Licenciada em História e mestre em História Contemporânea pela FCSH-NOVA. Investigadora e consultora na empresa Espelho do Passado, elaborando estudos genealógicos para descendentes de judeus sefarditas.

A vida, a luta e o assassinato de Eduardo Mondlane

O histórico fundador da FRELIMO é celebrado em Moçambique como um dos heróis que levaram a nação à libertação do colonialismo português. Do pensamento anti-racista ao trabalho diplomático, do pan-africanismo à luta armada, importa hoje reconhecer o legado do trabalho inacabado que deixou.

Ensaio
4 Fevereiro 2022

Eduardo Mondlane foi assassinado a 3 de fevereiro de 1969 na sequência da detonação de uma bomba inserida num pacote do seu correio. Faz esta semana 53 anos desde o desaparecimento de um dos fundadores da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). 

O secretismo que se manteve nas décadas que se seguiram ao atentado levou a que vários investigadores pensassem sobre o caso, levantando muitas hipóteses sobre os responsáveis. Os pormenores da operação ainda hoje geram discussão entre os historiadores, sobretudo no que toca ao envolvimento de membros da FRELIMO como cúmplices. Autores como George Roberts ou José Duarte de Jesus empenharam-se em descrever as diferentes teorias explicativas, dissecando o local, a arma e o motivo do crime, tal qual um jogo de Cluedo. 

A grande conclusão a que estes historiadores chegaram foi que, de facto, numa conjuntura geopolítica complexa, Eduardo Mondlane fez vários inimigos, existindo diversos grupos políticos que beneficiaram do seu desaparecimento.

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Ainda que não tenha assistido à independência de Moçambique, a 25 de junho de 1975, não há dúvidas que Eduardo Mondlane deixou um legado na história daquele país: desempenhou um papel fundamental na luta pela liberdade dos moçambicanos. Agora, 53 anos depois da sua morte e pouco mais de 100 anos desde o seu nascimento, relembramos o seu percurso de vida.

A infância na província de Gaza

Eduardo Chivambo Mondlande nasceu a 20 de junho de 1920 numa aldeia no sul de Moçambique. Filho de Nwadjhane Mussengane Mondlane, chefe da tribo tsonga de língua e cultura banto, e de Makungu Muzamusse Bembele, Eduardo cresceu num ambiente rural entre campos e pastagens, inserido numa cultura tribal tradicional da África Austral. Assim como a maior parte das crianças moçambicanas naquele tempo, a infância de Mondlane foi passada a absorver as tradições da sua tribo e da sua família.

Eduardo Mondlane recordou que as suas mães (outras mulheres do seu pai) costumavam falar da opressão sob a qual viviam, perpetrada pelos colonialistas portugueses.

No livro Chitlango, filho de Chefe, publicado em 1946 em coautoria de André-Daniel Clerc, Eduardo Mondlane retrata alguns aspectos da sua infância, como a influência que a sua mãe teve na sua forma de ver o mundo. Makungu era a terceira mulher de Nwadjhane e, apesar de ser iletrada, foi a principal incentivadora da frequência de Eduardo na escola. De acordo com o próprio, a sua mãe dizia-lhe muitas vezes que ele tinha de ir para a escola “compreender a feitiçaria do homem branco, para assim poder lutar contra ele”.

A conceção de “homem branco” aparece na obra autobiográfica de Mondlane, na recriação de vários diálogos entre Chitlango e a sua mãe. Nesta percebemos que não se tratava de um processo de racialização de identidades opostas por si só, mas essencialmente da consciência de uma hierarquia social que sustentava a condição de subalternidade e de exploração em que Chitlango, a sua família e tribo se encontravam.

Em testemunhos mais tardios, Eduardo Mondlane recordou que as suas mães (outras mulheres do seu pai) costumavam falar da opressão sob a qual viviam, perpetrada pelos colonialistas portugueses. Muitos dos seus filhos viram-se obrigados a fugir para a África do Sul para evitarem ser forçados a trabalhar para os agricultores locais portugueses ou para donos das plantações, em troca de salários irrisórios. 

Por essa razão, o pequeno Eduardo não teve contacto com os seus irmãos mais velhos nos primeiros anos da sua infância. Até aos dez anos de idade viveu no campo, observando a situação de insegurança e de pobreza em que viviam mulheres e homens na sua terra.

A vida académica e associativa

Através das missões protestantes, sobretudo a “Missão Suíça" e do respetivo missionário-chefe André-Daniel Clerc, Mondlane completou os estudos primários em Moçambique, frequentando as escolas calvinistas suíças e, durante alguns anos, as escolas oficiais portuguesas. Entre o ensino primário e secundário, Eduardo foi aluno num curso agrícola prático de dois anos da Escola Metodista Americana.

Por não ter sido aceite em nenhuma escola secundária ou profissional em Moçambique, o jovem que viria a ser líder da FRELIMO viu-se forçado a terminar o ensino secundário no Transvaal, na África do Sul. A dificuldade em conseguir completar os seus estudos era comum à esmagadora maioria das crianças e jovens moçambicanos não reconhecidos no processo de “assimilação dos costumes” que o regime do indigenato impunha.

Entre 1940 e 1960, as percentagens de alunos inscritos nas escolas das colónias eram muito reduzidas e não interessava ao Estado Novo que os mesmos ingressassem no ensino superior, porque isso poderia levar à formação de elites intelectuais que pudessem desencadear movimentos independentistas nos territórios colonizados.

Mesmo assim, Eduardo Mondlane completou o ensino secundário e em 1948 ingressou na Jan H. Hofmyr School of Social Work em Joanesburgo. No ano seguinte, foi aceite no curso de Sociologia da Witwatesrand University. 

O governo de François Malan, instaurado na sequência da vitória do Partido Nacional na África do Sul, estabeleceu o regime de apartheid e Eduardo Mondlane foi expulso do território ao ser-lhe recusada a renovação do seu visto.

Nesse ano, depois de ter lidado com tantas dificuldades e frustrações, Mondlane iniciou a sua vida associativa, fundando o NESAM – Núcleo de Estudantes Secundários de Moçambique em conjunto com outros estudantes do ensino secundário que partilhavam do mesmo sentimento de revolta contra as injustiças do sistema.

Mondlane começou o seu trabalho reivindicativo no associativismo estudantil. Fundou uma associação, a NESAM, que depressa ganhou ganha a atenção da PIDE. 

O NESAM foi desde os primeiros tempos colocado sob suspeita pelas autoridades coloniais e Mondlane chegou mesmo a ser detido para interrogatório no início de 1949. A organização tinha um propósito cultural e social entre os estudantes moçambicanos racializados, aspeto que atraiu a curiosidade e o receio da polícia política portuguesa. O relatório do Procurador-Geral português sobre as investigações e a sua detenção, concluía que o NESAM era uma espécie de embrião de uma organização nacionalista africana e por isso, tinha de ser vigiado de perto.

Em 1950, Mondlane conseguiu uma bolsa de estudo do Phelps Stokes Fund de Nova Iorque que lhe permitiu frequentar a Universidade de Lisboa, em Portugal. Entre 1950 e 1951, frequentou o curso de Ciências Históricas e Filosóficas. Foi neste contexto que conheceu outros estudantes oriundos das colónias portuguesas em África, tendo contacto com a Casa dos Estudantes do Império.

A experiência de Mondlane como estudante universitário em Lisboa confirmou a condição de subalternidade que o regime colonial lhe conferia, a que se juntou o clima de desconfiança que a sua figura, bem como a dos restantes estudantes africanos, gerava na polícia política do Estado Novo. O assédio que os estudantes colonizados sofriam por parte das autoridades era bastante frequente, dificultando a concentração nos estudos e, por conseguinte, o seu sucesso académico.

Antes de ter ido para Lisboa, Mondlane nunca tinha conhecido qualquer outro estudante racializado que tivesse acabado o ensino secundário nas colónias portuguesas. A convivência com outros alunos africanos foi um aspeto positivo na sua experiência em Portugal. Por outro lado, a escassez dos mesmos nas universidades portuguesas foi uma desilusão para Mondlane, tendo em conta que até na África do Sul existiam, nessa altura, mais de 500 estudantes universitários racializados.

Ao longo da década de 1950, as Casas dos Estudantes do Império, cujas principais sedes eram em Coimbra e em Lisboa, tornaram-se pólos de discussão contra o regime de Salazar e de emergência de uma consciência anticolonial. As figuras mais conhecidas do anticolonialismo africano em Portugal passaram por lá, tais como Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, entre outros.

Mondlane foi pioneiro no estudo sociológico e antropológico do racismo e das questões raciais nas relações sociais. Esse trabalho criou algumas das principais bases ideológicas da FRELIMO.

Apesar da curta estadia em Lisboa, estes contactos tiveram seguramente um grande impacto na evolução do pensamento político de Mondlane. Em 1951, Eduardo tinha 31 anos e contava já com a experiência de ter vivido em três contextos diferentes – Moçambique, África do Sul e Lisboa. Em todos a sua condição de subalternidade, em grande parte associada à sua cor de pele e, portanto, à sua identidade racializada, serviu de obstáculo à progressão académica. O clima de perseguição política que se vivia em Lisboa forçou-o a procurar outra alternativa para continuar os seus estudos.

Entre 1951 e 1956, Eduardo frequentou a Oberlin College em Ohio e a Northwestern University em Evanston (Illinois), nos Estados Unidos da América. Durante esse período obteve os graus de licenciatura, mestrado e doutoramento em Sociologia e Antropologia.

O facto de ter vivido nos Estados Unidos, mais precisamente em Chicago no período da Guerra Fria, com o início dos processos de independência no continente africano e, simultaneamente, dos movimentos pelos direitos civis da comunidade afro-americana, influenciou a sua forma de ver o mundo. Ficou mais atento à questão do racismo e do racialismo como estruturas históricas e sociais.

As teses de mestrado e de doutoramento de Mondlane, publicadas em 1955 e 1960, respetivamente, sugerem que seria provavelmente o primeiro investigador africano (e racializado) a estudar as relações “raciais” e o racismo naquela época, do ponto de vista sociológico, nos Estados Unidos. Com recurso a experiências, inquéritos e métodos estatísticos, Eduardo Mondlane questionava o peso da identidade “racial” e da identidade nacional para os relacionamentos interpessoais.

O artigo de Livio Sansone, publicado em 2013, reflete sobre o impacto profundo que as ciências sociais tiveram no pensamento político de Eduardo Mondlane e no papel que desempenhou na luta anticolonial em Moçambique. A perversidade do racismo, bem como o perigo de priorizar a etnicidade em detrimento da justiça, foram ideias desenvolvidas nos trabalhos académicos de Eduardo, que serviriam de base à ideologia projetada no discurso oficial da FRELIMO.

O casamento com Janet Mondlane

Em outubro de 1956, Eduardo Mondlane casou com Janet Rae Johnson, cidadã norte-americana de origem sueca que conheceu num grupo de atividades religiosas. A união foi alvo de críticas tanto por parte dos missionários protestantes, como da própria família de Janet e, mais tarde, no seio da FRELIMO. As objeções prenderam-se essencialmente com o facto de ambos terem identidades nacionais e “raciais” distintas.

Pouco antes do assassinato de Mondlane, difundiu-se um panfleto difamatório, intitulado “A Profile of Dr. Eduardo Mondlane”, contra o próprio em vários países africanos. Neste, o casamento com Janet provava que ele se tinha “nativizado” nos Estados Unidos, acusando o líder da FRELIMO de estar inserido numa conspiração com o governo norte-americano, destinada a fazer crescer a influência americana em Moçambique. Estas acusações tiveram um grande impacto tendo em conta o contexto de Guerra Fria.

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Eduardo Mondlane em 1953, enquanto aluno da Oberlin College no Ohio (EUA)
Eduardo Mondlane em 1953, enquanto aluno da Oberlin College (Ohio, EUA)

As entrevistas de Janet Mondlane a Nadja Manghezi levaram à publicação, em 1999, de um livro de memórias “O meu coração está nas mãos de um negro”. Nele podemos ler a perspetiva de Janet Mondlane sobre os acontecimentos da sua vida com o lutador pela independência de Moçambique, bem como alguns excertos de cartas trocadas entre ambos em diversas fases das suas vidas. O livro acaba por revelar um lado emocional dos intervenientes que não será tão fácil de aferir em outro tipo de fontes históricas.

É tendência em muitos autores ligar as posições políticas de Eduardo Mondlane, nomeadamente a sua atitude antirracista, com as suas posições emocionais pelo facto de ser casado com uma mulher “branca”. A mesma lógica também se poderia aplicar inversamente a Janet. Parece-nos, contudo, pouco rigoroso aferir o grau de preconceito de alguém com base nas emoções que nutre por uma pessoa.

E se o trabalho político do casal Mondlane foi notável ao combater o sistema colonial racista em Moçambique, as memórias publicadas por Janet acabam por devolver a devida humildade a ambos, enquanto seres humanos inseridos nas suas circunstâncias.

O casal teve três filhos: Eduardo Chivambo Jr., Jennifer Chude e Nyelete Brooke, sendo que a mais nova nasceu em 1962, ainda antes da fundação oficial da FRELIMO. Os três assistiram à dedicação dos seus pais na luta anticolonial de Moçambique.

A vida profissional no seio da diplomacia

Em 1957, Mondlane foi convidado pela Organização das Nações Unidas para trabalhar como investigador (Assistant Social Research Officer) no Conselho de Tutela. A sua principal função era elaborar documentos e estudos nas áreas económicas e sociais relativos aos protetorados do Tanganica, Camarões Britânicos e o Sudoeste Africano.

Foi no seio da sua atividade na ONU que Mondlane conheceu Adriano Moreira, membro da delegação portuguesa em 1957 e que veio a ser a Subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, em 1960, e Ministro do Ultramar, em 1961. 

Segundo o testemunho de Janet Mondlane e a correspondência entre ambos, Moreira e Mondlane tornaram-se amigos em Nova York e mantiveram uma relação cordial nos anos que se seguiram. Esta amizade confirma a atitude diplomática e convergente dos dois, até certo ponto. Se lermos a comunicação de Moreira na Sociedade Geografia de Lisboa, em que reagia à Conferência de Bandung dois anos antes de conhecer Mondlane, rapidamente nos apercebemos que a sua perspetiva em relação às colónias era redutora e absolutamente iludida quanto às condições de vida da população colonizada.

E, portanto, podemos  dizer que a sua impressão de Eduardo Mondlane como académico brilhante, funcionário relevante da ONU e pai de família bem-sucedido não ia em contradição com aquilo que ele acreditava que podia ser o destino de qualquer habitante das colónias, na mentalidade colonial que obedecia ao conceito perverso de “missão civilizacional”.

Ainda assim, Janet Mondlane afirmou numa entrevista que Adriano Moreira era uma personalidade interessante que sabia manobrar a ditadura de Portugal. Além disso, de acordo com alguns autores, Eduardo Mondlane mantinha relações de amizade com outros membros da delegação portuguesa, aproximando-se do diálogo diplomático com as instituições portuguesas.

Como investigador da ONU, Mondlane vajou até Moçambique para escrever um relatório estratégico sobre as condições de vida dos moçambicanos sob a autoridade colonial portuguesa. 

Em 1960, Eduardo Mondlane aproveitou uma das suas visitas aos protetorados e viajou até Moçambique, onde permaneceu durante quatro meses. O seu cargo nas Nações Unidas permitiu-lhe disfrutar de uma relativa segurança durante a sua visita, ainda que sob vigilância apertada por parte da PIDE. 

Nesta estadia elaborou um relatório estratégico, intitulado “Present Conditions in Mozambique”, que apresentou a Chester Bowles do Departamento de Estado dos EUA em maio de 1961. Na sua análise, Mondlane observou as condições de vida da população com base na divisão identitária racializada de matriz colonial (“negros”, “brancos”, “mestiços”, “assimilados” e “asiáticos”). A opressão política, a falta de estabelecimentos educativos e a subserviência económica permaneciam para todos os indivíduos racializados, sobretudo para os considerados “negros”.

O relatório concluía que era evidente o crescimento em Moçambique de um sentimento generalizado contra Portugal e contra os portugueses, sendo reforçado pelos eventos militares que estavam a ocorrer em simultâneo no resto do continente africano e, sobretudo, no território vizinho de Angola.

A independência de Moçambique era, pois, uma inevitabilidade, e seria necessário encontrar uma forma de negociação pacífica entre a então colónia e Portugal, evitando uma situação de guerra como a de Angola. Nesta fase, a estratégia adotada por Mondlane passava pela ação diplomática global, num esforço de angariar a simpatia externa e assegurar a independência ideológica da luta no eixo da Guerra Fria.

Foi depois desta viagem que Mondlane decidiu deixar definitivamente as Nações Unidas e regressar a Moçambique para organizar um movimento político anticolonial. Alguns autores afirmam que foi a desilusão que o sociólogo sentiu ao confrontar-se com a realidade que se vivia na sua terra que fez com que abandonasse a sua situação confortável em Nova Iorque e passasse a dedicar-se exclusivamente à luta anticolonial em Moçambique.

Não foi, no entanto, apenas a apontada desilusão que pesou na decisão de Eduardo.Também pesaram, e talvez com mais importância ainda, as relações estabelecidas com outras figuras políticas que frequentavam o mesmo círculo diplomático, tais como Julius K. Nyerere e Amílcar Cabral.

O primeiro havia sido um dos fundadores do partido Tanganyika African National Union (TANU) e, em 1959, foi nomeado primeiro-ministro desse território semi-independente. Nos anos até à independência, em 1962, Nyerere ia muitas vezes a Nova Iorque como peticionário nas Nações Unidas, estreitando relações com Mondlane e outros ativistas anticoloniais africanos. 

Nestes contactos, Nyerere assegurou o apoio do seu futuro governo (depois da independência do Tanganica) ao trabalho de Mondlane na organização de um movimento independentista para Moçambique.

Mondlane tentou juntar vários grupos e movimentos pela libertação de Moçambique numa única frente anticolonial mais eficiente. 

Quando Mondlane deixou o seu trabalho nas Nações Unidas em junho de 1961, aceitou temporariamente o cargo de professor na Syracuse University na mesma cidade, esperando pela independência do Tanganica, que se afirmou estado soberano em dezembro do mesmo ano.

Amílcar Cabral, fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), também fazia parte do grupo de líderes anticoloniais peticionários na ONU. Presença assídua nas sessões dos órgãos da ONU consagradas às colónias portuguesas, o líder político empenhou-se em concertar esforços entre os diferentes movimentos anticoloniais africanos para a prossecução de um objetivo maior: acabar com o sistema colonial português.

Desde 1958 que Amílcar Cabral assumia a liderança do Movimento Anti-Colonialista (MAC), herdeiro do Movimento Democrático das Colónias Portuguesas, criado por Agostinho Neto em 1954. O MAC deu lugar à Frente Revolucionária Africana para a Independência (FRAIN) que, em abril de 1961, foi substituída pela Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP). De entre os seus partidos membros encontrava-se o PAIGC, liderado por Cabral. Além disso, a CONCP tinha como secretário o moçambicano Marcelino dos Santos.

Por esta altura, Eduardo Mondlane já conhecia e estabelecera contactos com os movimentos e partidos que se haviam formado para combater o colonialismo em Moçambique: MANU, UDENAMO e UNAMI. Recusando-se juntar a qualquer um deles em separado, o então sociólogo exerceu pressão para que os grupos se reunissem numa frente unida para tornar a luta anticolonial mais eficiente. 

Esta ideia já tinha sido apresentada pelo comité central da UDENAMO à MANU, mas as pressões exercidas pelo presidente do Gana, Kwame Nkrumah, influente na UDENAMO, e pelo presidente do Tanganica, Nyerere, influente na MANU, impediram um acordo prévio entre os movimentos.

Em junho de 1962, na All Africa Freedom Fighters Conference, em Winneba, a junção dos movimentos MANU, UDENAMO e UNAMI foi anunciada com a aprovação do presidente do Gana, Nkrumah, o presidente do Tanganica, Nyerere e dos restantes presentes na Conferência. Esta tornou-se a data oficial da fundação da FRELIMO, da qual Eduardo Mondlane foi o primeiro líder.

A luta na FRELIMO

A partir de 1962, a vida de Mondlane passou a ter apenas um objetivo: a emancipação de Moçambique como país independente. Numa primeira fase, concentrou os esforços na diplomacia através de várias tentativas de diálogo com as instituições portuguesas.

Face à recusa do governo português, a estratégia de Mondlane e da FRELIMO mudou, dando início à preparação de guerrilheiros em vários campos de treino na Argélia e na Tanzânia. Em 1964, depois de esgotadas as opções pacíficas, a luta armada iniciou-se em Moçambique, à semelhança do que já acontecia nas outras colónias.

Inserido na lógica unitária por detrás da CONCP, bem como das ideologias relacionadas com o pan-africanismo, os primeiros discursos de Mondlane foram marcados pelo ideal da unidade moçambicana e africana, na luta contra um inimigo comum. Numa perspetiva africanista do conflito, a definição do inimigo para Mondlane colocava-se nos termos da opressão e do racismo que se generalizavam não só ao território moçambicano, mas a todo o sistema colonial português em África. 

A ideia universalista dos direitos humanos e o enquadramento do colonialismo como entrave às aspirações de liberdade, justiça e bem-estar de todos revelam uma ligação ao pensamento de Amílcar Cabral, coerente com uma matriz de caráter iluminista.

O propósito autonomista moçambicano da FRELIMO era legitimado pela reivindicação de uma identidade nacional, seguindo um modelo de estado-nação. Para Mondlane, a unidade nacional era o critério necessário para o sucesso da luta anticolonial, sendo uma nova realidade que tinha de ser criada, ainda que pudesse preservar a diversidade cultural, mantendo as especificidades identitárias étnicas e tribais no território. 

Após a morte de Mondlane, o discurso da FRELIMO mudou ligeiramente, assumindo a imposição de uma visão única para a cultura nacional moçambicana, num esforço de obliteração dos particularismos identitários da população.

A aparente coesão ideológica da FRELIMO que se retira da análise da historiografia oficial mais antiga cai por terra quando analisamos muitos dos incidentes ocorridos durante toda a atividade política do movimento. Desde o início ocorreram várias dissidências de membros que não se identificavam com a liderança da Frente e que tentaram criar novas organizações independentistas paralelas.

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mondlane e guevara
Encontro entre Eduardo Mondlane e Che Guevara em 1965, em Dar es Salaam.

Além disso, o clima de contestação interna era potenciado por leituras etnicistas dos acontecimentos. O pluralismo identitário e a perceção da sua importância dentro da FRELIMO foram instrumentalizados por diversos atores políticos dentro do movimento, de forma a competir por lugares de poder e de chefia.

A liderança de Eduardo Mondlane foi algumas vezes contestada, mas o líder manteve-se firme. Grande parte do seu trabalho consistiu em cimentar relações diplomáticas com atores políticos internacionais, angariando apoios para a luta anticolonial em Moçambique. Quando a guerrilha começou, Eduardo Mondlane entrou no campo de batalha e teve um papel importante na tomada de decisões militares estratégicas. A consolidação da posição militar da FRELIMO a partir de 1965, levou ao estabelecimento de zonas “semi-libertadas”, isto é, espaços em que a FRELIMO se conseguiu fixar e dominar a população residente. 

Estas constituíam focos de experimentação dos modelos de sociedade preconizados pela Frente, onde se estabeleceram estruturas de ensino e de formação militar para os militantes. As novas exigências a nível da saúde, educação e alimentação da população fixada nestas zonas geraram divergências entre os dirigentes da Frente sobre o modelo de Estado e governação que deveriam implementar.

A convocação da segunda sessão do Comité Central, em outubro de 1966, em Dar-es-Salaam, na Tanzânia, levou à reorganização das estruturas da Frente, com a criação de um comité político-militar responsável diretamente pela coordenação de ação nas diferentes frentes da luta. O II Congresso realizado em 1968 (pela primeira vez em território moçambicano) consolidou essas alterações estruturais e debruçou-se sobre os domínios da educação, da cultura e da saúde.

Nesse momento, a FRELIMO começava então a definir uma ideologia política que se foi identificando progressivamente com o socialismo. Depois da realização do II Congresso, Mondlane afirmava: “Acredito que a FRELIMO é agora mais socialista, revolucionária e progressiva do que nunca antes, e tende cada vez mais a seguir a direção do socialismo, de tipo marxista-leninista”.

Esta intervenção um tanto ousada por parte de Mondlane é elucidativa quanto à linha de raciocínio que acompanhou a sua ação política na liderança da FRELIMO. No início da luta foi fundamental afirmar uma posição de não-alinhamento ideológico no seio da Guerra Fria para angariar o maior número de apoios possível. 

Naquele momento, com uma posição militar já consolidada e apoiado por um conjunto de países e de outros movimentos anticoloniais de matriz socialista, Mondlane já usufruía de uma confiança no destino da sua causa que lhe permitia afirmar os seus desejos nos planos político e ideológico para Moçambique.

Poucos meses mais tarde foi assassinado na casa da sua amiga Betty King, em Oyster Bay, enquanto se preparava para enfrentar mais uma segunda-feira de trabalho e de luta. A bomba que matou Eduardo Mondlane estava inserida num livro de George Plekhanov traduzido em francês, que continha um selo soviético na sua capa. O relatório do Departamento de Investigação Criminal da Tanzânia reconheceu que se tratava de uma falsificação.

Nas semanas seguintes, a polícia intercetou outros exemplares da mesma obra de Plekhanov destinados a Marcelino dos Santos e Úria Simango (membros da FRELIMO). Através da Interpol e da análise feita pelo Scotland Yard, em Londres, descobriu-se que as baterias dos detonadores tinham sido manufaturadas no Japão e vendidas por uma firma em Maputo. O jornalista britânico David Martin publicou uma reportagem no jornal The Observer em 1972, em que revelou estas informações.

Apesar dos esforços dos historiadores que reuniram testemunhos orais e tiveram acesso aos relatórios forenses, até hoje não há qualquer prova irrefutável sobre o verdadeiro culpado do assassinato. Contudo, o consenso geral é de que a operação foi planeada pela PIDE, uma vez que várias fontes alegam que a bomba foi armadilhada por Casimiro Monteiro. Este já tinha sido apontado por Martin em 1972, como responsável pelo engenho, e a acusação foi corroborada por 2 agentes da PIDE e por um oficial dos serviços de inteligência da Rodésia.

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Funeral de Eduardo Mondlane em Dar es Salaam
Funeral de Eduardo Mondlane em Dar es Salaam, Tanzânia

Ainda assim, a PIDE teve seguramente ajuda por parte de alguém próximo de Mondlane, que pudesse transportar o explosivo até Dar es Salaam. Os dois primeiros suspeitos foram Lázaro N’Kavandame e Silvério Nungu. O primeiro, porque já tinha um historial de contestação ao líder da FRELIMO e o segundo porque tinha acesso direto ao seu correio. Mais tarde, em documentos de imprensa revelados pelos serviços de inteligência italianos, Úria Simango também foi apontado como tendo estado implicado na operação.

As divergências internas na FRELIMO e o clima de contestação que se vivia na altura da morte de Mondlane aumentam o número de suspeitos e impossibilita a obtenção de uma sentença justa e verdadeira.

Numa cerimónia realizada em homenagem a Eduardo Mondlane, Amílcar Cabral concluiu a sua intervenção e elogio fúnebre da seguinte forma: “Pode dizer-se que Eduardo Mondlane foi selvaticamente assassinado porque foi capaz de se identificar com a cultura do seu povo, com as suas mais profundas aspirações, através e contra todas as tentativas e tentações de alienação da sua personalidade de africano e de moçambicano”. 

E as críticas ao colonialismo português não se fizeram esperar.  “Se o colonialismo português e os agentes imperialistas podem ainda assassinar impunemente um homem como o Dr. Eduardo Mondlane, é porque algo de podre continua a vegetar no seio da humanidade: o domínio imperialista. É porque os homens de boa vontade, defensores da cultura dos povos, ainda não realizaram o seu dever à superfície do planeta”.

O legado de Eduardo Mondlane

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Samora Machel e Eduardo Mondlane
Samora Machel e Eduardo Mondlane, históricos líderes da FRELIMO

O exercício biográfico comporta o risco de cair na tentação de heroicizar ou vilanizar a figura que se quer retratar. Procurámos manter algum rigor histórico ao traçar o percurso de vida de Eduardo Mondlane. Sabemos bem que a história escrita pelos vencedores, como foi de algum modo o caso da FRELIMO, tende a apagar os momentos menos felizes da trajetória dos intervenientes.

Ao visitar Maputo em 2018, testemunhámos exemplos de culto aos heróis nacionais na reprodução de estátuas, sobretudo de Samora Machel. No caso de Mondlane, a exaltação da sua figura está presente nas avenidas e nas escolas com o seu nome espalhadas um pouco por todo o país, como é o caso da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. A Oberlin College ainda hoje tem uma bolsa com o nome do líder destinada a estudantes cidadãos de qualquer país da África Subsaariana.

A ligação primordial aos Estados Unidos da América, bem como a posição de privilégio que adquiriu por se ter graduado e integrado nos organismos internacionais de poder, fizeram com que a figura de Eduardo Mondlane acabasse por não ser tão divinizada entre os moçambicanos, como talvez tenha sido o caso do seu sucessor Samora Machel.

Não obstante, Mondlane é, sem dúvida, uma das principais referências na história da libertação de Moçambique. O seu percurso de vida, marcado pela superação de dificuldades e das suas circunstâncias na prossecução das aspirações de liberdade, deixa-nos um exemplo de independência de espírito e, acima de tudo, de coragem.

Hoje, em Portugal, ao confrontamo-nos com o crescimento de discursos de ódio assentes no racismo, na xenofobia e no machismo, a lembrança das histórias daqueles que deram a vida pela liberdade é urgente e necessária. O ensino da História em Portugal continua a passar ao de leve pelos efeitos perversos do colonialismo português e da escravatura. E pouco ou em nada menciona este ativista anticolonial africano. 

Enquanto isso, a exaltação acrítica do imperialismo português, recorrendo muitas vezes a eufemismos que “branqueiam” a história, continua presente. É necessário e urgente revermos a forma como ensinamos História aos nossos jovens. É necessário e urgente trazer ao de cima as histórias dos resistentes e revolucionários africanos. É necessário e urgente relembrar Eduardo Mondlane.