Formado em Engenharia do Ambiente e doutor em Filosofia Social e Política. Autor de diversos livros, entre eles A Liberdade dos Futuros.  

Recuperar o conceito de Liberdade

O campo progressista está na defensiva, de quase exclusiva defesa de conquistas passadas. Divididas entre uma esquerda com uma abordagem populista, uma ecologia por vezes em falta sobre as preocupações sociais e uma social-democracia cada vez mais centrista, as forças progressistas podem ter na liberdade uma causa que as una.

Ensaio
28 Abril 2022

Ao longo da história, poucos conceitos terão sido mais disputados do que o conceito de liberdade. Várias razões ajudarão a explicar este facto, mas há um motivo que se sobrepõe aos restantes: sendo a liberdade, enquanto conceito mais ou menos abstrato, algo intrínseca e instrumentalmente positivo, a sua obtenção e manutenção será sempre um objetivo a alcançar. Tal como no passado, também no presente e certamente no futuro, a ideia de liberdade será objeto de construção, de redefinição e de luta. 

Quando assinalamos o primeiro 25 de Abril em que se passaram mais dias de democracia que das ditaduras militar e Estado Novo, falar de liberdade - e de liberdades - é um bom mote para preparar o futuro.

A Liberdade como passado

Comecemos por um curto e forçosamente muito incompleto resumo de algumas ideias e conceções de liberdade que marcaram o seu tempo e continuam a influenciar o debate no presente. É na Grécia Antiga que o conceito de liberdade começa a ganhar destaque, estando associado à sua conceção de democracia. Podendo variar ligeiramente de uma cidade-estado para outra, um elemento era comum a esta visão de liberdade: o bem comum, o interesse do coletivo e o reforço da comunidade eram mais importantes do que os interesses individuais. Ser livre era, portanto, contribuir ativamente para o bem comum. 

Esta conceção de democracia e liberdade é posteriormente adotada e revista na República Romana e na Roma Imperial, onde a obrigação de contribuir para o bem comum como única forma de ser livre perdeu alguma força. Ainda assim, manteve-se  atual como oposição a uma visão egoísta e individualista de liberdade - conceito ao qual, diga-se, tanto um grego como um romano dessa época teria até dificuldade em entender. 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

O republicanismo, enquanto teoria política que tem no seu âmago o conceito de liberdade, inspira-se nestas origens, pelo que a conceção republicana de liberdade pode ser dividida em duas grandes linhas, ambas com presença nos debates da atualidade: de um lado, a conceção que emerge da Grécia Antiga, conhecida como (neo)aristotélica e, do outro, a conceção (neo)romana.

Só vários séculos mais tarde é que estas conceções clássicas de liberdade começaram a ser desafiadas. Ficou famoso, por exemplo, o discurso do filósofo Benjamin Constant, no qual comparava a liberdade “dos antigos” com a liberdade “dos modernos”. Defendia assim uma atualização do conceito aos olhos da sua realidade de início do século XIX. 

Mas foi Thomas Hobbes, logo no século XVII, quem veio a lançar as bases de uma liberdade “liberal”, e que marcou o futuro. No Leviatã, Hobbes definiu um homem livre como aquele que "não é impedido de fazer o que deseja", rompendo assim de forma radical com as conceções clássicas de liberdade enquanto pertença à comunidade e promoção do bem comum.

Muitos outros autores e teorias contribuíram para esse trabalho sempre em curso de definição de liberdade - o conceito de liberdade foi também a base de algumas teorias políticas, podendo ser considerado como o conceito fundador do anarquismo. Não são, portanto, de estranhar os diferentes entendimentos do termo liberdade. 

Se fosse possível trazer para o presente um cidadão da Grécia Antiga, um membro do Senado da República de Roma, um cidadão florentino do século XVI ou um francês do início do século XIX e pedir-lhes para explicar porque - e como - são livres, as respostas seriam muito diferentes. O uso do masculino aqui não é inocente: nas suas origens, na Grécia ou Roma Antigas, a cidadania estava reservada apenas a (poucos) homens. Ser-se livre era, portanto, um privilégio de uma minoria. 

A Liberdade como presente

As discussões à volta do conceito de liberdade na segunda metade do século XX ficaram marcadas pela conferência do filósofo e historiador Isaiah Berlin, de 1958, onde discutiu duas conceções de liberdade: a positiva e a negativa. 

A conceção positiva de liberdade implica que uma pessoa é livre na medida em que pode ser mestre de si próprio e de exercer autodomínio. A conceção negativa é mais simples de explicar, e pode ser ser simplesmente definida como a ausência de interferências. Ser livre neste sentido implica ter a possibilidade de escolher entre o maior número possível de opções - não apenas a que poderíamos desejar num determinado momento - sem sofrer a interferência intencional de outrem, que por sua vez poderia reduzir o número de opções disponíveis. 

Podemos então resumir ambas as conceções dizendo que a liberdade negativa é estar livre de interferências externas, enquanto a liberdade positiva se refere à possibilidade para viver de acordo com a própria vontade e exercendo autodomínio. Berlin rejeita claramente a liberdade positiva ao alegar que o facto de o Estado ter de decidir quais as liberdades a ser preservadas levaria à tirania. 

Antes os indivíduos podiam exercer a sua liberdade,  quanto à participação cívica e à entreajuda, hoje isso deixou de ser possível em nome da suposta liberdade dos outros. 

Esta importante análise exagera no seu maniqueísmo, sendo certamente marcada pela própria experiência de vida de Berlin e por uma época em que o mundo político se dividia em dois grandes blocos (ideológicos). Não por acaso, os atuais teóricos republicanos reclamam a liberdade republicana entendida como não-dominação de uma terceira conceção de liberdade que rompe com a prisão exclusivamente dualista criada por Berlin. Assim, a liberdade como não-dominação exigiria ausência de algo (isto é, dominação - não confundir com interferências), mas sempre com o objetivo de servir para algo. Não negativa, não positiva, mas sim uma terceira conceção agregando os aspetos mais relevantes de ambas.

As definições de Berlin tiveram, ainda assim, uma consequência profunda que ainda se faz sentir. Sendo dualista e optando claramente por uma conceção de liberdade, Berlin - e quem se lhe seguiu, desde logo no plano político - terraplanava conceções alternativas de liberdade. Ser livre tornou-se, ao longo das décadas, sinónimo de um conjunto cada vez mais limitado de qualidades. 

E é precisamente aqui que a discussão que poderia ser vista como simplesmente filosófica se traduz em política concreta. Conseguindo-se definir hegemonicamente e de um modo restrito o conceito de liberdade, passa a ser possível usar essa definição como arma política. Quem, afinal, não quer mais liberdade? Não surpreende, portanto, que a direita espanhola use como slogan “Liberdade ou Socialismo”, reforçando novamente um dualismo entre duas visões do mundo. Fácil é de ver que quando confrontados com a escolha entre liberdade e algo, esse algo sairá sempre derrotado. 

Como no caso espanhol, esta construção do conceito de liberdade como parte de um projeto político e económico avançou em força noutros países. Não só impulsionada pelos governos, é também pelas empresas privadas que apostam num modelo assente na otimização do tempo de modo a promover a liberdade - pelo menos daqueles que compram os seus serviços ou produtos.

Se a própria ideia de liberdade tem sido historicamente uma ferramenta de emancipação, tornou-se agora forma de conservação de privilégios quando não de repressão. Da liberdade pelos direitos universais, passamos a uma liberdade pelos privilégios. De uma liberdade ao serviço de todos, passamos a uma liberdade de apenas alguns. Viu-se como a liberdade era o argumento usado contra qualquer tipo de medida de defesa contra a pandemia de covid-19, e não é rara a manifestação de extrema-direita onde não se peça mais liberdade - na maioria dos casos é a de expressão, como se esta estivesse em risco. Liberdade, sim, mas qual?

Há ainda uma outra consequência perversa nesta tentativa de afunilamento da conceção de liberdade à luz de uma visão política e económica ultraliberal. Onde antes os indivíduos podiam exercer a sua liberdade, nomeadamente no que diz respeito à participação cívica e até à entreajuda, hoje isso deixou de ser possível em nome da suposta liberdade dos outros. 

Comprimindo-se o tempo disponível, reduzimos na prática as possibilidades de expressão da liberdade.

No editorial de um número recente da revista Philosophie Magazine, é-nos dito como antigamente qualquer camionista pararia sem hesitar para ajudar um colega com uma avaria. Hoje, fruto dessa ultra-otimização do tempo em nome da liberdade (para consumir), esse mesmo motorista não pode exercer a sua liberdade de ajudar um colega - coisa que faria, como vimos, noutras circunstâncias, desde logo se não sofresse consequências pelo atraso da sua entrega.

Quando eu poderia preparar a minha refeição se tivesse tempo, vejo-me agora na necessidade de encomendar comida, reduzindo por arrasto a liberdade daqueles que nos providenciam com esse serviço. Temos assim em confronto uma conceção de liberdade compressora do tempo como limitadora da liberdade da entreajuda e da convivialidade. 

Fecha-se um círculo que resume bem o presente que vivemos. Num mundo cada vez mais acelerado, ser-se livre é entendido como poder pedir que me levem comida a casa, que me entreguem quase imediatamente um qualquer aparelho eletrónico ou que possa escolher, caso tenha poder e riqueza para isso, a escola onde os meus filhos devem estudar.

A Liberdade como Futuro

Como será a partir daqui? Que conceção de liberdade poderá dar uma resposta efetiva e justa aos problemas que enfrentamos? 

Num outro ensaio publicado no início do ano, defendo uma abordagem ecorrepublicana como forma de garantir a liberdade dos futuros. Esta abordagem pretende, à luz das múltiplas crises ecológicas que o planeta vive, recuperar e atualizar a visão republicana de liberdade. 

A liberdade entendida pelo ecorrepublicanismo baliza esse conceito da seguinte forma: a liberdade deve ser promovida mas não à custa da destruição da ecosfera, numa espécie de fuga para a frente niilista; e, em paralelo, a defesa da ecosfera não pode ser feita à custa da liberdade, como seria o caso em visões ecofascistas e eco-autoritárias.

A defesa da ecosfera não pode ser feita à custa da liberdade, como seria o caso em visões ecofascistas e eco-autoritárias.

Não por acaso, o republicanismo enquanto teoria política é tão duradouro. Assente nos princípios basilares definidos na Revolução Francesa de 1789 - a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade -, permite uma reinvenção constante, adaptando-se assim aos novos desafios. A adição da dimensão ecológica - às quais se podem e devem juntar outras, como as da igualdade (económica e de género) - vem assim reforçar o ideário republicano e prepará-lo para dar respostas a um mundo de colapso ecológico e de desigualdades económicas cada vez mais vincadas.

Passando agora a uma abordagem mais prática, como poderia esta liberdade ser traduzida em medidas e ações concretas? Uma boa fonte de inspiração é o 25 de Abril de 1974 que agora celebramos e no qual a revolução e a construção da Liberdade foi desde cedo traduzida num conjunto de ações e ideias concretas e ambiciosas. O seu pináculo foram os 3D: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. O resto deste ensaio servirá para apresentar algumas ideias que poderiam ajudar a definir esses novos objetivos concretos de liberdade. 

A liberdade como bem comum e partilhado

A primeira tarefa, provavelmente a mais complexa, é avançar na discussão ideológica e filosófica, recuperando a ideia de liberdade como bem comum e partilhado. Como já referido, o afunilamento - e a apropriação político-ideológica - do conceito de liberdade é resultado de um esforço deliberado de décadas e com um objetivo claro: apoiar e avançar com uma agenda económica assente no neoliberalismo, na competição desenfreada e num suposto princípio de meritocracia onde todos, independentemente dos pontos de partida e das possíveis condicionantes, temos a liberdade de singrar caso tenhamos mérito. 

Compete sobretudo à esquerda e aos ecologistas recuperar a conceção de liberdade como bem comum e partilhado. De notar que a sua atual conceção hegemónica é altamente nociva em termos ecológicos, dada a sua recusa de limites (exemplo: taxas, impostos, interdição de alguns tipos de produtos) e a crença num modelo económico assente no “crescer ou morrer”. Também aqui, a justiça social tem de estar de mãos dadas com a justiça ambiental. 

Vemos, em Portugal mas não só, as forças progressistas numa posição defensiva e de quase exclusiva defesa de conquistas passadas. 

Mas esta não é, como dizia, uma tarefa fácil. Isto enquanto as forças ultraliberais e até a extrema-direita avançam com as suas distopias… em nome da liberdade. 

Recuperar a ideia de liberdade como elemento constituinte de um projeto progressista é um passo essencial. Dividido entre uma esquerda com uma abordagem populista, uma ecologia por vezes em falta no que diz respeito às preocupações sociais e uma social-democracia cada vez mais centrista, este campo progressista pode ter na redefinição da conceção de liberdade uma causa que o una e que sirva para voltar a motivar a cidadania. 

A liberdade como universalismo pluralista

O republicanismo, e a sua versão ecologista, assenta numa ideia de universalismo e de pertença à República. Esta realidade, visível em países como França, leva por vezes a uma tentativa de uniformização do universalismo. Nesses casos, a ideia de universalismo e de pertença é apresentada como sacrossanta e quem se lhe oponha é, por definição, antirrepublicano. 

Como quem define os critérios exatos da definição de universalismo é quem está numa posição de poder, a consequência lógica é que as minorias, nas suas múltiplas especificidades, são levadas a uma escolha dual: ou abandonam as suas diferenças e abraçam uma definição de universalismo por outros exclusivamente definida, ou são vistas como antirrepublicanas. A sua liberdade, uma vez mais, é bloqueada numa escolha maniqueísta. 

Concretizar a liberdade nesta segunda década do século XXI tem de passar pela construção de um universalismo pluralista.

Por outro lado, a afirmação da existência das diferenças pode levar a uma rejeição da ideia de universalismo. Reforçando  não raras vezes micro diferenças, avança-se com um projeto seccionado, onde cada grupo, quando não cada indivíduo, afirma a sua exclusividade. Rejeita-se assim a pertença a alguma identidade coletiva para lá da do seu grupo mais restrito. 

Nestes casos, a liberdade passaria então pela possibilidade de afirmação fora da pertença a um grande grupo único a nível nacional e, não menos importante, pela própria possibilidade de definição de um grupo de pertença. Isto num constante reinventar onde o denominador comum é a rejeição do universalismo.

Concretizar a liberdade nesta segunda década do século XXI tem de passar pela construção de um universalismo pluralista, erigido entre as visões opostas apresentadas nos dois parágrafos anteriores. Abraçando o universalismo enquanto causa comum, esta visão de liberdade tem de saber concretizar o dar poder e dar voz às minorias, assegurando a sua representação e visibilidade como parte da República. 

A liberdade pelos comuns, para lá do mercado e do Estado

A liberdade pela igualdade é também uma condição necessária para a liberdade como futuro partilhado. O Estado deverá ter, portanto, um papel importante no combate às desigualdades e na preservação das áreas estruturais do país. Essa lista deverá incluir, pelo menos, a educação, a saúde, a habitação, o abastecimento de bens essenciais (água e saneamento, eletricidade, internet, infraestruturas). 

A liberdade aqui entendida não se deve resumir ao papel do Estado, mas também reconhecer um papel para o mercado e pensar-se numa terceira dimensão, a dos comuns.

Privilegiar o uso dos comuns é ultrapassar a divisão estanque entre Estado e mercado, revendo também o próprio conceito de propriedade privada, da sua acumulação e da sua transmissão. A ideia de usufruto, não a de posse, é aqui essencial. 

Apostando nos comuns, evitar-se-ia também a armadilha dos que defendem a liberdade como sendo conseguida exclusivamente no mercado (mais ou menos desregulado), sendo esse o estado natural da economia - o mercado como regra e o Estado como exceção. Precisamos de ultrapassar essa dicotomia, confrontar o próprio conceito de propriedade e construir a liberdade pelo usufruto dos recursos comuns. 

A liberdade como descompressão temporal

Por fim, uma última ideia sobre como recuperar o conceito de liberdade enquanto causa progressista: a descompressão do tempo. Ser-se livre implica, antes de tudo o mais, ter-se tempo para expressar a sua liberdade. De que adiantaria ser a pessoa mais livre do mundo se não tivesse um único minuto para usufruir dessa liberdade? Seria essa pessoa sequer livre? Vivemos numa época onde nos dizem sermos mais livres do que nunca mas onde nos falta tempo para quase tudo. A realização do ser humano exige que disponha de tempo para perseguir os seus objetivos e do mesmo modo, pois ser um cidadão ativo e participar na vida da comunidade exige tempo. 

Construir a liberdade como futuro exige portanto a descompressão do tempo, reduzindo o número de horas dedicadas a um emprego e assegurando os meios para que os nossos desejos possam ser realizados. Esta descompressão passa também por um inevitável travão à aceleração das nossas vidas e ao “encolhimento do presente”, como lhe chama o sociólogo alemão Hartmut Rosa. Apenas assim, usufruindo do nosso direito ao tempo, poderemos ser verdadeiramente livres.