Sea Shepherd

Chris Storey: “Se as pessoas soubessem como o salmão de cultura se mantém, tenho a certeza que não o comeriam”

Há quatro décadas que a Sea Shepherd vive numa constante luta para preservar a vida marinha. Não se ficando por “conversas estéreis”, a ação direta é a forma que adotam para intervir nos oceanos. Chris Storey, representante da ONG em Portugal, falou com o Setenta e Quatro sobre como milhares de espécies estão em vias de extinção. 

Entrevista
11 Fevereiro 2022

Com as profundas transformações climáticas e oceânicas que se foram registando, organizações não-governamentais vivem uma constante luta para proteger os oceanos e impedir que milhares de espécies se extingam. Tentam fazer-se ouvir denunciando políticas de pesca agressivas e a poluição que, apesar dos tratados internacionais, não dão sinais de diminuir.

Foi precisamente um navio da Sea Shepherd o primeiro a dedicar-se exclusivamente à defesa dos oceanos. Embateu contra um outro navio, o Sierra, provocando-lhe um grande rasgão vertical de dois metros, amolgou o seu casco numa extensão de dez metros, para impedir que continuasse a caçar baleias. E desde esse momento que os membros da Sea Shepherd são identificados como “piratas com asas postiças de anjos”, título que usam com orgulho.

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Chris Storey
Há quase 20 anos que Chris Storey se dedica à defesa da vida marinha

Chris Storey, representante da Sea Shepherd Portugal e fundador da Ghost NetWork, é uma das pessoas que denuncia a ameaça com que os oceanos (e nós) se confrontam. Começou por se dedicar aos oceanos em 2001, quando se tornou instrutor de mergulho. Quase duas décadas depois conheceu o  diretor-executivo da Sea Shepherd e passou a dedicar-se a tempo inteiro à defesa da vida marinha.  

Foi nos anos 1970 que esta aventura começou, com Paul Watson, e depressa a Sea Shepherd se fez ouvir pelo mundo. No entanto, só em 2019 é que chegou a Portugal. Porquê?

É verdade. Na altura, tivemos duas embarcações que vieram a Portugal para serem reparadas em estaleiros. Preparavam-se para uma campanha que aconteceria posteriormente. No seguimento disso fomos recebendo muitos pedidos, principalmente nos últimos anos, para abrir um polo da organização em Portugal. Surgida a oportunidade, foi uma decisão fácil. Ter esta presença é essencial, em todos os países, para que possamos criar uma maior consciência sobre a importância do nosso oceano.

Falamos de uma evolução significativa ao longo dos anos?

Completamente. Para mim, é ótimo ver-nos passar de “rebeldes”, pois era assim que nos rotulavam, para parceiros de governos e marinhas locais em África, no México, entre muitos outros países. Esta ação direta funciona e o trabalho que desempenhamos com eles, com a polícia e a marinha, é reflexo disso.

A terminologia Neptune’s Navy [marinha de Neptuno] nasce dessa relação...

Sim [risos]. É interessante dizer que somos assim conhecidos, porque muitos governos usam os nossos navios e conhecimentos para acabar com a caça à baleia.

A cooperação entre os governos e a Sea Shepherd alimenta a ideia de que tanto os ativistas como a governação podem andar "de mãos dadas" para um bem maior. No entanto, é algo também posto à prova, dadas as dimensões de greenwashing que se gera em torno de políticas e intervenções no mundo.

Sim, não é norma que governos e ONG trabalhem em conjunto, mas somos uma realidade que definitivamente comprova que isto funciona. Espero que continuemos neste caminho e que trabalhemos com mais governos a nível mundial e, claro, que outras ONG sigam também esse exemplo.

O fundador da vossa organização disse em entrevista a um jornal português, em 2017, que estava "cansado de conversas estéreis". Disse-o quando ainda pertencia à GreenPeace, tendo sido também um motivo para a Sea Shepherd nascer. Essas conversas ainda existem?

Acredito que o Paul se referia ao acatar da situação e não ao agir perante ela. Muitos ativistas falam e fazem petições, mas isto é um processo muito demorado e não é o suficiente. Por isso, a única forma real de fazer ação é a ação direta.

"Os governos só agem quando são pressionados e o público testemunha esse espetáculo de terror, porque o oceano nunca é visto como uma prioridade."

No dia 8 de fevereiro vimos as primeiras imagens no Golfo da Biscaia, que mostram a superfície oceânica coberta por uma espessa camada de peixes. Estamos a falar de um acontecimento num país europeu que, ao que parece, não foi acidental.

Sim, eles estimaram mais de 100 mil peixes mortos. A imagem era impressionante. Isto só agora é que é conhecido, porque foram capturados em flagrante. Mas não é novidade. Aliás, é algo regular em muitas outras espécies como os tubarões, os golfinhos e até com as baleias. As práticas tradicionais como nas Ilhas Faroé, por exemplo, são outro massacre totalmente inaceitável.

A Sea Shepherd foi o primeiro grupo ativista nas Faroé, em 1983, com mais campanhas de ação direta em 1985, 1986, 2000, 2011, 2014 e 2015. Depois, devido a restrições de navios que nos foram dirigidas, bem como à nova legislação faroense que impede intervenções de quaisquer ativistas contra a caça às baleias, a Sea Shepherd UK lançou a operação Bloody Fjords com a tripulação em terra a ser enviada para investigar. Ao longo de 2020, a nossa tripulação patrulhou por mais de dois meses, quando as restrições de viagem Covid-19 foram finalmente levantadas.

A operação Bloody Fjords gerou, nos últimos anos, muitas centenas de artigos noticiosos internacionais online e impressos, bem como programas de rádio e televisão. No entanto, os meios de comunicação dinamarqueses raramente noticiaram os assassinatos de golfinhos nas Ilhas Faroé. Foi nessa altura que a Sea Shepherd UK e a Sea Shepherd Escandinávia chegaram a ativistas dinamarqueses, respeitados e reconhecidos, para se juntarem à campanha.

Não houve caça à baleia enquanto as nossas tripulações patrulhavam, entre agosto e setembro, que são os cinco meses de pico. No entanto, aconteceram três caçadas durante a pandemia, apesar dos bloqueios ou restrições de afastamento físico nas Ilhas Faroé.

Para que se tenha noção, foram mortas durante um exercício de marcação baleias-piloto e duas Bottlenose do Norte, assassinadas depois de ficarem encalhadas. O total de cetáceos mortos em 2020 foi 539 baleias-piloto com barbatanas longas, 35 golfinhos brancos do Atlântico e 11 baleias-garrafa do Norte. Estamos a falar de uma realidade extremamente recente e preocupante.

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Baleias mortas
A operação Bloody Fjords gerou, nos últimos anos, muita controvérsia | Fotografia de Sea Shepherd

Que tipo de intervenções e ações podem ser tomadas para assegurar que esta prática, proibida pela União Europeia, não continue a pôr em perigo a vida marinha?

Nós precisamos de mais tecnologias e de um controlo mais apertado com câmaras de vigilância [nos barcos], principalmente quando falamos das práticas de pesca.

A vigilância das águas é geralmente precária no planeta?

Nas nossas expedições deparámo-nos com violações dos direitos humanos, tais como o trabalho escravo, a caça de espécies ameaçadas e em vias de extinção, e outras realidades. E falamos de uma questão que é muito presente. Verificou-se nos anos 1970 e tem sido o caos até agora.

Na minha opinião, precisamos que haja mais tecnologia envolvida, inteligência artificial, big data, vídeos de vigilância, como referi antes. Há inspetores em muitas embarcações, é certo, mas não é novidade para ninguém que também são ou podem ser subornados. O dinheiro é poder e, mesmo nos mares, é o mecanismo primordial.

Mas também destaca a consciencialização como um ponto de partida que pode ajudar a todos estes avanços.

O público, em geral, precisa de saber mais sobre a pesca comercial e os efeitos devastadores que esta tem sobre o oceano, assim como a importância e a defesa do mesmo.

E esse desconhecimento deve-se a quê? Falamos de uma falha na ação e proteção dos recursos ambientais a nível global?

Claramente, porque se trata de dinheiro. Os governos só agem quando são pressionados e o público testemunha esse espetáculo de terror, porque o oceano nunca é visto como uma prioridade. 

Imagine que entramos na selva, amarramos um monte de leões e outros animais. Haveria ‘gritos’ públicos. No que toca ao oceano, as pessoas não veem - ou não querem ver - a quantidade de golfinhos, baleias e outras espécies que são dizimadas.

Hoje fala-se também de novos termos, como acontece com o conceito de pesca sustentável. Mas não existe uma definição consensual. Como podem os pescadores locais sustentar a sua subsistência, por exemplo?

Os pescadores locais não são o verdadeiro problema. Os enormes navios, com tecnologia de ponta, é que são o problema. Estão a exterminar todas as espécies, principalmente por causa das capturas acessórias. A pesca do atum [pesca de arrasto] é o reflexo disso: acabam por trazer com ela muitas outras espécies ameaçadas.

Se conseguirmos abrandar ou parar este enorme erro, toda a gente beneficiará. Haverá mais peixe para os pescadores locais, mais peixe para a vida marinha e um possível futuro para a humanidade, porque se continuarmos como estamos, então o “efeito pancada” só trará inundações, tsunamis e uma enorme perturbação para o planeta.

"Pensem na vossa saúde, peixes oceânicos como o espadarte, o tubarão, as baleias, entre outros, estão cheios de mercúrio, o que a longo prazo é muito mau para a saúde humana. Pensem também na quantidade de peixe com plástico que comem."

Como é que isto se correlaciona com o Sul global, onde a pobreza e a subsistência não deixam muitas vezes escolha?

Muitos pescadores em África já não podem pescar por causa da pesca comercial, que extermina a população de peixes local, pelo que se voltam para a pirataria, o trabalho fabril, etc. Adotam, na sua maioria, alternativas igualmente ilegais.

Há pouco falava da falta de regulamentação durante a pandemia e como isso dizimou espécies marinhas em grande parte do mundo. No entanto, desde 2019, que as campanhas públicas da organização também surgiram em torno da contaminação dos oceanos, nomeadamente, do plástico. Tendo em conta esta realidade, como pode isto influenciar uma reação contrária às medidas de sensibilização?

Sim, a Sea Shepherd e muitas outras iniciativas notam que mais máscaras, cotonetes e cigarros ainda parecem ser os itens mais encontrados nas praias e no oceano – além de todo o plástico que temos vindo a referir nas nossas campanhas.

A poluição marinha é catastrófica. Faço das minhas palavras as do Paul [Watson, fundador da Sea Shepherd] quando recorda constantemente que caminhamos para uma realidade em que haverá mais plástico no mar do que peixes. E, com isto da pandemia, e todos os produtos descartáveis associados, o nosso foco é desfazer esse cenário negativo com todas as intervenções necessárias e precisas. Mas não o conseguiremos sozinhos. Não somos “piratas com asas de anjo” por acaso, mas também não nos movemos sem a cooperação humana. Mais uma vez, o trabalho de sensibilização e consciencialização tem de ser feito. Isto porque, se assim não for, vamos acabar pior do que estávamos em 2019.

A vossa intervenção também passa por se coligarem com outras frentes, dos meios de comunicação aos meios artísticos. Por exemplo, o filme SeaSpiracy retrata os conflitos de interesses em grupos de conservação marinha e os esforços políticos ocos.

O SeaSpiracy foi bom para nós e para o público em geral. O filme foi um grande apelo à ação. Não há ninguém que faça o que fazemos como uma organização intervencionista e antipoluição marinha. Mas há muitas organizações ambientais de conservação marinha que estão a fazer o bem.

A força de um ecossistema está na diversidade, portanto, a força de qualquer movimento tem de estar na diversidade. Quer essa abordagem seja através da educação, do litígio, da legislação ou da intervenção direta, tudo funciona no mesmo sentido.

Como diz Ali Tabrizi no documentário, siga-se o dinheiro. É sempre a chave para descobrir o que se está a passar. Esperávamos que a indústria de marisco nos atirasse cientistas, porque eles fornecem praticamente os dados para apoiar o que a indústria quer que eles digam. O mesmo acontece com as alterações climáticas - encontrará cientistas que apoiam os negacionistas e aqueles que vão contra os factos.

Normalmente, os cientistas que apoiam os negacionistas, ou neste caso a indústria pesqueira, são empregues por várias corporações que têm interesses declarados. Eles acusaram o Seaspiracy de ser impreciso antes mesmo de verem o filme. Continuo a ouvir dizer que as pessoas pensam que está cheio de mentiras, mas a minha resposta a isso é: mente exatamente sobre o quê?

Além deste filme, temos ainda a história de Ali e Lucy – Sharkwater; a história de Robert Stuart, Mission Blue  e a história de Sylvia Earle. A única crítica que ouço, agora, sobre Seaspiracy é que desmentem a previsão sobre quando a indústria pesqueira entrará em colapso. Além disso, há controvérsia sobre percentagens precisas - mas a questão não é a data ou o número exato, é que a indústria vai entrar em colapso.

Focando-nos em Portugal, país culturalmente ligado ao mar, como é necessário agir?  Quais são as suas principais preocupações?

Portugal está no top 3 dos países que vende barbatanas e carne de tubarão em supermercados, com nomes diferentes, muitas vezes vendida com o nome comum "cação" ou tintureira. Muitas pessoas não fazem a menor ideia de que é realmente um tubarão. Os tubarões estão a tornar-se espécies ameaçadas por causa da matança em massa e do corte das suas barbatanas.  

Portugal é também um dos maiores consumidores de peixe do mundo, por isso a melhor maneira de ajudar à conservação é simplesmente cortar no consumo de peixe e escolher mais sabiamente.

Se muitas pessoas soubessem como o salmão de cultura se mantém, tenho a certeza de que considerariam não o comer. Pensem também na vossa própria saúde, peixes oceânicos como o espadarte, o tubarão, as baleias, entre outros, estão cheios de mercúrio, o que a longo prazo é muito mau para a saúde humana. Pensem também na quantidade de peixe com plástico que comem. O polvo, uma das criaturas mais inteligentes do planeta, é exterminado constantemente em massa para a nossa própria ganância. No mundo moderno temos demasiadas opções de comida. Não há desculpa para não cortar no consumo de carne e peixe. Poderia continuar e continuar.

Chegamos à altura certa para falar de um novo passo. A GhostNetWork...

É verdade. Decidi criar a minha própria Organização Não Governamental (ONG). Trabalhamos com o município de Setúbal, com a DocaPesca e com o porto de Setúbal. Começamos pela consciencialização, no que toca às artes de pesca que matam a vida selvagem marinha, e depois partimos para um projeto de recolha de redes. Aqui também trabalharemos com artistas para criar consciência, como é o caso da Sea Shepherd Portugal que colabora com a Sciena, The Sharks Educational Institute Portugal, entre outras entidades.

"A poluição marinha é catastrófica. Caminhamos para uma realidade em que haverá mais plástico no mar do que peixes."

Defende-se que as baleias podem realmente influenciar as alterações climáticas. A sugestão de apoio financeiro às baleias, tal como a Sea Shepherd defende, pode ser um investimento que não só salvaguarde os animais como permita a redução das emissões.

As baleias são grandes embaixadoras das alterações climáticas, isto é, são grandes consumidoras  de carbono. As baleias acumulam carbono nos seus corpos durante as suas longas vidas. Quando morrem, afundam-se no fundo do oceano, bloqueando esse carbono durante centenas de anos - um literal “sumidouro” de carbono.

Cada grande baleia aglomera cerca de 33 toneladas de CO2 em média. Uma árvore, entretanto, apenas absorve até 48 libras [cerca de 20 quilos] de CO2 por ano. Os tubarões são também grandes “captores” de carbono. O fitoplâncton, por exemplo, é literalmente o que nos dá o ar que respiramos. São organismos microscópicos que absorvem o dióxido de carbono da atmosfera à medida que crescem. Quando morrem, o fitoplâncton afunda-se coletivamente através da coluna de água como "neve marinha", carregando consigo esse carbono.

Assim, se dizimarmos a maior parte da vida marinha como parece que estamos a fazer, então as espécies invasoras comerão o fitoplâncton e isto terá enormes consequências para a espécie humana.

Imaginaria estes investimentos a acontecerem?

Como não? Querem investir? Façam do poder económico e do sistema algo que realmente valha a pena.

Pelo Oceano?

Se o Oceano morrer, nós morreremos com ele.