguiu contar aos pais com receio do que pudessem fazer.

Com a pandemia “cresceram os discursos xenófobos contra as mulheres brasileiras em Portugal”, afirma a investigadora Ana Paula Costa. 

Vivem em Lisboa há cerca de dez anos e foi em Florianópolis, no Brasil, que deixaram grande parte da família com o intuito de dar uma vida melhor à sua filha. No entanto, não sabiam que isso implicaria episódios de discriminação e preconceito com o qual ela teria de lidar. Ainda assim, a história da jovem não aconteceu de forma isolada nos últimos dias.

Na mesma semana, verificou-se uma ocorrência de violência de um casal de nacionalidade brasileira, de 24 e 29 anos com um bebé serem violentamente agredidos e insultados por oito indivíduos, pelas 18h10m de domingo, em Camarate, no município de Loures.

De acordo com a PSP, “a mulher já apresentou denúncia sobre a situação e o processo segue agora os seus trâmites legais, encontrando-se a PSP a investigar os factos”, escrevem ao Setenta e Quatro via e-mail. Em causa estaria a disputa de um lugar de estacionamento.

Do local foram levados para o Hospital Beatriz Ângelo. A enfermeira Lara Azevedo, contactada pelo Setenta e Quatro, descreve o estado dos mesmos: “das agressões resultaram vários ferimentos quer no homem, quer na mulher, pelo que foram ambos assistidos aqui. Quanto ao menor, não sofreu qualquer ferimento”. E explica como esta “é uma situação bastante delicada”, porque ambos se tinham mudado há pouco tempo e nunca tinham passado por uma situação semelhante.

Estes relatos juntam-se aos das à maioria (75,4%) dos imigrantes que já sofreram algum tipo de discurso de ódio baseado em preconceitos e estereótipos sobre a imigração, em Portugal, segundo o relatório do projeto #MigraMyths - Discurso de Ódio e Imigração em Portugal, que analisa as experiências de discursos de ódio na imigração, a partir de relatos.

Com cerca de 190 mil imigrantes residentes no país, segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), a comunidade brasileira é a mais representativa em Portugal. É desta forma que o número de denúncias de crimes de preconceito e xenofobia contra imigrantes brasileiros atinge também percentagens elevadas.

A Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR), órgão ligado ao Governo, revelou também que as queixas subiram em grande escala. As denúncias de casos de xenofobia contra brasileiros em Portugal aumentaram 433% desde 2017, ano em que a comunidade imigrante do Brasil voltou a crescer, coincidindo com a aprovação da lei que estabelece o Regime Jurídico de Prevenção, Proibição e combate à Discriminação.

Já em 2020, foram 96 queixas, das quais a origem da discriminação destacada foi a nacionalidade brasileira, enquanto em 2017 apenas se registaram 18. "A expressão que mais se destaca enquanto fundamento na origem da discriminação é a nacionalidade brasileira", lê-se no relatório publicado.

“Aquilo que era manifestado no mundo da rua passou a existir muito mais vivo dentro das redes sociais", refere Rodrigo Saturnino. 

Ana Paula Costa, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais e diretora da Casa Brasil de Lisboa, reconhece ao Setenta e Quatro que com a pandemia “cresceram os discursos xenófobos, nomeadamente, contra as mulheres brasileiras em Portugal, um discurso que na verdade sempre existiu, estereotipado sobre a mulher brasileira, ligado ao seu corpo e à sexualidade”.

Além deste discurso, a investigadora que participa no projeto #MigraMyths destacou ainda a tolerância que a pandemia trouxe ao “diálogo contaminado” de líderes de extrema-direita e outras pessoas com influência política e social, permitindo a normalização de “um discurso de ódio” aos olhos da sociedade. “Se formos olhar para a literatura que tenta entender este tema, ela já o estuda há vinte anos. A situação de crise social e económica veio também agregar mais um factor que beneficia desse discurso”, explica. 

Os partidos de extrema-direita usam como argumento a liberdade de expressão para o seu discurso. Ainda assim, Ana Paula Costa ressalva que “não podemos deixar que o discurso de ódio se esconda atrás deste direito, porque não é liberdade de expressão. É violência!”  

Muitas vezes o facto de estarem numa situação irregular contribui para ficarem mais apreensivas e terem medo de denunciar.  “Acham que ao fazer essa denúncia serão expulsos do país. E muitas vezes o agressor utiliza esse desconhecimento e esse medo das pessoas imigrantes para poder manipular e impedir que as pessoas façam a denúncia”, explica ainda a investigadora.

 

“Liberdade Digital ou violência gratuita?”

Folheando o relatório do projeto #MigraMyths, Rodrigo Ribeiro Saturnino, investigador do Centro de Estudos da Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, aponta para os valores que assinalam o principal meio onde os discursos de ódio contra a imigração e as pessoas imigrantes em Portugal acontecem: 32,4%, por meio de redes sociais, seguindo-se os serviços públicos com 20,9%. É no universo digital, “incontrolável”, que se identificam mais realidades de discriminação, preconceito e xenofobia.

“Aquilo que era manifestado no mundo da rua passou a existir muito mais vivo dentro das redes sociais. Com a pandemia, as pessoas mudaram o meio e/ou veículo de se expressarem”, explica o investigador. E reforça a ideia de que “o Facebook é uma das mais populares para esse tipo de relacionamento, ou seja, é muito mais propício ao texto, dando palco a de diversos tipos de discriminação”.

Autor da tese A construção do imaginário social dos imigrantes brasileiros em Portugal nas redes sociais da internet: o caso do Orkut, onde aborda os inúmeros relatos de xenofobia “condensada”, o também artista (ROD) já foi vítima, por diversas vezes, de preconceito e xenofobia através do meio digital. É desta forma que fala sobre a importância das associações no acompanhamento de situações tão vulneráveis após o silêncio se quebrar. “O problema da denúncia não é só denunciar, mas também ter uma rede de apoio, uma garantia de segurança.”

"Um funcionário perguntou-me quanto eu cobrava para sair com ele, assim não teria de ficar retida”, denuncia Letícia Mendonça. 

Depois das manifestações Black Lives Matter, de “grande comoção internacional”, houve uma mudança no lugar de fala na vida das pessoas imigrantes. Poderá assinalar-se assim uma viragem na atuação e apoio das associações e meios para com realidades de preconceito e xenofobia? Rodrigo Saturnino acredita que sim. “É importante denunciar para que se possa agir. Sinto que as camadas da elite portuguesa começaram a ter mais atenção a estes movimentos. Deixaram que falássemos, ou melhor, que fossemos ouvidos, porque na verdade já falávamos. Só não havia repercussão”, explica.

O silêncio quebra-se, mas a ação tende a não ser tão imediata. O que é preciso fazer? Os dois investigadores ouvidos pelo Setenta e Quatro defendem uma maior interseção das políticas públicas. Só a participação das diferentes esferas da sociedade para a análise e elaboração de respostas sociais efetivas no combate ao racismo, à xenofobia e ao discurso de ódio, aos olhos dos investigadores, poderão contestar a evolução que têm perpetuado um acréscimo de situações de preconceito, argumentam.

Para isso, como explica a investigadora Ana Paula Costa, é também necessário dar lugar aos imigrantes no poder e no sistema: "enquanto não houver um lugar de fala equitativo, de gestão e partilha, gritar bem alto, não chega". 

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