Índice

Eles sabem tudo, eles sabem tudo, eles sabem tudo e não dizem nada

A História tem-nos provado que a independência do jornalismo e das comissões é das armas mais eficazes contra a corrupção moral e material da humanidade. A sociedade civil tem de ser os olhos, ouvidos e boca de todos nós para que não deixemos de ser vistos, ouvidos e falados por quem nos representa.

Crónica 74
2 Março 2023

Peço que visualizem uma imagem que é universalmente reconhecida: três macacos ao lado uns dos outros, um tapando os olhos (“see no evil”), o outro os ouvidos (“hear no evil”) e o último a boca (“speak no evil”). Esta representação de origem japonesa ilustra uma máxima que, como todas as máximas, pode ter várias interpretações. Se seguirmos a budista, é um apelo simbólico à não propagação de maus pensamentos. Pelos vistos os budistas já sabiam o que Joseph Goebbels verbalizou séculos mais tarde: “uma mentira contada mil vezes torna-se uma verdade.”

Se a mentira nazi deu no que deu, no que dará esta avalanche diária de mentiras disfarçadas de notícias? Mas voltemos aos macacos. Apesar da pertinência da interpretação budista, creio que é mais comum associar esta atitude dos nossos amigos símios a três comportamentos tão humanos quanto condenáveis: fazer vista grossa a algo que de facto se viu, fingir que não se ouviu o que de facto se ouviu e não falar do que provavelmente se deveria mesmo falar.

Os exemplos da contemporaneidade da atitude dos velhos macacos japoneses são tão numerosos quanto esclarecedores. Comecemos pelas petrolíferas. Saiu em janeiro, no Público, bem como um pouco por todos os meios e em toda a parte, a seguinte informação: “Projecções feitas nos anos 70 e 80 pelos cientistas da ExxonMobil previram o aquecimento global” (a notícia não é de agora, mas tem tido actualizações e reaparições desde que foi primeiramente publicada, em 2015).

Segundo esta investigação, a empresa petrolífera americana ExxonMobil sabia perfeitamente já há 40 anos qual seria o nefasto impacto da exploração e utilização de combustíveis fósseis no ambiente, mas apesar de o saberem, não conseguiram (nem tentaram) minimizar o impacto do seu negócio no futuro da Humanidade e não abriram o jogo divulgando o que sabiam. Pior, a única coisa que fizeram com esta informação foi financiar negacionistas e promover a desinformação. Em suma, adoptaram a tripla estratégia dos macacos ditos sábios, com as trágicas consequências que hoje é impossível negar ou ignorar. Em suma, eles sabiam.

Passemos agora à Igreja. Quando o filme Spotlight saiu (curiosamente também em 2015) o grande público pode ver no grande ecrã como se deu o grande encobrimento de casos de abuso sexual de menores por parte de membros da igreja de Boston e de como um grupo de tenazes jornalistas não descansou enquanto não revelou toda a verdade, ou pelo menos grande parte dela.

Lembro-me de ter ficado particularmente chocado com a forma fria como a Igreja americana tentou tudo para que nada se soubesse. E de facto, se não fossem aqueles jornalistas, sabe-se lá durante quantos mais anos os abusos ficariam por denunciar. Mas o The Boston Globe conseguiu arrancar as mãos dos olhos do clero que insistia em fingir que nada via, ouvir as queixas das vitimas e dar voz a uma denúncia nacional que teve repercussões a nível mundial. No final do filme entra a negro uma lista dolorosamente longa de localidades nos Estados Unidos onde se registaram casos semelhantes aos ocorridos em Boston e depois desta segue-se mais uma lista, desta vez com a enumeração de casos espalhados por todo o mundo.

Da Austrália à Nigéria, passando pela Alemanha, Irlanda, Argentina, Escócia, Espanha, Noruega, Canadá, França, Chile, Filipinas, etc, etc, etc, parece que nenhum país escapava a este pesadelo. Mas reparei que havia um país que não aparecia no radar das denúncias. Sim, o nosso. Portugal não constava daquela lista, o que, tendo em conta o peso e presença da Igreja no nosso país, era no mínimo de estranhar. Seriam os padres portugueses mais castos e puros ou simplesmente estavam protegidos por uma instituição com o poder suficiente para continuar a encobrir estes crimes?

Pudemos verificar recentemente que a inexistência de casos não se devia a uma particular elevação moral dos padres portugueses, mas sim a uma estratégia eficaz de calar as vítimas e proteger os abusadores. Agora que está tudo a começar a vir ao de cima, convém não esquecer que está a acontecer graças ao trabalho de uma comissão independente, que, pelas suas próprias palavras, teve de lutar contra uma “clara distância defensiva”, uma “posição de espera, exterioridade e distância” e um indisfarçável esforço por parte da Igreja em “proteger a reputação da instituição.” Em suma, a Igreja continuou a fazer o que sempre fez. Em suma, eles sabiam.

Passemos agora, e para concluir, ao poder político. Ainda com a Igreja como pano de fundo, quando rebentou o escândalo do custo do altar (em particular) e das Jornadas da Juventude (no geral), a reação dos envolvidos, desde o Cardeal Patriarca até ao Presidente da República (grande promotor do evento), passando pelo Governo e Autarquias foi a de desconhecimento dos valores que levaram à indignação popular. Parecia que ninguém sabia.

O Governo não foi claro, as Autarquias tentaram esquivar-se como puderam, Marcelo disse que não sabia, a Igreja disse que o tinha informado, ele negou, a Igreja veio depois dizer que afinal também não sabia. Moedas salta para o meio da polémica e assume-se como justiceiro "policiador" dos gastos (quando antes tinha justificado o custo do palco com outras futuras utilizações) e tudo isto nos cheirou, e continua a cheirar, a esturro. O certo é que se não fosse a media a denunciar os 80 milhões (?!) do custo total das Jornadas e o caso particular de um palco de quatro milhões (?!), o mais certo é que tudo isto tivesse ficado no segredo dos deuses macacos. Em suma, o que eles, todos eles fizeram, foi tentar perpetuar um uso e abuso dos dinheiros públicos e uma praxis estabelecida de desresponsabilização crónica. Em suma, eles, todos eles sabiam.

Há dois conceitos antagónicos que estão presentes nestes três exemplos. São eles, do lado dos encobridores, uma hipocrisia descarada e do lado dos denunciadores, uma retidão louvável. A História tem-nos provado que o jornalismo independente, que as comissões independentes, em suma, que a independência é das armas mais eficazes contra a corrupção moral e material da humanidade. Sabemos que o poder corrompe e quanto mais é exercido, maior a corrupção de valores e mais eficazes as estratégias de perpetuação desse poder. Não podemos estar constantemente a questionar e pôr em causa a legitimidade de todas as instituições, mas também não podemos ser ingénuos ao ponto de confiarmos cegamente nelas. A sociedade civil tem de ser os olhos, ouvidos e boca de todos nós para que não deixemos de ser vistos, ouvidos e falados por quem nos representa.

 

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada por:

“Blind” de Talking Heads

“Blind” de Hercules and Love Affair

“Blind” de SZA

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt