Jurista e membro do Serviço Jurídico da Comissão Europeia. Feminista e de esquerda. O que aqui escrevo só me vincula a mim.

Portugal viola a Convenção de Istambul quanto ao crime de violação. Até quando?

Protegeremos as vítimas de violação quando passarmos aos agressores a mensagem clara de que não toleramos a violação e lhe fazemos uma guerra sem quartel. É absolutamente insuportável que este crime continue a não ser considerado público na lei.

Ensaio
19 Novembro 2021

Portugal foi um dos primeiros Estados a aderir à Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, commumente designada Convenção de Istambul. Foi negociada e assinada nesta cidade turca, e Portugal ratificou-a em 2013, entrando em vigor em 2014. 

Mas não se julgue que por sermos um dos primeiros Estados a assinar este tratado internacional a nossa conduta em matéria de prevenção e combate à violência contra as mulheres  é exemplar. Está, aliás, longe disso. Basta lembrar que, só em 2020, morreram em Portugal, às mãos dos seus companheiros ou ex-companheiros, 27 mulheres.

A violência sexual é uma das mais recorrentes formas de violência  contra as mulheres. Com exceção do femicídio, a violação é talvez a mais grave expressão da violência patriarcal – aquela em que, de forma mais gritante, o nosso corpo é coisificado e tratado como simples veículo para a satisfação dos desejos sexuais de homens que nos veem como infra-humanas. Vale a pena recordar que, na Europa, a esmagadora maioria das vítimas de violação são mulheres.

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No que à tipificação dos crimes contra a liberdade sexual diz respeito, Portugal está em situação de incumprimento da Convenção de Istambul há mais de sete anos (desde que entrou em vigor em 2014) em dois aspetos: aquele que deve ser o elemento central destes tipos penais (a falta de consentimento) e a natureza jurídica (pública) destes crimes. Vamos então por partes.

Relativamente ao primeiro aspeto, o artigo 36.º da Convenção de Istambul estipula que os crimes contra a liberdade sexual tipificados nas ordens jurídicas dos Estados contratantes devem estar centrados na falta de consentimento da vítima. Isto parece evidente, mas na verdade não é tanto assim. Ainda hoje, a imagem que culturalmente associamos a uma violação é a de um ataque numa viela escura em que a vítima é obrigada, por meio de violência, a ter relações sexuais não desejadas com um desconhecido. A vítima luta bravamente contra o seu agressor, mas é vencida pelo poderio físico deste, que acaba por  dominá-la e a viola com brutalidade.

A realidade é, no entanto, muito distinta desta ideia hollywoodesca: a esmagadora maioria dos agressores faz parte das relações familiares ou de proximidade das vítimas. Apenas 9% dos agressores são desconhecidos da vítima e, por frequentemente não ser exercida violência física (“apenas” manipulação psicológica ou a ameaça mais ou menos velada de violência física), a vítima demora muitas vezes vários anos a sequer tomar consciência de que foi violada.

Nem sempre temos vítimas que choram convulsivamente: as mais das vezes temos vítimas que sentem vergonha e nojo de si próprias e que se sentem culpadas do que lhes aconteceu.

Há também um protótipo da vítima ideal: aquela que lutou até ao limite das suas forças para defender a sua honra e que chora muito ao relembrar aquilo por que passou. A realidade é, mais uma vez, muito distinta disto: a maioria das vítimas relata ter reagido com passividade durante o ataque, para evitar maior violência, e fala mesmo em dissociação, recordando a sua violação como um momento em que se sentiu fora do próprio corpo, como que observando de fora aquilo que lhe estava a acontecer

As emoções de uma vítima de violação são complexas e difíceis de processar, não havendo uma forma correta ou sequer típica de uma vítima se comportar após o crime. Nem sempre temos vítimas que choram convulsivamente: as mais das vezes temos vítimas que sentem vergonha e nojo de si próprias e que se sentem culpadas do que lhes aconteceu.

Estas ideias feitas sobre o que é uma violação e como se devem comportar as vítimas deste crime prejudicam-nas gravemente, revitimizando-as, e até a própria investigação criminal é muitas vezes inquinada por intervenientes pouco sensibilizados para a realidade dos crimes sexuais e de como uma vítima reage ou se comporta. 

A este propósito, vale muito a pena ver o primeiro e segundo episódios da série Unbelievable, da Netflix. No primeiro episódio, temos dois homens embebidos de todos os preconceitos sobre como deve comportar-se uma vítima de violação e que, com a sua falta de empatia para com a vítima, comprometem de forma quase irreversível a descoberta da verdade (que é, afinal, o fim último do processo penal). No segundo, acompanhamos uma mulher que, tendo recebido formação específica para lidar com este tipo de crimes, respeita o tempo e a intimidade da vítima, não a faz repetir-se vezes sem fim, não tem ideias feitas sobre como ela deveria reagir ou comportar-se, ouvindo empaticamente aquilo que lhe é relatado e acompanhando a vítima no seu próprio percurso de tomada de consciência daquilo que lhe aconteceu.

Como vimos no caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a lei pode (e deve) ser pedagógica e, estando um passo à frente desta, conduzir a sociedade a repensar as suas ideias feitas e promover o progresso coletivo no sentido de sermos uma comunidade jurídica mais justa e mais humana. Centrar os crimes sexuais na simples falta de consentimento teria, de facto, não só efeitos práticos muito benéficos para as vítimas atuais, mas também efeitos preventivos importantes na diminuição do sofrimento e vitimização secundária das vítimas futuras, ao consciencializar a sociedade para a complexidade dos crimes sexuais. 

O recente episódio de um reality show em que um concorrente confessou, entre risos, ter cometido um crime, ao “envolver-se” com outra concorrente enquanto esta dormia, demonstra bem a importância desta mudança de paradigma. Já agora, sejamos claros: a ser verdade aquilo que disse, ele não se “envolveu” com ela; ele abusou sexualmente de pessoa incapaz de resistência, que é um crime previsto e punido pelo artigo 165.º do CP!

As situações de stealthing não cabem em nenhum dos crimes contra a liberdade sexual atualmente previstos na lei portuguesa, porque não existe no stealthing violência, ameaça grave nem constrangimento da vítima.

O Estado português subscreveu, por via da ratificação de Convenção de Istambul, a obrigação de transformar a falta de consentimento na pedra de toque dos crimes contra a liberdade sexual, mas o crime de violação continua a depender da existência de violência, ameaça grave ou constrangimento da vítima no Código Penal português (artigo 164.º). É evidente que a violência não é nem pode ser irrelevante, devendo ser uma circunstância agravante da violação e demais crimes sexuais, mas não deve (nem pode, diz a Convenção de Istambul) ser condição sine qua non para que estejamos perante um comportamento punível penalmente.

Além das consequências que isto tem no perpetuar de ideias erradas sobre o que é uma violação, esta desconformidade com a Convenção de Istambul tem ainda uma consequência prática muito concreta e inultrapassável: deixar de fora dos crimes sexuais tipificados comportamentos que constituem um atentado contra a liberdade sexual das suas vítimas. 

É o caso do stealthing, que consiste na remoção não consentida do preservativo durante o ato sexual. Este comportamento não cabe em nenhum dos crimes contra a liberdade sexual atualmente previstos na lei portuguesa, porque não existe no stealthing violência, ameaça grave nem constrangimento da vítima. A vítima quis aquela relação sexual, mas condicionou o seu consentimento à utilização de um preservativo. Retirá-lo significa, assim, agir sem o seu consentimento. Portanto, à luz da Convenção de Istambul, tem de ser um ato punido pela lei penal. Só que nulla poena sine lege – não há pena sem lei –, pelo que, no ordenamento jurídico português, é simplesmente impossível punir este comportamento. Há um vazio legal que deixa as vítimas de stealthing totalmente desprotegidas.

A este propósito, a Professora Teresa Pizarro Beleza deixa uma interrogação muito pertinente: se o crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada (artigo 190.º do CP) apenas pressupõe a falta de consentimento da vítima (não a violência, a ameaça ou o constrangimento), devemos então concluir que entrar sem consentimento na casa de alguém é mais grave do que entrar no seu corpo? A resposta negativa parece óbvia, mas o facto é que o legislador penal português continua sem corrigir esta grave incongruência valorativa da nossa lei penal, para mais em clara violação da Convenção de Istambul.

Não nos esqueçamos que até 1982, quando foi promulgado o primeiro Código Penal do pós-revolução, a violação entre cônjuges não era crime em Portugal: assinar um contrato de casamento com alguém (de outro sexo, naturalmente…) era uma espécie de termo de autorização permanente para avanços sexuais. No fundo, era a concretização em letra de lei da ideia retrógrada de que a boa esposa tem de estar sempre disponível para satisfazer sexualmente o seu marido.

O caminho que fizemos desde então é importante e meritório, mas atavismos de séculos pagam-se. E as mulheres do nosso país continuam a pagar esse preço, um preço demasiado alto. O conceito de consentimento ainda é uma coisa nebulosa para demasiadas pessoas. A este propósito, vale sempre a pena recordar a brilhante analogia do chá:    

Passemos agora ao segundo ponto relativamente ao qual estamos em claro incumprimento da Convenção de Istambul: a natureza jurídica dos crimes contra a liberdade sexual. Atualmente, a violação é em Portugal um crime semipúblico, o que significa que a sua investigação e julgamento estão dependentes da apresentação de queixa por parte da vítima, no prazo de seis meses.

No entanto, o artigo 55.º, n.º 1, da Convenção de Istambul dispõe: “As Partes assegurarão que as investigações ou o processamento das infrações […] não dependam inteiramente de uma denúncia ou de uma queixa da vítima, […] e que o processo possa prosseguir mesmo que a vítima retire a sua declaração ou queixa”.

Portugal tem-se refugiado no advérbio “inteiramente” para defender estar em conformidade com este preceito. De facto, em 2019, a redação do artigo 178.º do CP foi alterada de forma a prever que o Ministério Público (MP) possa dar início ao procedimento penal “sempre que o interesse da vítima o aconselhe”. Significa isto que o crime de violação pode ser investigado e punido em Portugal se a vítima apresentar queixa, ou se o MP assim entender… É absolutamente revoltante o paternalismo de uma lei penal que dá ao MP o poder discricionário de decidir se é ou não do interesse da vítima perseguir penalmente quem a violou. É o patriarcado em todo o seu esplendor diretamente plasmado na lei, o Estado paizinho que decide pela tolinha da vítima o que é melhor para ela.

Esta cosmética legislativa de 2019 não altera, no entanto, o facto de que continuamos em claríssima violação da segunda parte do citado artigo 55.º, n.º 1: “As partes assegurarão [...] que o processo possa prosseguir mesmo que a vítima retire a sua declaração ou queixa”, uma vez que o procedimento penal termina se a vítima desistir dele.  É da natureza dos crimes semipúblicos que assim seja: compete à vítima apresentar queixa, podendo dela desistir se assim o entender. 

Dê-se as voltas que se der em torno do advérbio “inteiramente” para procurar contornar a Convenção de Istambul, a verdade insofismável é que Portugal está em clara violação do artigo 55.º, n.º 1, deste tratado internacional. O procedimento penal por violação termina se a vítima desistir do processo.

Uma vítima de violação ficará muitas vezes deprimida por vários meses ou anos, tolhida na sua capacidade de reação, sujeita a pressões por parte do próprio agressor para se manter em silêncio. Não é aceitável abandonar estas pessoas à sua sorte!

Tem-se argumentado, quanto a este ponto, com a ideia de proteção da autonomia e da vida privada da vítima, dizendo-se condescendentemente que não se deve obrigar alguém a reviver um trauma contra a sua vontade. A esta argumentação falsamente feminista, há que responder, antes de mais, que cumprir ou não a Convenção de Istambul não está no arbítrio do legislador português. Vale aqui o princípio pacta sunt servanda (os acordos são para cumprir): se o Estado português livremente ratificou a Convenção de Istambul, não lhe resta outra alternativa senão cumpri-la, por muito que dela possa discordar.

Mas, e mais importante do que este argumento talvez um pouco legalista, há que salientar que a solução legal que hoje temos nada tem de feminista. Sob a falsa capa da proteção da autonomia e da vida privada da vítima, ao insistir em consagrar os crimes sexuais como crimes semipúblicos, o legislador português mais não faz senão perpetuar o manto de vergonha, silêncio e culpa das vítimas destes crimes. O clima de silêncio sobre os crimes sexuais é tal que se estima que os crimes denunciados correspondam a apenas 10% dos crimes de violação efetivamente ocorridos. Invocar a vergonha que a vítima pode sentir como fundamento para não tornar este crime público (isto é, passível de denúncia por qualquer pessoa que dele tenha conhecimento), é usar a discriminação milenar das mulheres para perpetuar essa mesma discriminação.

Falar no risco de revitimização por via do processo penal é também, como bem lembra a Juíza Conselheira Clara Sottomayor, escamotear que o Estado tem para com as vítimas obrigações muito claras: prestar-lhes apoio psicológico e legal; formar polícias, procuradores, juízes e advogados capazes de lidar corretamente com os crimes sexuais; afastar o agressor da vítima. Fugir a estas responsabilidades, escudando-nos na suposta proteção da vítima, é por isso hipócrita e cobarde.

Na verdade, protegeremos as vítimas de violação no dia em que passarmos aos agressores a mensagem clara de que não toleramos a violação e lhe fazemos uma guerra sem quartel – é este o sentido da natureza pública de um crime. Trata-se de dizer que, enquanto comunidade jurídica, consideramos que não foi apenas a vítima a ser violentada na sua dignidade e autonomia corporal com aquela violação, mas que esse dano nos foi feito a todas e a todos e que, por isso mesmo, assumimos coletivamente a responsabilidade de punir aquele comportamento. Não pondo aos ombros da vítima a responsabilidade exclusiva de fazer justiça, damos-lhe a mão e dizemos-lhe no fundo: “Estamos contigo! Não te abandonamos!”

Acresce que esta mesmíssima argumentação de alegada proteção da intimidade da vítima foi usada durante muitos (demasiados) anos para negar a natureza pública ao crime de violência doméstica. O tempo veio provar que esta argumentação estava errada e o facto de a violência doméstica ser hoje um crime público é absolutamente essencial para a proteção das vítimas.

E sejamos claros: não está em causa que alguém venha a ser sujeito a exames e perícias médicas contra a sua vontade, nem coagido pela força a testemunhar em tribunal sobre o crime de que foi vítima. Da última vez que verifiquei, ainda vivíamos numa democracia... A vítima colaborará na investigação criminal deste crime público na medida do que quiser e puder. O que não podemos nem devemos fazer é dizer às vítimas que se desenvencilhem para, no prazo de seis meses, apresentarem queixa e exigirem que seja feita justiça. Uma vítima de violação ficará muitas vezes deprimida durante vários meses ou anos, tolhida na sua capacidade de reação, muitas vezes sujeita a pressões sociais e por parte do próprio agressor para se manter em silêncio. Não é aceitável que abandonemos estas pessoas à sua sorte!

Recentemente, houve um pequeno sobressalto cívico sobre este tema quando, num direto no Instagram, um jovem afirmou com orgulho ter “violado uma gaja” e tê-la “deixado lá até vir o INEM”. Muitos internautas perceberam o absurdo de nada se poder fazer perante aquela confissão expressa se a própria vítima não apresentasse queixa. Houve entretanto vários projetos de lei sobre esta matéria a ser votados na Assembleia da República, mas tudo acabou por ficar na mesma, tendo os vários projetos sido chumbados - do Bloco de Esquerda, da Iniciativa Liberal e da deputada não-inscrita Cristina Rodrigues.

É esta contínua inação, esta tolerância obscena para com a cultura da violação que verdadeiramente revitimizam as e os sobreviventes de crimes sexuais. Imagine-se o que terão sentido as pessoas que vivem com este trauma ao ver que, mais uma vez, as deixámos sozinhas a lidar com o que lhes aconteceu? Que preferimos perpetuar a cultura da vergonha e do silêncio a dar-lhes a mão? Que achamos que o que lhes aconteceu é um problema exclusivamente delas e não nosso? 

É absolutamente insuportável que Portugal ainda seja este país em pleno século XXI! A Convenção de Istambul, mas sobretudo as e os sobreviventes exigem mais. As mulheres do nosso país merecem mais. Combatamos, pois, a cultura da violação nestes dois aspetos muito concretos, até porque isso nos é imposto por uma convenção internacional que livremente assinámos e ratificámos.