Doutorada em Filosofia Política pela Universidade de Coimbra e investigadora no Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra. Foi professora de Ética e Filosofia do Direito no Brasil.

Índice

Quem tem medo do totalitarismo? 70 anos da obra que redefiniu o cenário político do século XX

A comparação entre comunismo e nazismo ganhou especial destaque no discurso político anticomunista ocidental durante a Guerra Fria. É uma interpretação simplista d'A Origem dos Totalitarismos e oculta a tentativa de Hannah Arendt em caraterizar o totalitarismo como fenómeno de elementos ligados à burguesia ao longo da história europeia.

Ensaio
9 Agosto 2021

Há 70 anos foi publicada a obra que redefiniu o cenário político do século XX. Em 1951, a filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt publicou o livro As Origens do Totalitarismo e, entretanto, o National Review e o jornal francês Le Monde consideraram-no um dos 100 melhores livros do século XX. No entanto, além dos elogios e do impacto indiscutível da obra, também há polémicas e controvérsias que perpassam o seu conteúdo político-ideológico e que ainda dividem teóricos, políticos, críticos, ou simplesmente admiradores da filósofa.

Logo no início de 2017, com a chegada do populista de extrema-direita Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, o estoque do livro esgotou no site da Amazon por causa de um súbito aumento do interesse público em torno de obras sobre o totalitarismo. No Brasil, no processo eleitoral que veio a eleger o extremista Jair Messias Bolsonaro em 2018, o livro foi também um dos escolhidos por artistas e figuras públicas para ser exibido durante o ato eleitoral como demonstração de repúdio em relação a discursos extremistas e antidemocráticos.

E, em 2019, depois da aprovação no Parlamento Europeu da resolução que equiparou o nazismo ao comunismo, As Origens do Totalitarismo voltou novamente ao centro do debate político, seja por parlamentares, jornalistas, académicos ou simplesmente interessados no tema em geral. Esta posição dividiu intelectuais liberais e parte da esquerda parlamentar, que resgataram as tensões e confusões ainda existentes em torno do conceito de totalitarismo.

DEPENDEMOS DE QUEM NOS LÊ. CONTRIBUI AQUI.

Contudo, apesar de o termo se ter popularizado com Hannah Arendt, foi o jurista de Weimar e académico nazi Carl Schmitt, que em 1927 o utilizou pela primeira vez no contexto que mais tarde Arendt viria a adotar. No texto, o conceito do político, em alemão Der begriff des politischen (que depois de ampliado se tornou uma influente obra, publicada na sua versão final apenas em 1932), Schmitt insere a expressão “Estado total”.

Nela desenvolve o conceito contra a despolitização liberal de áreas como a religião e a economia. Entende que só o “Estado total” é realmente democrático, já que anula (Aufhebung) a separação entre a sociedade e o Estado.

Nesse sentido, apesar de Arendt adotar instrumentalmente o termo “totalitarismo” para equiparar o regime nazi ao comunista, o arcabouço político que sustenta a sua utilização é substancialmente diferente. Enquanto Schmitt defende que se deve reivindicar que tudo é político, Arendt preserva o ideal de separação daquilo que ela designa como questão social da esfera política. Acaba, então, por adotar uma postura antissocial ao conceber que a política de massas é o espaço propício ao desenvolvimento e à estruturação de regimes totalitários – postura comum dentro do pensamento liberal – e antagónica ao pensamento de Schmitt, profundo crítico das democracias liberais.

Para Slavoj Žižek, o totalitarismo enquanto noção ideológica sempre teve a função estratégica de garantir a hegemonia liberal.

No entanto, é importante dizer que o resultado dessa equação não se dá de maneira tão simples e óbvia, como se pode perceber quando nos debruçamos sobre o livro com algum cuidado. Dividido em três partes: antissemitismo, imperialismo e totalitarismo. As duas primeiras partes dedicam-se a compreender o panorama político que precede os regimes de Hitler e Estaline, enquanto a terceira oferece uma descrição desses regimes.

A instrumentalização da terceira parte do livro como elemento central da obra oculta a tentativa, por parte da autora, de caracterizar o evento totalitário como fenómeno composto por vários elementos estreitamente ligados à burguesia ao longo da história europeia, como a corrida imperialista e o desenvolvimento das relações financeiras entre judeus e o Estado. 

A opção por uma interpretação mais simplista acontece por interesses diversos, entre eles o argumento de que a constatação do falhanço dos sistemas democráticos dificultaria o estabelecimento da oposição entre totalitarismo e democracia, o que poderia vir a contribuir para a formação de um discurso de ódio contra a mesma.

Essa equação confere à democracia burguesa o status de salvaguarda contra a barbárie, de forma que qualquer esforço de alteração emerge como suspeito, ou como tentativa de atacar o sistema responsável por proteger a democracia.Este recorte textual impede alguns leitores de reconhecerem que existe uma crítica, ainda que insuficiente, à burguesia que não afasta a democracia liberal da participação na catástrofe, constituindo-se antes como cristalização do evento totalitário.

O repúdio em relação à burguesia e, por conseguinte, à democracia por ela representada perpassa toda a história da Europa, mas não a dos Estados Unidos. É nesse sentido que Michel Foucault, em O Nascimento da Biopolítica, especificamente na sua aula ministrada a 14 de fevereiro de 1979, reconstrói o crescimento do neoliberalismo.

Já em O Passado de uma Ilusão, de 1996, diante do enlace dicotómico entre democracia e totalitarismo, o historiador François Furet lamenta o que considerou ser “o escândalo do mundo fechado” e opta pela defesa da democracia, ainda que denuncie o apoio que os movimentos fascistas tiveram de diversos sectores da burguesia.        

Para além das tensões já enunciadas, ao igualar o nacional-socialismo ao comunismo, Arendt defende que ambos os regimes visam destruir todas as tradições sociais, legais e políticas, interpretação que ganhou relevante destaque no discurso político anticomunista ocidental durante a era da Guerra Fria – comunismo e fascismo eram equalizados à base da recusa da separação entre Estado e sociedade.

É na esteira dessas dicotomias que, no seu livro publicado em 2001, Alguém Disse Totalitarismo?, Slavoj Žižek denuncia as semelhanças entre o totalitarismo e a democracia liberal moderna, encarando o totalitarismo como um consenso liberal-democrático em si.

Para o filósofo esloveno, o totalitarismo enquanto noção ideológica sempre teve a função estratégica de garantir a hegemonia liberal. Žižek rejeita a crítica de grande parte da esquerda de que a democracia representativa seria o reverso das ditaduras fascistas de direita. Para tanto, reforça que a exaltação de Arendt como autoridade no tema por parte da esquerda só demonstra a sua facilidade em aceitar as coordenadas da democracia liberal (democracia versus totalitarismo).

Se percebermos a crítica de Žižek dentro do quadro estabelecido pela Guerra Fria, o conceito de totalitarismo ao qual Arendt é associada foi realmente crucial para uma estratégia ideológica destinada a desarmar qualquer argumento contra a democracia vigente, um em que qualquer pessoa que questionasse o sistema era imediatamente vista como impulsionadora de regimes totalitários.

O nazismo foi uma reação à Revolução Alemã pós-I Guerra Mundial e o estalinismo um contramovimento em resposta à Revolução Bolchevique de 1917.

Especialista em Hannah Arendt, Margareth Canovan desenvolveu reflexões sobre a interpretação de totalitarismo em Arendt que nos conduzem a um questionamento ainda mais instigante: os regimes liderados por Adolf Hitler e Josef Estaline caracterizar-se-iam, de facto, como regimes totalitários no sentido de Schmitt, ou seriam degenerações burocráticas?

Para respondermos a esta questão, é relevante compreendermos que ambos os processos foram cooptados por contramovimentos. Ou seja, tanto o nazismo é uma reação à Revolução Alemã pós-I Guerra Mundial, como o estalinismo é um contramovimento em resposta à Revolução Bolchevique de 1917. Assim como o bonapartismo foi uma contrarrevolução em resposta à Revolução Francesa.

Em The Struggle Against Fascism in Germany, no panfleto de julho de 1934 intitulado Bonapartism and Fascism, Trotsky defende que o fascismo é uma contrarrevolução a partir de um quadro da economia política capitalista. Trotsky caracteriza Hitler e Estaline como bonapartistas, ainda que em contextos de economias políticas diferentes. Em todo o caso, trata-se de uma cooptação contra o movimento revolucionário. O nazismo e o estalinismo emergiram como contramovimentos que, instrumentalmente, se serviram de elementos revolucionários.

A transformação para uma revolução democrática socialista internacional é, nesse sentido, contida pelos dois lados: por Estaline, com a burocratização e a abolição dos sovietes e o foco do socialismo num só país; e, por outro lado, com o nazismo e a sua combinação característica de militarização e nacionalismo que silenciaram a Revolução Alemã. Ainda que guardassem elementos da simbologia operária socialista, dentro dos regimes não avançaram com uma economia socialista e democrática.

Hannah Arendt interpreta estes eventos históricos de forma diferente. Apesar de reconhecer o marxismo como teoria que pensa o mundo a partir de uma perspetiva de transformação, entende que o movimento socialista, na sua forma social-democrata, não se efetivou enquanto teoria totalitária. Porque Marx e Engels não levaram em conta as oposições nacionais. Na medida em que a classe trabalhadora foi cooptada pelos Estados-nacionais, afastou-se de um projeto político a partir de uma ideia total, escreveu a filósofa no livro.

O que Arendt não diagnostica é que esse processo é fruto do próprio movimento antirrevolucionário que fez com que a classe trabalhadora começasse a ter interesses comuns aos do imperialismo. Focada apenas em melhorias sociais individuais, a própria classe trabalhadora passa a ter interesse nos Estados nacionais, em vez de defender a sua abolição, como propunha a Segunda Internacional antes da Primeira Guerra Mundial ao advogar a solidariedade internacional entre a classe trabalhadora.

Contra essa tendência nacionalista da Internacional Socialista, e reapropriando-se do lema do Manifesto Comunista (1848) – “Proletários de todos os países, uni-vos” –, cristalizaram-se na Conferência Socialista de Zimmerwald, em 1915, os primórdios daquilo que viria a ser a Internacional Comunista: o apelo à ideia de uma revolução socialista total e internacional para acabar com a guerra imperialista.