Director do think-tank Progressive Economy Forum em Londres. Foi o principal consultor económico do governo sombra de Jeremy Corbyn e economista-chefe da fundação britânica New Economics Foundation.

Sim, a bolha da dívida chinesa pode estoirar. Mas temos problemas maiores

O colapso da chinesa Evergrande é parte de um problema bem maior, depois de uma década em que os empréstimos não pararam de aumentar. A economia chinesa cresceu à custa de dívidas astronómicas que se foram acumulando. 

Ensaio
22 Outubro 2021

Evergrande, a empresa imobiliária mais endividada do mundo, está à beira da bancarrota. Tendo falhado dois pagamentos aos seus credores na semana passada, o mercado de ações da Evergrande foi suspenso, conforme as autoridades chinesas tentam conter qualquer potencial dano económico causado pelos seus problemas financeiros. Entretanto, num sinal de problemas maiores para o mercado imobiliário chinês, de 52 biliões de dólares, a investidora de luxo Fantasia Holdings Group Co. entrou em incumprimento com um empréstimo de 205 milhões de dólares esta semana. 

Muitos têm comparado os atuais infortúnios financeiros da China com a crise financeira de 2008. Quando o Lehman Brothers, na altura o terceiro maior banco de investimento nos Estados Unidos da América, declarou falência a 15 de setembro de 2008, desencadeou uma onda de falências financeiras, provocando uma crise económica global e consequente recessão.

Alguns economistas temem agora que a potencial bancarrota da Evergrande, sediada em Shenzhen, possa despoletar uma onda de incumprimentos semelhante entre os seus credores, no caso de a bolha da dívida explodir, arrastando os credores internacionais.

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Embora a liderança chinesa já tenha ultrapassado crises financeiras anteriormente - as bolhas da Bolsa de 2013 e 2015, por exemplo -, as próximas semanas serão um teste crítico à capacidade do governo de Xi Jinping para conter as consequências económicas do fracasso da Evergrande.

Assim, o iminente colapso da Evergrande é parte de um problema maior, após uma década em que se permitiu que os empréstimos se multiplicassem, alimentando o crescimento da China à custa da acumulação de dívidas astronómicas em toda a economia. Libertar-se deste modelo é agora a principal prioridade do Partido Comunista.

O crescimento económico da China tem sido estrondoso nos últimos 40 anos, com o governo a transformar um país enorme mas pobre na segunda maior economia mundial, tirando milhões de pessoas das piores formas de pobreza e desencadeando o pânico entre a elite estado-unidense, que teme um desafio para o próprio domínio global. 

No entanto, este crescimento veio com um preço igualmente extraordinário. Com milhares de fábricas abertas, megacidades construídas e centrais elétricas a carvão operacionais, a pegada ecológica do país cresceu colossalmente. A poluição nas cidades chinesas desencadeou protestos ambientais, enquanto a sua liderança começou a fazer grandes promessas para reduzir os danos ambientais da economia.

A dívida doméstica chinesa vale agora 52 % do rendimento nacional, o que está significativamente abaixo dos níveis alcançados pelo Reino Unido (150 %!) ou pelos Estados Unidos antes da crise de 2008.

Entretanto, a desigualdade na China disparou. Embora cerca de 400 milhões de pessoas ganhem agora mais do que o limite da definição de pobreza extrema do Banco Mundial (1 dólar por dia), milhões ainda têm salários muito baixos, especialmente na China rural. Apesar disso, o país conseguiu criar um número recorde de multimilionários. Apesar de o crescimento económico do país ter sido rápido o suficiente para criar alguma prosperidade em grande escala, acabou por beneficiar uma pequena elite muito mais do que o povo chinês.

Desde a crise de 2008, muito menos visível tem sido o crescimento de uma bolha de dívida na economia chinesa que é agora maior do que a dos países notoriamente endividados, como os Estados Unidos da América ou o Reino Unido antes da explosão das suas bolhas. O rácio da dívida total da China relativamente ao PIB, que mede a dimensão da dívida de toda a gente no país em relação ao tamanho da sua economia, está agora nos 270 %.

Assim sendo, a bolha da China diferencia-se da dos Estados Unidos e do Reino Unido em 2008. A dívida doméstica chinesa vale agora 52 % do rendimento nacional, o que está significativamente abaixo dos níveis alcançados pelo Reino Unido (150 %!) ou pelos Estados Unidos antes da crise, mas é um grande salto relativamente aos anos anteriores. Ao passo que as famílias estado-unidenses detinham a maior parte da dívida do país em 2008, no caso da China, esta é em grande parte detida pelo governo e outros organismos semipúblicos, como resultado direto dos esforços feitos pelos líderes chineses para isolar a economia da recessão global após a crise financeira.

Uma solução a curto-prazo

À medida que a recessão global se desenrolou ao longo do ano de 2009 e em diante, o governo chinês avançou rapidamente para auxiliar a economia interna, lançando um notável programa keynesiano de despesa pública para apoiar o emprego e - deve ficar claro - para explorar a fraqueza relativa das economias ocidentais.

A curto prazo, funcionou incrivelmente bem: a China fortaleceu-se através da recessão, mantendo uma elevada taxa de crescimento económico, superior a 9 % por ano. Por acaso, tal acabou por sustentar a economia global ao proporcionar um mercado em crescimento em que os países de todo o mundo podiam vender os seus bens e serviços.

Porém, este resgate teve um preço. Primeiro, o clássico problema capitalista da sobreprodução. Embora o apoio do governo tenha ajudado a manter a procura interna de indústrias essenciais, como o aço - a produção deste metal aumentou 12 vezes em 25 anos até 2016 -, os produtores de aço que procuravam o lucro indicavam produzir mais do que o que mercado interno chinês conseguia comprar. Por sua vez, o governo aprovou o dumping de aço barato nos mercados globais, comprometendo os produtores pelo mundo e levando diretamente ao encerramento de uma unidade siderúrgica em Redcar, na Inglaterra.

Em segundo lugar, e talvez seja ainda mais importante, houve o problema da dívida emitida para disponibilizar dinheiro para despesas adicionais, nomeadamente em infraestruturas. A par deste aumento das despesas governamentais, as restrições aos empréstimos para o setor privado também foram aliviadas.

Graças ao sistema chinês de tributação da propriedade local, em que os valores crescentes do imobiliário podem ser captados através de impostos locais, as autoridades locais e regionais foram fortemente incentivadas a direcionar este fluxo de capital para o desenvolvimento imobiliário. Esta medida ajudou a direcionar o crédito do sistema financeiro mais vasto para o desenvolvimento local, e as autoridades locais ficaram na expectativa de conseguir captar futuros impostos de novos imóveis. 

Por tudo isto, o boom imobiliário da China tem sido - mesmo para os seus padrões superlativos - extraordinário. Contabilizando atualmente cerca de 25 % da sua economia, em 2011, o setor de construção chinês construía o equivalente a uma cidade do tamanho de Roma a cada duas semanas.

Mais, o próprio ritmo acelerado de crescimento económico encorajou maior endividamento. Uma parte da economia em expansão significativa é um grande incentivo para outros investidores entrarem nesse setor ou arriscam-se a perder potenciais lucros. Assim, durante algum tempo, a expansão de uma bolha é autossustentável - no caso da China, dado que os preços dos imóveis estão a subir tanto, o setor atrai mais investimento, o que ajuda a fomentar a sua expansão e um novo pico nos preços.

O problema é que, ao contraírem mais dívida, os investidores também têm de pagar muito mais em juros.  É exatamente o que se passa na China, com os investidores imobiliários a terem de reembolsar 54 mil milhões de dólares de financiamento este ano - um aumento enorme relativamente aos reembolsos de 25 mil milhões de dólares no ano passado. Assim, as empresas imobiliárias altamente endividadas são a maior fraqueza do sistema económico chinês atual, estando a Evergrande no topo desta pilha oscilante de dívida imobiliária.

O balanço de dívida de 300 mil milhões de dólares da Evergrande é o equivalente a aproximadamente 2 % da economia chinesa. Entretanto, estima-se que mais 1 % esteja escondido fora do balanço no "sistema bancário sombra" do país, o vasto sistema de financiamento não oficial e não regulamentado, no valor de 13 biliões de dólares.

As empresas imobiliárias altamente endividadas são a maior fraqueza do sistema económico chinês atual. A Evergrande está no topo desta pilha oscilante de dívida imobiliária.

Ainda assim, a Evergrande só é responsável por 4 % do mercado imobiliário chinês, que está fortemente fragmentado em vários milhares de investidores. Este mercado disperso impulsiona ainda mais a bolha, uma vez que - dada a concorrência feroz - cada investidor tem um grande incentivo para tentar ultrapassar os seus rivais construindo mais e acumulando cada vez mais dívida para tal, arriscando-se a ser expulso do setor.

Geralmente, um investidor imobiliário vende a propriedade inacabada o mais rapidamente possível e usa o dinheiro da venda para mais empréstimos, de forma a construir mais. Este é o modelo de negócio - ou, caso queira, o esquema em pirâmide - no qual a Evergrande se tem apoiado na última década.

Quanto maior o panorama, maiores os problemas

Mas embora o risco de fracasso da Evergrande seja muito real, a maior preocupação é que esta falência arrastaria outras empresas financeiras e imobiliárias altamente endividadas. Com a falha da investidora em cumprir com os pagamentos dos seus empréstimos, os credores entrariam em crise à medida que os seus rendimentos desapareciam.

Este é o pior cenário para os reguladores financeiros da China, com a possível explosão da bolha de dívida a ameaçar impedir os planos da atual liderança do país. A ascensão de Xi Jinping a líder supremo em 2012 foi inicialmente recebida por muitos no ocidente como um regresso à "liberalização" da China - relativamente a liberdades democráticas, mas também a mais reforma no mercado livre.

No entanto, o crash da Bolsa no verão de 2013, que ameaçou empobrecer pequenos aforradores e enfraquecer a estabilidade política interna, assustou seriamente o Partido Comunista. Em resposta, o governo agiu rapidamente ao apoiar o mercado e socorrer alguns aforradores. Desde então, deu uma volta acentuada contra abordagens mais orientadas para o mercado livre.

Sob a liderança de Xi Jinping, promoveu a expansão da produção de alta tecnologia e da procura interna (conhecida como "dupla circulação") e afirmou estar a reinar na desigualdade (e corrupção) da China com o objetivo de aumentar o nível de vida da classe média (propagandeado como "prosperidade comum").

Num ensaio recente, Xi Jinping insurgiu-se contra o crescimento inflacionado da bolha imobiliária, argumentando que as bolhas, e a instabilidade que causam quando rebentam, são um desafio direto aos planos económicos a longo prazo do partido e à estabilidade polítical global do país. Com isso em mente, o objetivo do governo com a Evergrande é conter ao máximo os estragos do seu colapso, tal como, após a falência do Lehman Brothers em 2008, os governos do ocidente apressaram-se a apoiar e socorrer os bancos falidos.

A longo prazo, o mais provável era que o mercado imobiliário chinês se deteriorasse. Foi o crescimento da classe trabalhadora, que se foi expandindo rapidamente conforme se imiscuía na economia global, que, por sua vez, impulsionou a procura por urbanização excecionalmente rápida.

No entanto, essa procura implícita por espaço urbano está agora a diminuir, à medida que a população envelhece e o crescimento populacional abranda. Como resultado, o padrão de desenvolvimento das últimas duas décadas - de crescimento urbano em massa impulsionado pela produção em massa para exportação e pela contratação de mão-de-obra barata - está a atingir o limite.

Abandonar o modelo de crescimento

É com o reconhecimento destes limites que o governo procura construir o mercado interno, apoiando uma classe média de consumo em massa e supervisionando aumentos salariais comparativamente rápidos. O mais recente plano a cinco anos, que abrange o período 2021-2025, fala em apoiar uma "nova fase de construção" de "desenvolvimento de qualidade".

Mas construir este novo mercado mais rico significa desembaraçar-se do modelo de crescimento que tem mantido nos últimos 20 anos. Especuladores sobre-endividados como a Evergrande precisam de ser afastados, mas, tal como desativar uma bomba, tal tem de ser feito com cuidado excecional.

Mesmo agora o governo chinês não se importa com o falhanço de alguns investimentos de risco, uma vez que estes servem para disciplinar o mercado.

Permitir que a Evergrande falhe é arriscar uma conflagração ao estilo do Lehman Brothers. O próprio Lehman falhou quando o governo dos Estados Unidos se recusou a dar assistência financeira. Mas apoiar os investidores apenas empurra o problema para a frente e cria um "risco moral" - ou o que é conhecido em economia como o problema do "pirralho mimado". Quando não castigar alguém por fazer algo estúpido e antissocial apenas os encoraja (e a outros) a ser ainda mais antissociais e estúpidos porque sabem que podem passar impunes.

O resgate relativamente bem-sucedido do fundo de cobertura Long Term Capital Management (LTCM), no valor de 3,65 mil milhões de dólares, concedido aos EUA em 1998 é um bom exemplo. Após ter apostado fortemente no rublo russo, alimentou o falso sentido de segurança entre financiadores de que apostas suficientemente grandes e estúpidas seriam sempre salvas, ajudando assim a criar idiotices de alto risco como o crédito hipotecário de alto risco que rebentou uma década mais tarde, no crash de 2008.

Um jogo arriscado

Como defende Michael Pettis, nas últimas três décadas, os financiadores da China têm agido na crença de que, a determinada altura, o governo os socorrerá sempre, encorajando-os a assumir riscos cada vez maiores - particularmente ao fazer apostas selvagens no mercado imobiliário. Quando o crescimento era rápido e aparentemente ilimitado, isto não tinha grande importância - e em vários momentos da última década, o governo interveio para apoiar os mercados.

É improvável - mas não impossível - que vejamos uma segunda crise do género da do Lehman Brothers advir da falência da Evergrande.

Mas, claro, mesmo agora o governo chinês não se importa com o falhanço de alguns investimentos de risco, uma vez que estes servem para disciplinar o mercado - o que, por sua vez, se enquadra na sua missão mais ampla para se afastar de um modelo de crescimento arriscado e dependente de dívida. Dito isto, é crucial que impeça que estes falhanços financeiros se expandam para o sistema financeiro mais vasto e, posteriormente, para a economia mais vasta, fora do setor imobiliário e financeiro.

Até ver, o governo tenta caminhar nesta corda-bamba, permitindo que investimentos especulativos falhem e contendo os danos quando tal acontece. Na prática, isto verificou-se com a sua entrada para apoiar pequenos aforradores chineses e aqueles que compraram casas à Evergrande. Estima-se que 1,6 milhões de compradores tenham pagado à Evergrande por casas que ainda não estão construídas, e os reguladores chineses deixaram claro que estes são uma prioridade.

Mas tal também significa deixar os credores da Evergrande verem os seus empréstimos à empresa falharem, se necessário. Como resultado, credores do resto do mundo que financiaram a Evergrande na expectativa de obter grandes lucros estão particularmente expostos. Os maiores credores estrangeiros da Evergrande incluem o fundo de investimento britânico Ashmore, a gestora de ativos estado-unidense Blackrock e os bancos internacionais UBS e HSBC.

Poucos, na China ou fora, derramarão lágrimas pelas suas perdas - quem o faria dado o seu histórico pouco exemplar? -, e instituições maiores conseguirão absorver as perdas. Mas ainda existe algum risco de a crise se alastrar caso esses vínculos falidos sejam detidos por instituições mais pequenas e fortemente endividadas fora da China.

É improvável - mas não impossível - que vejamos uma segunda crise do género da do Lehman Brothers advir da falência da Evergrande. Mas com a acumulação de cobranças duvidosas em toda a economia chinesa, e os impactos da pandemia e da crise do fornecimento de energia - desde a escassez de semicondutores a picos nos preços do gás -, a fazerem-se sentir, é bastante provável que haja pequenas falências financeiras.

E com tanta dívida combustível dispersa por todo o país, a mais pequena faísca pode despoletar um vasto incêndio. O combate anti-incêndios dos reguladores financeiros só pode atenuar o problema por tanto tempo.

Fundamentalmente, o sistema financeiro desequilibrado da China precisa de uma limpeza do crédito malparado antes de poder trabalhar sem risco de explodir. Mais, para que a sua economia se mantenha em funcionamento, é vital que o poder e a riqueza sejam retirados das mãos da elite chinesa e que sejam devolvidos aos cidadãos comuns.

Artigo originalmente publicado no britânico Novara Media