Classe trabalhadora

Paolo Gerbaudo: Os trabalhadores não votam na esquerda por falta de oferta política

O sociólogo e teórico político Paolo Gerbaudo apresenta no seu mais recente livro um mapa para navegar os dilemas dos dias que vivemos. Em conversa com o Setenta e Quatro, propôs-se a enquadrar as respostas à crise pandémica depois de uma década de repressão económica e insurreição popular. Que é como quem diz: o que vem depois do neoliberalismo?

Entrevista
21 Outubro 2021

Antes de ser sociólogo, o autor italiano Paolo Gerbaudo foi repórter para o jornal il manifesto. Talvez por isso uma conversa de 45 minutos sobre o seu novo livro The Great Recoil (O Grande Ressalto, Verso, 2021) tenha passado num ápice, fluindo naturalmente entre as hipóteses e as conclusões a que o autor chegou neste último trabalho. 

Gerbaudo está sentado no seu escritório na faculdade britânica King’s College London, onde é o diretor do Centro de Cultura Digital. The Great Recoil é o seu quarto livro depois de Tweets and the Streets (Os Tweets e as Ruas, 2012) e The Mask and the Flag (A Máscara e a Bandeira, 2017), em que abordou os vários movimentos e revoluções no início dos anos 2010, e The Digital Party (O Partido Digital, 2019), em que analisa as novas organizações políticas que emergiram desses mesmos movimentos.

No entanto, The Great Recoil é um livro que olha para a última década sem nostalgia, declamando sem rodeios que estamos já numa nova época ideológica. 

Escreve sobre organização política há mais de uma década. E nos últimos anos tem escrito sobre a organização política em tempos de populismo político. De certo modo, este livro parece a sequela do seu livro The Digital Party, porque fala sobre uma fase pós-populismo tanto em termos de ideologia, como de espaço político. Conte-nos como fez a transição entre os dois livros. O que observou que o trouxe até ao The Great Recoil?

O meu trabalho é sobre a transformação da política no século XXI, o que envolve muitas questões diferentes. Há questões de organização que já discuti nos meus trabalhos anteriores. Há questões de identidade e movimentos sociais, que abordei no livro The Mask and the Flag. Mas este livro é muito sobre ideologia. 

Como muitos livros que começam assim, como que a partir de um certo pressentimento, de uma perceção intuitiva, o meu era que alguns dos conceitos que tínhamos já não estavam a funcionar como deveriam. Em particular o termo neoliberalismo, usado nos últimos anos para explicar onde nos situamos, as ideologias dominantes hoje; e o populismo, termo usado para capturar um número bastante amorfo e multifacetado de fenómenos, desde os movimentos de protesto da nova esquerda, à nova direita após o colapso financeiro de 2008.

Desde o princípio que tinha a sensação de haver muita confusão, muita desorientação, de que já não sabíamos realmente onde estávamos. Portanto precisávamos daquilo a que o crítico literário americano Fredric Jameson chamou de “mapeamento cognitivo”. Precisávamos tentar mapear este espaço. 

Image
Paolo Gerbaudo
O sociólogo Paolo Gerbaudo com o seu mais recente livro, The Great Recoil 

Para mim, o que se tornou realmente evidente foi que, ao longo dos anos 2010, falámos tanto sobre o populismo ao ponto de usá-lo como uma espécie de conceito explicativo de tamanho único, que dava para tudo. Mas havia mais no populismo, havia mais na situação contemporânea, do que o termo populismo permitia explicar. Havia mais na crítica da ideologia dominante do que a ideia do neoliberalismo permitia explicar. 

De certa forma, comecei a investigar aquilo que havia para investigar. Comecei a investigar o populismo, as mudanças no neoliberalismo. E cada vez mais me apercebi desse elemento em comum: o regresso do Estado intervencionista e de diferentes tendências e lógicas que costumamos associar aos Estados intervencionistas.

De certa forma foi como se houvesse um momento de claridade, de haver coisas mais profundas e a longo prazo a acontecer sob uma superfície que parece muito tempestuosa e  pontuada por insurgências. Na verdade, o que estamos a ver acontecer mais profundamente nas estruturas da sociedade são mudanças cíclicas na maneira como as suposições prevalecentes e o senso comum político operam.

Pode então explicar para um leitor que não conheça o seu trabalho, como chegou ao momento presente e como o esclarece no livro? 

A metáfora chave do livro, que está implícita no título, é sobre um momento de pós-embate, um momento de reação, uma reação defensiva. O que convém a momentos de trauma, momentos de caos, momentos de crise. Quer dizer, a primeira reação é, de certa forma, uma reação negativa. É, por exemplo, a reação que temos quando sentimos muito frio e tentamos proteger-nos. Ou quando vemos algo que nos assusta e protegemos os olhos com as mãos.

Uma reação de luta ou fuga…

Sim, luta ou fuga, exatamente. É esse tipo de resposta muito primordial. Mas o que isso representa é o facto de muito da nossa situação económica e da nossa experiência política nos dias de hoje ter uma semelhança com este processo, de uma espécie de recuo e regressão. Fundamentalmente não é apenas uma regressão, mas também uma interiorização, um momento de se virar para si mesmo. 

Economicamente, o que estamos a presenciar assemelha-se muito ao que o economista austro-húngaro Karl Polanyi descreveu como o segundo do ‘duplo movimento’ das sociedades capitalistas. Que é basicamente, após um momento de expansão, após um momento de prosperidade ou relativa prosperidade, em momentos de crise as sociedades tendem a recuar sobre si mesmas, a recuar e a procurar proteção. Porque estes são precisamente os momentos em que o capitalismo se torna mais destrutivo e mais voraz.

Porque as empresas precisam de obter lucros numa situação em que as margens de lucro estão a diminuir e, portanto, tornam-se mais agressivas. Este é um momento em que há muito canibalismo dentro do capitalismo, grandes empresas que comem pequenas empresas... E é também o momento em que o desemprego em massa e o empobrecimento tornam muito visível o que sempre existiu. Ou seja, a violência do capital e a exploração e alienação que cria. Polanyi referia-se ao que aconteceu nos anos 20 e principalmente nos anos 30, com a crise de 1929 e a Grande Depressão, que levaram a diferentes respostas políticas de carácter reactivo. 

"A classe operária voltou a ser o eleitorado decisivo. Porque a luta pelo voto da classe média está mais à volta de questões culturais - conservadorismo ou progressismo."

Está a afastar-se dessa comparação? Porque se recentemente vários autores têm feito essa comparação com os anos 20 e 30 e a ascensão do fascismo, essa perspetiva não me pareceu sobressair no seu livro.

A minha impressão é que parte da interpretação da direita populista como fascista foi talvez politicamente conveniente, boa para fins de propaganda, mas de uma perspetiva analítica, foi duvidosa. Porque se seguirmos, por exemplo, a análise do fascismo de Nikos Poulantzas no livro Fascismo e Ditadura, onde enumera algumas características próprias dos movimentos fascistas, vemos claramente que os movimentos populistas de direita não satisfazem esses critérios.

Têm elementos chauvinistas, têm elementos xenófobos, têm alguns elementos de agressividade para com as minorias. Mas, por exemplo, não têm o expansionismo militar ou militarismo próprio dos movimentos fascistas. Muitos desses movimentos são até isolacionistas, na verdade. Trump teve um desempenho inferior ao de muitos presidentes americanos em termos de bombardeamentos a outros países. De igual modo, (a direita populista) não constitui milícias, que é a estrutura organizacional típica dos movimentos fascistas. Não tentam transformar a sociedade num quartel, que foi o que os movimentos fascistas fizeram. 

Às vezes é um pouco como se a fixação da esquerda fosse com o neoliberalismo e como se o neoliberalismo fosse o capitalismo em todas as suas formas. Mas é apenas uma das várias formas do capitalismo e dos vários impulsos capitalistas que existem. O mesmo acontece com o fascismo e a direita. Ou seja, a direita tem muitos formatos, muitos deles realmente perturbadores e tóxicos e violentos e autoritários, senão mesmo totalitários. Às vezes, recorrer ao fascismo como uma explicação de "tamanho único'' é questionável neste aspecto. E pode levar a um tipo de histeria liberal que, por sua vez, é algo que a direita populista costuma usar na sua propaganda para mostrar: "olhem para estas pessoas a chamarem-nos de fascistas e a ficarem assustadas à mínima coisa."

Os designados ‘snowflakes’...

Sim. Lembremo-nos de que o fascismo não surgiu apenas de uma crise económica. Surgiu da guerra sangrenta que matou milhões de pessoas e mutilou outros tantos milhões. Com populações em estado de choque, com as pessoas a sofrer da experiência devastadora que é ter estado nas trincheiras, com uma inteira sociedade atormentada. 

Felizmente não é essa a condição em que vivemos, pelo menos por enquanto. Os movimentos fascistas propriamente ditos não têm base para mobilizar - pessoas desesperadas sem nada a perder, pessoas que já encararam a morte. A sociedade ainda não está tão desesperada para adotar os movimentos fascistas. Acho que a direita populista tem que ser vista como uma resposta conservadora a este momento de recuo. Que se exprime em termos de populismo excludente, em termos de isolacionismo, em termos da culpabilização dos imigrantes por todos os males da globalização. 

Um dos conceitos a que volta constantemente no livro é a noção de "agorafobia", ou medo do externo, "causada pela interconexão digital". No livro explora também a ideia de deslocamento e a reação a estas duas ameaças ser o tal recuo, o fechar-se sobre si mesmo, o entrincheiramento da comunidade local, etc.

Como vê este fenómeno expressar-se num contexto de pandemia, ou possivelmente pós-pandemia, em que há tanto deste tipo de superexposição isolada?

Acho que a globalização também foi um projeto de reorganização geográfica, reorganizando-a, operando fundamentalmente com a ideia de que as barreiras [à circulação de bens, de capital, etc] deveriam ser eliminadas. Começando pela distância na comunicação, mas também a distância e as barreiras ao comércio. Basicamente, a abertura resolveria todos os problemas da sociedade, por assim dizer. Libertando as pessoas das estruturas coletivas, fossem elas organizações ou instituições, instigar-se-ia o seu poder, a sua energia, o seu génio. Mas o que acabou por acontecer na prática foi dar a muitas pessoas uma sensação de sobre-exposição. 

A experiência de abertura para as pessoas na extremidade recetora (da globalização) muitas vezes foi a perceção de que qualquer coisa lhes podia acontecer, de que de repente as coisas estão completamente fora do seu controlo, de que podem ser atingidas a qualquer momento e de que a sua vida pode mudar para pior. 

Pensemos no fenómeno da relocação. Fábricas em certos setores estão extremamente vulneráveis a mudanças na procura global, ou ao preço das mercadorias, ou aos diferenciais de salários entre os países. De repente, por mudar um parâmetro, uma empresa que era economicamente viável deixa de ser competitiva, o que significa centenas de pessoas terem que ser despedidas e ficarem desempregadas. Este é apenas um exemplo, mas reflete centenas e milhares de casos que estão representados em toda a nossa experiência contemporânea. 

Isto aplica-se a várias áreas diferentes das nossas vidas onde passamos a ter essa sensação de perda. Ou seja, em primeiro lugar, a sensação de estarmos expostos, basicamente de estarmos num espaço onde coisas perigosas nos podem acontecer. E em segundo lugar, uma sensação de falta de controlo na direção do que nos está a acontecer. 

"A direita populista é o resultado da globalização e da rutura que criou. Especialmente nas áreas periféricas, onde a manufaturação está atualmente concentrada."

As redes sociais são um exemplo muito pessoal desta tendência. De certo modo, é um espaço onde deveríamos, como indivíduos, comandar.  No entanto, estamos expostos a tantos agentes. Por um lado as empresas que recolhem os nossos dados, muitas vezes com pouca transparência sobre esse facto, e com muita divulgação inconsciente de dados da nossa parte. Mas também em termos de pressões, críticas, ataques - a exposição da nossa vida profissional ou individual a um público. 

Na minha opinião, estes são fenómenos muito díspares, mas apontam para algo em comum. A doutrina da ‘abertura’ da globalização neoliberal, que tem muitos aspetos positivos obviamente, mas que também expôs as pessoas [a estes fenómenos]. E, portanto, a reivindicação pela proteção não é baseada num espírito irracional ou reacionário, mas é na verdade uma resposta a coisas reais, a fenómenos reais, que afetaram a vida de muitas pessoas.

Como se organizarão as forças políticas dentro deste contexto? No livro identifica uma certa classe capitalista temendo a mobilização radical e reacionária de uma parte da baixa classe média e da classe operária que poderia arruinar as margens de lucro. É assim que identifica o medo que certos poderes têm da direita populista ou é outra coisa? Há aqui outro fantasma maior?

Os políticos estão a aperceber-se do que os sociólogos têm vindo a dizer há muito tempo, ou seja, que a direita populista é o resultado da globalização e o resultado da rutura que esta criou. Especialmente nas áreas periféricas, onde a manufaturação está atualmente concentrada e cujos meios de subsistência dos trabalhadores, a sua estabilidade e prosperidade, foram minados pela "corrida até ao fundo" a nível global. Isto é nos seus salários, nas suas condições de trabalho, na competição internacional irrestrita e assim por diante.

Precisamente porque percebem que essa é a origem [da instabilidade] agora tentam contê-la. Não transcendendo o capitalismo ou caminhando em direção ao socialismo, obviamente. Mas dentro do capitalismo adotam políticas mais social-democratas, ou políticas progressistas-liberais, chamemos-lhes, e que vão de certa forma amortecer o efeito do capital. Trata-se de proporcionar um tipo de caché para atenuar os efeitos do capital. 

"Não acho que para se reconectar com a classe operária a esquerda tenha que se desfazer das suas visões universalistas e progressistas. Deve reconhecer as vitórias, mesmo que pequenas, no campo dos direitos LGBT, nos direitos das mulheres, na justiça racial."

Um exemplo são as medidas protecionistas para facilitar o retorno da indústria nos Estados Unidos da América. De certa forma o Biden está a continuar o que o Trump começou. Vai visitar as fábricas como o Trump ia. É algo que acho muito interessante. Porquê agora todo este enfoque nos trabalhadores? Como eleitorado… quer dizer, nós temos idade para nos lembrarmos de quando, há uns anos, tudo se concentrava em ganhar o voto da classe média. Era esse o considerado “eleitor indeciso” e, por isso, tínhamos que apelar ao seu voto. Agora parece que se dá o contrário. Porquê?

Precisamente porque a classe operária voltou a ser o eleitorado decisivo. E, de certa forma, porque a luta pelo voto da classe média está mais à volta de questões culturais - conservadorismo ou progressismo. Mas é também sobre distinções profissionais entre administrativos e profissionais, ou diferentes segmentos da classe média, alguns dos quais que sofrem realmente de empobrecimento e de precariedade e que por essa razão estão mais virados à esquerda. 

Com a classe operária penso haver um erro na análise de muitas pessoas. Há uma corrente que promove a ideia de que a classe operária desconfia da esquerda porque a esquerda é metropolitana, porque adota uma postura de progressismo, é contra os preceitos - sexuais, culturais ou outros - e, portanto, parece mal aos olhos dos trabalhadores que são mais tradicionalistas, que são a favor do núcleo familiar tradicional e que no fundo suspeitam das modas e tendências metropolitanas. Mas sinto que há um equívoco fundamental neste raciocínio.

Em primeiro lugar, os trabalhadores industriais nas áreas periféricas não votam na esquerda porque a esquerda não tem uma oferta de políticas sobre a economia. Tal como Piketty descreve no seu livro Capital e Ideologia, muitos dos trabalhadores olham hoje para a esquerda como uma força que contribuiu para a globalização, ignorando as consequências para seu eleitorado principal.

Em segundo lugar, digamos, no passado, os trabalhadores das áreas periféricas eram tão conservadores quanto são hoje, na verdade até eram mais conservadores, eram muito mais conservadores. E votavam na esquerda mesmo assim porque viam nas políticas económicas que a esquerda apresentava suficiente valor para…

...para comprometer o seu conservadorismo?

Sim, no fundo para esquecer as quezílias culturais. O enfoque centrava-se nas questões básicas que podiam unir pessoas de diferentes tendências, diferentes credos, em torno de uma plataforma socioeconómica. 

Não acho que para se reconectar com a classe operária a esquerda tenha que se desfazer das suas visões universalistas e progressistas. Deve reconhecer as vitórias, mesmo que pequenas, no campo dos direitos LGBT, nos direitos das mulheres, na justiça racial. Devem ser celebradas e são parte do nosso património e da nossa identidade coletiva. Não há qualquer razão para abandoná-las, seja de um ponto de vista moral ou estratégico. A questão é ter políticas socioeconómicas fortes que ecoem nas pessoas que não partilhem necessariamente essas nossas batalhas ou que não se entusiasmem com elas. 

É algo que quero de facto enfatizar. O socialismo protetor (promovido no livro) não é uma proposta para um socialismo conservador. O termo protetor está lá para expressar isso mesmo e dizer ”é uma questão de proteção económica, não de conservadorismo cultural”. 

Na sua análise onde estão os próximos espaços de interesse?

Algo que me fascina - e que de certa forma foi uma intuição do livro - é esta espécie de retorno do Estado e como isso se vai desenrolar. A política climática é talvez um terreno onde realmente estamos a ver algumas coisas muito interessantes, alguns conflitos muito interessantes a emergir. Conflitos sobre visões futuras de infraestrutura social, que apontam, em primeiro lugar, para o enfraquecimento de certos dogmas neoliberais. Por exemplo, a ideia de que o Estado tem que intervir para reduzir os riscos para os investidores ou para outros grupos.

Para mim, o que é realmente urgente ou necessário agora é imaginação sociológica ou de teoria política. No sentido que precisamos de novas ideias com novos rótulos para capturar eventos. As minhas tentativas vão nessa direção. Mas, na verdade, há muito mais a ser feito agora em termos de tentar capturar certas tendências dentro da esquerda, da direita, do centro.

Por último, abordar a questão de quais serão os ”gargalos” nesta transformação. Há paralelos com os anos 1970, com a social-democracia, mas as condições são radicalmente diferentes. As taxas de crescimento não serão tão altas, há muita riqueza acumulada nos super-ricos. E haverá uma enorme resistência. Talvez algo que me interesse e que acho que seja do interesse de outros, é a pergunta ”quais serão os modelos decisivos neste confronto?“ e como podem determinar se este neoestatismo, esta fase pós-neoliberal, irá descambar para a esquerda ou para a direita.