Doutorada em História Institucional e Política Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É historiadora do período contemporâneo português.

Portugal e os refugiados do Holocausto: o gesto excepcional de Aristides

Após o final da II Guerra Mundial, Salazar tenta apropriar-se dos feitos de Aristides de Sousa Mendes para minimizar perante os Aliados o seu colaboracionismo com a Alemanha Nazi. Mas foi a desobediência excepcional de Aristides, e de outros diplomatas portugueses, que salvou milhares de refugiados judeus, enquanto o Estado Novo colocava os mais variados obstáculos à sua entrada em Portugal.

Ensaio
7 Janeiro 2022

Aristides de Sousa Mendes deu entrada no Panteão Nacional e, sem surpresas, voltou a surgir o habitual auto-elogio a Portugal e aos portugueses, como se ambos fossem uma entidade colectiva homogénea à boa maneira do nacionalismo populista. A acção desse ex-cônsul em Bordéus, em Junho de 1940, foi uma excepção e não pode ser atribuível a todos os portugueses de então.

Portugal, sob a ditadura de António de Oliveira Salazar, é frequentemente retratado como país de salvação de refugiados judeus e políticos e os portugueses, em vez de encarados como colectivo de indivíduos com diversos comportamentos, são adjectivados de hospitaleiros, generosos e empáticos com os perseguidos.

Essa narrativa absurda continua a fazer os seus estragos. Baseia-se nas imagens memoriais em tons rosas, compreensivelmente transmitidas pelos refugiados que se salvaram através de Portugal, e ignora a imagem mais negra dos que sentiram no país a longa mão das autoridades ditatoriais e da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE).

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pimentel, holocausto
Este ensaio é baseado no livro Holocausto (Temas e Debates, 2020), da autora.

E nem se fala da forma oportunista como Salazar se apropriou no pós-guerra do feito de Aristides de Sousa Mendes (ASM) para obter o beneplácito dos Aliados em defesa da continuação do império colonial e do regime ditatorial. Também não se fala dos argumentos daqueles que descaradamente faltam à verdade e criticam a atitude de desobediência de ASM, que permitiu o salvamento de milhares de perseguidos pelo nacional-socialismo alemão, ao mesmo tempo que dizem que o ditador português salvou ele próprio refugiados.

Existe até a caricatura de comboios carregados de volfrâmio, que Portugal vendeu então à Alemanha, regressarem ao país repletos de refugiados. Foi promovida por José Hermano Saraiva e replicada por alguns. É uma falsidade a que me proponho contextualizar e desconstruir com base em fontes documentais. Este ensaio está dividido em duas partes.

As dificuldades de entrada em Portugal

Nos anos 1930 e 1940 do século XX, chegaram de facto a vários países europeus, incluindo Portugal, refugiados judeus e políticos. Ironicamente, foi numa ditadura autoritária e nacionalista, anticomunista, antiliberal e antiparlamentar que muitos refugiados com costumes, comportamentos sociais e opiniões culturais diferentes e políticas diversas se relacionaram – embora pouco - com os portugueses.

Houve vários factores que permitiram a salvação destes refugiados através de Portugal: a neutralidade portuguesa na II Guerra Mundial; o facto de o país ter uma velha aliança com a Grã-Bretanha; e as semelhanças entre o regime ditatorial português e o nacional-socialismo alemão, ainda que também se tenham diferenciado no que ao anti-semitismo racial dizia respeito.

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No entanto, a entrada dos refugiados judeus no país foi dificultada pelo governo português. Salazar desempenhou um papel essencial ao liderar tanto a ditadura como o ministério dos Negócios Estrangeiros, sem esquecer a PVDE. A estadia dos refugiados no país foi apenas tolerada enquanto temporária e o exílio definitivo impedido.

Era muito difícil entrar em Portugal para fugirem à perseguição nazi. Muitos refugiados estavam em países ocupados pela Alemanha e precisavam de apanhar em Lisboa o avião — e sobretudo o navio — salvador que os levasse para fora do continente europeu.

Como noutros países europeus, a par e passo com o aumento da vaga de refugiados judeus e políticos, expulsos pela Alemanha na primeira fase da política de Estado que veio a culminar no Holocausto, também Portugal ergueu barreiras à sua entrada. Os refugiados confrontavam-se então com um autêntico muro “de papéis”, razão pela qual muitos perderam as suas vidas.

A entrada dos refugiados judeus em Portugal foi dificultada pela ditadura de Salazar. Empatada por burocracia incomportável que a muitos tirou a vida, a estadia dos refugiados no país foi apenas tolerada enquanto temporária e o exílio definitivo impedido.

Começaram-se a sentir as primeiras restrições colocadas à entrada em Portugal de estrangeiros, quase sempre sob a forma de circulares enviadas pelo ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) aos seus diplomatas no exterior. Pouco depois da vitória eleitoral da Frente Popular, em Espanha, a circular n.º 1, de 24 de Março de 1936, introduziu três tipos de vistos para estrangeiros: um de duração ilimitada para “entrada e residência”; outro para “turistas”; e um terceiro, de “trânsito”, com a duração de 48 horas. O MNE ficou com a possibilidade de emitir vistos de trânsito sem prévia consulta à PVDE a pessoas de alta “categoria” social e profissional.

Quatro meses depois, em Junho, o Ministério do Interior português propôs ao MNE que fosse impedida a entrada no país de cidadãos da União Soviética, polacos e Heimatlose (apátridas), todos suspeitos de “espionagem e de agitação internacional”. Os consulados podiam visar os passaportes Nansen (documentos concedidos pela Sociedade das Nações a refugiados ou apátridas), embora “sem prejuízo de posterior procedimento policial”.

Sensível a estes argumentos, o MNE enviou, a 24 de setembro de 1936, a circular n.º 8 às suas representações diplomáticas ordenando a recusa de vistos àqueles com documentos emitidos por autoridades diferentes da dos países de onde não eram originários. Estes últimos podiam, no entanto, obter vistos de turismo, válidos por trinta dias, cabendo à PVDE a prorrogação da validade dos mesmos.

No entanto, o Consulado da Alemanha em Lisboa passou a recusar a renovação dos passaportes especiais com prazos mais curtos de portadores judeus, que ficaram assim indocumentados e passíveis de expulsão a expensas do Estado português. Por isso, o secretário-geral da PVDE, capitão Catela, esclareceu junto do MNE que, por causa da dificuldade em distinguir “o alemão judeu dos restantes” compatriotas, não deveria ser permitida a entrada de portadores de documentos caducados dessa nacionalidade.

O germanófilo capitão Paulo Cumano, da PVDE, propôs a Salazar e ao MNE que fosse negociada a obrigatoriedade de vistos com a Alemanha, a Itália e a Hungria. Por outro lado, sugeriu que a entrada de judeus desses países e da Polónia passasse pelo crivo da autorização prévia dessa polícia e que só tivessem direito a visto as pessoas com mais de 60 anos e/ou com filhos residentes no país.

Numa carta, enviada ao MNE, em 1938, Cumano afirmou que se “Portugal não fosse considerado país de refúgio”, a PVDE poderia “desempenhar a sua missão, sem suscitar nenhuma ofensiva da imprensa estrangeira judaica ou a seu soldo, conseguindo desviar de Portugal o perigo da criação de uma minoria”. Argumentou ainda que ao admitir-se “a entrada e a fixação de alguns (judeus) em Portugal”, não se conseguiria “opor dique a essa imigração” que “caracteriza um grave perigo para a nossa nacionalidade”.

A partir de 1938, a PVDE fundamentou o fecho de fronteiras aos refugiados também com as consequências que a sua vinda em massa representaria para o mercado de trabalho português. No início de Março de 1938, o director da PVDE, capitão Agostinho Lourenço, escreveu num ofício que o país foi o “escolhido pelos judeus para se acolherem”, até que, “por feliz acaso”, começara a correr na imprensa internacional o rumor de que essa polícia os perseguia.

No mesmo documento, Agostinho Lourenço afirmou ainda que todos “os países nacionalistas” estavam “exercendo pressão sobre os judeus, coagindo-os à emigração”, retirando-lhes a nacionalidade. E terminou com a frase: “o judeu estrangeiro é, por norma, moral e politicamente indesejável”. O chefe de gabinete do presidente do Conselho, Leal Marques, transmitiu depois a concordância de Salazar com “a orientação sugerida pela PVDE”.

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Refugiado judeu e o seu filho esperam num cais de Lisboa pelo paquete que os levará da Europa | Mundo Gráfico, janeiro de 1940 | Hemeroteca Municipal de Lisboa

O Estado português olhava com atenção para as ações de outros refugiados na temática dos refugiados e, por isso mesmo, em Setembro de 1938, o MNE solicitou às suas representações diplomáticas que indicassem as mudanças na política de fronteiras dos países tinham estado presentes na conferência de Évian, convocada para Julho de 1938. O seu grande promotor foi o presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, e Portugal não foi convidado.

O objectivo da conferência era “resolver” o problema da “inundação” dos países europeus por “emigrantes” alemães, mas, na sequência dessa cimeira, começaram a ser introduzidas limitações à entrada e estadia de judeus alemães, austríacos, italianos e polacos nas legislações de muitos países. Foi o caso da Suécia ao instituir, a 12 de Setembro de 1938, uma norma para impedir a entrada e a expulsão dos estrangeiros sem vistos que não pudessem regressar aos “seus países por motivos políticos ou em virtude das leis de raça”.

Como muito bem viu o ministro plenipotenciário de Portugal em Estocolmo, essa disposição legal visava sobretudo “os alemães e italianos, especialmente de raça judaica”. O governo português recebeu informações dos diplomatas portugueses em Oslo de que os governos emitiram decretos a expulsar “estrangeiros que não tenham nos seus passaportes, vistos de entrada, de permanência ou de trabalho”.

Menos de duas semanas depois, a 21 de Setembro, a Legação de Portugal em Haia informou que os advogados e procuradores estrangeiros haviam deixado de poder pleitear nos tribunais em consequência do elevado número de alemães e austríacos entrados no país que assim concorriam com colegas neerlandeses. França e Bélgica também tomaram a mesma decisão.

Inspirando-se nessas leis, o governo português também introduziu novas medidas restritivas de circulação na fronteira. A circular nº10, de 28 de Outubro de 1938, estipulou que os “emigrantes judeus” passavam a precisar de vistos “de turismo”, com a validade de 30 dias, se quisessem entrar em Portugal. Essa ordem abrangia pela primeira vez um vasto grupo específico de candidatos à entrada no país.

Os judeus tinham-se tornado como grupo particularmente visível nesse mesmo ano, pois a Alemanha começou a carimbar os passaportes dos judeus com a letra “J”, impondo ainda aos nomes dos homens e das mulheres, respectivamente, os de “Israel” e de “Sarah”. O anti-semitismo já estava bem espelhado no sistema jurídico alemão.

À torrente de fugitivos, expropriados e expulsos da Alemanha e Áustria, juntaram-se também os judeus italianos e outros estrangeiros que se viram forçados a fugir de Itália na sequência da instauração de legislação anti-semita. Nesse período, o governo português e a PVDE tinham ideias diferentes das autoridades alemãs: até 1941, os decisores políticos nazis queriam a entrada de judeus nos países europeus, até porque esperavam que a consequência fosse o aumento do anti-semitismo.

O governo português também se confrontou com o facto de as medidas adoptadas pela Alemanha, relativas a bens de indivíduos de origem judaica, atingirem “pessoas, algumas das quais residentes em Portugal”.

A atitude de Alberto da Veiga Simões

Em Julho de 1938, o representante diplomático português em Berlim, Alberto da Veiga Simões (1888-1954), foi incumbido por Salazar de abordar o governo do Reich para Portugal não poder “deixar de reclamar para os seus nacionais de raça judaica” isenções das obrigações impostas, “mormente quando se trate de indivíduos residentes fora da Alemanha”. Lembre-se que, depois da emissão da circular n.º 10, houve divergências entre, por um lado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e a PVDE e, por outro lado, alguns diplomatas portugueses.

Em Berlim, Alberto Veiga Simões fora um dos que alertara frequentemente o MNE para as barbaridades cometidas contra os judeus e adversários políticos na Alemanha. No entanto, o próprio Veiga Simões avisou o Palácio das Necessidades contra o perigo da chegada maciça a Portugal de “emigrantes” alemães.

Como estes estavam munidos de “passaportes especiais”, com “carimbo, marca ou indicação não habituais”, sugeriu que fossem sujeitos a vistos portugueses. O diplomata tentou ao mesmo tempo proteger alguns judeus com “idoneidade moral" e alta categoria social científica e técnica, cuja profissão não concorresse com a dos portugueses.

Em 1939, Salazar, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros, informa os cônsules portugueses na Alemanha que nenhum visto de entrada em Portugal será dado a judeus alemães sem a sua própria autorização prévia.

Veiga Simões não deixou, porém, de ser criticado, em particular pela PVDE, por causa da concessão de vistos a judeus, carimbados pelo Consulado Geral de Portugal em Hamburgo, dependente da Legação em Berlim. Por outro lado, intercedeu a favor dos judeus alemães Emil Rosenberg e da sua mulher: tinham vistos concedidos por esse consulado e foram impedidos de desembarcar na Madeira pela PVDE, com o Capitão Cumano a recusar a permanência do casal no Funchal.

Após nova queixa da PVDE, a 6 de Fevereiro de 1939, contra o facto de o Consulado de Hamburgo ter dado vistos, autorizados por Veiga Simões, a seis judeus alemães, o capitão Cumano propôs que “a entrada de qualquer judeu das nacionalidades apontadas” ficasse dependente de despacho ministerial e da autorização da PVDE.

As queixas sobre o Consulado de Hamburgo não impediram Veiga Simões de a 8 de Abril de 1939 solicitar ao MNE autorização para dar novos passaportes, desta vez ao ex-checo Gustav Brecher e aos cônsules honorários de Portugal em Frankfurt, Gustav Meyer-Alberti, e em Nuremberga, Eduard Liedenthal, este último judeu. O ministro dos Negócios Estrangeiros – o próprio Salazar – recusou e respondeu telegraficamente que os Consulados de Portugal na Alemanha deveriam abster-se de “dar vistos (a) passaportes judeus alemães sem autorização prévia (desse) ministério”.

A chamada “Noite de Cristal”

Entretanto, as fronteiras continuavam a fechar-se. Em Outubro de 1938, o governo polaco estipulou que os compatriotas judeus a viverem fora do país por mais de cinco anos tinham de renovar o seu passaporte num consulado para entrarem na Polónia, caso contrário perdiam a nacionalidade. Tornar-se-iam apátridas, e com isso seria ainda mais difícil circular pela Europa, conseguir vistos.

Esta nova lei fez recear que os judeus polacos se amontoassem na Alemanha e a Gestapo expulsou 17 mil para a fronteira com a Polónia, que só aceitou cerca de dez mil. Foi então que um jovem polaco de uma família judaica expulsa da Alemanha nessas condições, Herzel Grynzspan, atentou a tiro contra a vida de Ernst von Rath, diplomata da Embaixada Alemã em Paris que acabou por morrer.

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Herzel Grynzspan sob custódia da polícia francesa | Crédito: Bundesarchiv 

Foi o catalisador (ou a desculpa) que faltava para o ministro da Propaganda nazi, Josef Goebbels, incitar pogroms contra os judeus em várias cidades da Alemanha e da Áustria. Foram levados a cabo entre 9 e 10 de Novembro de 1938 e esse momento ficou para a história como a “Noite de Cristal”, assim chamada por causa dos vidros partidos das 7.500 lojas judaicas destruídas em todo o III Reich.

Foram ainda completamente destruídas 76 sinagogas e incendiadas outras 1919, e queimados 11 centros comunitários, 171 casas e 20 armazéns pertencentes a judeus. Entre estes, cerca de 100 foram assassinados e mais de 26 mil foram presos na Alemanha. Em Viena fizeram-se 6.500 prisioneiros que acabaram por ser enviados para campos de concentração na Alemanha, onde mais de 800 viriam a morrer.

As detenções eram destinadas a forçar os judeus a partir da Alemanha e, por isso, o chefe do Sicherheitsdienst (SD), Reinhard Heydrich, acabou por libertar a maioria. Não sem antes os obrigar a prometer que abandonariam de imediato o país, deixando para trás tudo o que lhes pertencia e que não pudesse ser carregado pelos próprios. Para forçar a “emigração” dos judeus da Alemanha e da Áustria, foram também postas em prática diversas multas às próprias vítimas.

Na sequência do assassinato de von Rath, Hermann Göring (segundo, na hierarquia do III Reich, comandante-chefe da Força Aérea alemã, ministro encarregado pelo Plano Quadrienal e assessor em todos os gabinetes de Hitler, implementou uma nova legislação contra os judeus no âmbito do Plano por Quatro Anos, estrutura e estratégia paralela ao Estado alemão com o objetivo de rearmar a Alemanha. Em Fevereiro de 1939, todos os judeus residentes na Alemanha e na Áustria que partiam, passaram também a contribuir com o chamado “imposto de fuga” – servia para financiar o esforço militar alemão, por exemplo.

E, ainda para expulsar os judeus dos seus territórios, a Alemanha criou ela própria instituições nazis cujo único e principal objetivo era organizar a “emigração”.

A circular n.º 14 retira poderes aos diplomatas

A Europa mergulhou na II Guerra Mundial a 1 de Setembro de 1939, quando a Alemanha invadiu a Polónia. A Grã-Bretanha e a França decidiram finalmente declarar guerra ao III Reich – a cedência da Checoslováquia a Adolf Hitler, com o Acordo de Munique, em 1938, ainda ecoava. E, nesse mesmo dia, o chefe do governo e ministro dos Negócios Estrangeiros português enviou uma nota oficiosa à imprensa, na qual era declarada, unilateralmente, a neutralidade portuguesa. A questão da “inundação” de refugiados ganhou ainda mais destaque.

O director da PVDE, Agostinho Lourenço, partilhava da opinião do inspector da polícia política Paulo Cumano de que Portugal não devia ser encarado como “país de refúgio”. O inspector defendia que essa imagem daria azo à entrada de extremistas e de judeus, “por norma, moral e politicamente indesejáveis”.

No final de Outubro, Agostinho Lourenço voltou a solicitar a colaboração do MNE – ou seja, de Salazar – no endurecimento da política de vistos, justificando essa posição com o afluxo de estrangeiros que se dirigiam a Portugal desde que começara a guerra. A maior parte eram, continuou, “aventureiros internacionais”, ou mesmo “espiões ao serviço da Alemanha”.

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Capitão Agostinho Lourenço
Capitão Agostinho Lourenço, primeiro director da PVDE, em 1926.

Por outro lado, acrescentava Lourenço, como os consulados portugueses não cumpriam a regra de consultar a PVDE antes de visarem os passaportes de judeus chegados a Portugal, estes permaneciam no país sem que as representações diplomáticas das suas nações se responsabilizassem pela sua manutenção e/ou repatriamento. Além disso, tornava-se impossível expulsá-los de Portugal porque nem Espanha nem França os aceitavam de volta.

Por todas essas razões, o director da PVDE propôs que a concessão de vistos aos judeus de nacionalidade “indefinida, contestada ou em litígio” fosse sujeita à consulta prévia da polícia política, antes que o MNE a pudesse autorizar. Os vistos deviam ser recusados aos que não possuíssem recursos financeiros para a estadia em Portugal, aos que não pudessem voltar aos seus países, aos que invocassem o embarque para o continente americano sem mostrarem garantias e, por fim, a quem não tivesse um visto de entrada num país de destino.

Salazar concordou com a proposta de Agostinho Lourenço e, a 11 de Novembro de 1939, o MNE enviou às suas repartições diplomáticas a circular n.º 14, segundo a qual apenas os diplomatas de carreira poderiam doravante conceder vistos. Essa norma, que visava impedir os cônsules honorários de conceder vistos, foi justificada com o objectivo de “prevenir quanto possível abusos e práticas de facilidades” que a PVDE entendia serem “inconvenientes ou perigosas”.

A circular obrigava, porém, os diplomatas de carreira (cônsules) a consultar o MNE antes de visarem os passaportes de judeus expulsos de países da sua nacionalidade ou daqueles que, invocando a circunstância de virem a embarcar num porto português, não tivessem nos passaportes um visto consular para um país de destino, bilhetes de passagem ou garantia de embarque.

Os protestos contra os poderes crescentes da PVDE e os atropelamentos das funções consulares não se fizeram esperar – uma das que protestou dentro dos limites permitidos foi a Legação de Berlim, a cargo de Veiga Simões, até este ser posto na disponibilidade a 31 de Junho de 1940.

Outros diplomatas também se queixaram da atitude da PVDE. Mas tornou-se crescentemente evidente que o MNE, cuja pasta continuou a ser detida pelo próprio Salazar, seguiu cada vez mais a atitude de endurecimento das restrições da polícia política e se virou frequentemente contra os diplomatas, seus subordinados.

As recusas da parte da PVDE eram quase sempre assinadas pelo capitão da PVDE Paulo Cumano. Só para dar alguns exemplos, a um “grupo de judeus alemães chegados à fronteira de Vilar Formoso” com vistos para Cuba, a PVDE acusou-os de mentir ao afirmarem ter passagens de viagem de saída pagas.

Outro caso foi o de Ludwig Adler, “súbdito judeu-alemão”. Em Dezembro de 1939, a PVDE comunicou ao MNE que não autorizasse o seu visto no passaporte, argumentando que iria, “tanto mais”, “concorrer para o desemprego dos portugueses”. Do mesmo modo, a polícia política autorizou a entrada, mas não a residência, em Portugal ao judeu húngaro Arpad Szenes, casado com a pintora portuguesa Helena Vieira da Silva Szenes.

Todas as medidas restritivas na política de fronteiras fizeram com que houvesse, a partir de 1938, um decréscimo assinalável na entrada de estrangeiros no país. Contudo, com o início da guerra, o número dos refugiados aumentou: segundo números da PVDE, entraram em Portugal, entre Setembro e Dezembro de 1939, 889 estrangeiros.

À medida que os refugiados foram sendo mais numerosos e se tardavam em Portugal, a PVDE passou a recusar ou a restringir a duração dos vistos, inicialmente com duração de 30 dias, para apenas 20 ou mesmo dez dias, com acordo do MNE. Por seu lado, a Legação portuguesa em Haia queixar-se-ia ao MNE de o facto de a PVDE ficar com total poder de decisão acarretava “desprimor” para os diplomatas. Mas o MNE deu razão à polícia política.

Enviada em Junho de 1940, uma circular do ministério dos Negócios Estrangeiros urge aos cônsules portugueses que persuadam os judeus "interessados" em pedir visto de entrada em Portugal a não o fazer.

Isso não impediu o cônsul de Portugal em Zurique de pedir logo no início de Janeiro de 1940 a revisão do despacho da PVDE que recusou os vistos concedidos a “14 alemães israelitas”. Tinham sido convertidos ao catolicismo, estavam munidos de passagens pagas no navio Serpa Pinto e detinham autorizações de entrada no Brasil. Estas últimas tinham sido obtidas por intermédio do Vaticano, que havia negociado com o Brasil o ingresso de “3.000 emigrantes católicos de raça semita”.

O conflito entre a liderança do MNE e os diplomatas continuou. Em Março de 1940, Salazar apenas permitiu à sua Legação em Haia que visasse os passaportes de “refugiados católicos” munidos de vistos brasileiros e de bilhetes de passagem. O telegrama especificava a religião dos refugiados, significando que Salazar estava a dar ordens no sentido de não serem visados os passaportes de “judeus”.

A ordem de Salazar não impediu que vistos fossem concedidos em Haia e, em Abril de 1940, a PVDE enviou ao MNE um ofício a alertar que “os pedidos de judeus holandeses” estavam a tomar “um grande volume”. Por isso, os cônsules na Holanda deveriam evitar a entrada em Portugal de “indivíduos dessa qualidade”. A PVDE proibiu ainda o Consulado de Amsterdão de visar os passaportes de “todos” os judeus alemães, mesmo que possuíssem vistos de destino.

Muitos cônsules portugueses continuaram certamente a infringir as normas do MNE, o que levou o ministério a reafirmar, a 17 de Maio de 1940, que “em caso algum” os consulados poderiam conceder vistos em passaportes sem a sua prévia autorização. Em Junho deste ano, a circular n.º 12 instaria os diplomatas portugueses a “dissuadir os interessados de formularem pedidos” de vistos para Portugal.

Aristides de Sousa Mendes

O caso mais radical de um cônsul de carreira que tentou salvar perseguidos pelo nacional-socialismo alemão foi o de Aristides de Sousa Mendes (ASM). Fê-lo contra as instruções de Salazar, do MNE e da PVDE e concedeu milhares de vistos ao desobedecer à circular n.º14.

Que se saiba, concedeu pelo menos, entre 1 de Janeiro e 22 de Junho de 1940, 2.862 vistos, dos quais 1.575 só entre 11 e 22 de Junho. Deve-se salientar, porém, a ausência de registos relativamente aos vistos concedidos no Consulado de Portugal em Bayonne e na estação de Hendaye. Além disso, Sousa Mendes apôs o seu visto em vários documentos e, antes de ser afastado e solicitado a regressar a Portugal, por Salazar, até em meras folhas de papel, o que não possibilita a sua exacta quantificação.

Além do mais, já antes de Junho de 1940, Sousa Mendes tinha concedido vistos em casos individuais contra essa circular restritiva do MNE. É que a partir de Abril de 1940 chegaram a Bordeaux milhares de refugiados fugidos depois da invasão dos seus países pela Alemanha, alastrando a guerra até ao Norte de África e ao Mediterrâneo.

Ao mesmo tempo que iniciava uma campanha aérea contra a Grã-Bretanha, a Alemanha atacou o exército francês ao longo da linha Maginot, de Sedan até à fronteira suíça. Não tardou a que a capital francesa caísse nas mãos das tropas do exército alemão, o que aconteceu a 14 de Junho. Entre esse dia e 17 de Junho, juntaram-se em Bordeaux, no sudoeste do país, centenas de milhares de fugitivos, entre os quais governantes dos países ocupados pela Alemanha e representantes diplomáticos de 60 países.

Que se saiba, Aristides de Sousa Mendes assinou 2.862 vistos de entrada em Portugal. Terá aposto a sua assinatura em outros muitos diversos documentos e meras folhas de papel. Destituído do seu cargo e a caminho de Portugal, terá assinando vistos na estação ferroviária de Hendaye e na fronteira franco-espanhola a quem lho pedisse.

Um desses refugiados foi o jornalista checo Eugen Tillinger, que se encontrava no café Tortoni. Soube então “que Portugal estava a dar vistos”. Acontecera que o cônsul de Portugal em Bordeaux decidira concedê-los a todos, sem praticar quaisquer discriminações de carácter religioso, político ou “racial”: entre 17 e 19 de Junho, esse cônsul concedeu milhares de vistos e ordenou a José Faria Machado, vice-cônsul em Bayonne, que fizesse o mesmo.

O MNE português instruiu telegraficamente a sua Legação em França, então retirada em Bordeaux, ordenando-lhe que chamasse Sousa Mendes para lhe exigir explicações e proibir a concessão de vistos. Também o queria substituir pelo cônsul em Bayonne. Entretanto, outras movimentações se davam na fronteira franco-espanhola.

No dia anterior ao telegrama, o embaixador de Portugal em Madrid, Pedro Teotónio Pereira, chegou a Irún, na fronteira franco-espanhola, e comunicou às autoridades espanholas que os vistos concedidos pelo Consulado de Portugal em Bordeaux eram nulos. E, num telegrama enviado a Salazar, o diplomata referiu a desorientação no “lado espanhol”, informou que se esboçara uma “campanha política contra Portugal acusando-se (o) nosso país de dar acolhimento à escória dos regimes democráticos e elementos vencidos em fuga perante vitória alemã”.

As ordens do MNE não travaram Aristides de Sousa Mendes. O diplomata foi visto, entre 24 de Junho e 8 de Julho, quando partiu de França, a assinar vistos na estação de caminhos de ferros de Hendaye. Terá feito o mesmo em lugares mais ermos da fronteira franco-espanhola a quem lho pedisse.

Mas Espanha tinha deixado de reconhecer os vistos portugueses concedidos por Sousa Mendes logo a 24 de Junho. A fronteira portuguesa de Vilar Formoso foi fechada e o director da PVDE deslocou-se para lá com o intuito de reenviar os refugiados para Espanha.

Mais tarde, ao servir de testemunha de acusação no processo disciplinar contra Sousa Mendes, o capitão Agostinho Lourenço afirmou que “a maioria dos estrangeiros que se apresentavam para entrar em Portugal, traziam os seus documentos visados pelo nosso Consulado em Bordéus”. Por isso entraram no país, pois as autoridades espanholas não tinham permitido possibilitado “o seu retorno, alegando que a entrada em Espanha fora consentida em virtude de trazerem um visto bom para Portugal de um Consulado Português”.

A partir desse dia 24 de Junho, o fecho da fronteira espanhola provocou a permanência em França de cerca de quatro mil refugiados, impossibilitados de continuarem viagem até Portugal. Entre eles contavam-se cerca de mil com nacionalidade polaca, os quais o embaixador português em Londres, Armindo Monteiro, pediu a Salazar para os deixar entrar em Portugal. Argumentou que se tratava de “gente de raça pura” e que fazia parte da “inteligência [intelectuais] do país” que os alemães procuravam destruir.

No entanto, Salazar recusou dar-lhes vistos. Num telegrama de resposta, datado de 2 de Julho de 1940, escreveu que esses refugiados, “de carácter político e intelectuais” não-judeus, eram precisamente os “menos desejáveis pelas actividades que hão de querer desenvolver em Portugal”.

O chefe do governo recordou ainda a Monteiro que os vistos “concedidos em Bordéus, foram-no em contravenção de instruções expressas do MNE por Cônsul que já afastei do serviço”. Curiosamente, ainda não tinha sido iniciado o processo disciplinar do MNE contra Sousa Mendes, apenas ordenado (a 4 de Julho de 1940) por Salazar e já este dizia que o cônsul tinha sido afastado – a investigação disciplinar, a cargo de Francisco de Paula Brito Júnior, só terminou a 1 de Agosto de 1940.

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Aristides e Angelina de Sousa Mendes com seis dos seus filhos, 1917
Aristides e Angelina de Sousa Mendes com os primeiros seis dos 14 filhos do casal, 1917.

Ao ser alvo do processo disciplinar no MNE, Aristides de Sousa Mendes alegou em sua defesa ter concedido os vistos a todos pela mera razão de serem “seres humanos, e o seu estatuto na vida, religião ou cor, é totalmente irrelevante”. Por outro lado, conforme ditava a então Constituição portuguesa de 1933, “em nenhuma circunstância a religião ou as convicções políticas de um estrangeiro (... impediriam) de procurar refúgio no território português”.

A sua argumentação não colheu junto do instrutor do processo do MNE, Francisco de Paula Brito Júnior. Num relatório que enviou a Salazar, o instrutor propôs que o cônsul fosse punido com a suspensão do exercício do cargo e do vencimento por um período de um a seis meses. Por seu turno, a recomendação do Conselho Disciplinar do MNE e de Paula Brito foram entregues para decisão final ao próprio Salazar, que nomeou o conde Pedro Tovar de Lemos como relator.

Este propôs uma pena mais dura do que a sugerida por Paula Brito, ou seja, a sentença de despromoção à categoria de cônsul de 2.ª classe, justificando com a “incapacidade profissional do arguido para dirigir consulados, especialmente os da sua categoria...”.

Sousa Mendes foi assim condenado a um ano de serviço inactivo com metade do vencimento, seguindo-se a aposentação. Após saber do resultado, em 28 de Novembro, o diplomata constituiu Adelino Palma Carlos seu advogado para se apresentar um recurso da sentença junto ao Supremo Tribunal Administrativo, o que aconteceu em Março de 1941. Foi recusado a 19 de Junho desse mesmo ano. Em Novembro, Sousa Mendes passou a só receber um quarto do vencimento, antes de ser exonerado sem qualquer ordenado. Nunca foi reabilitado por Salazar.

Aristides de Sousa Mendes ficou “definitivamente condenado à miséria e à desonra”, como ele próprio disse mais tarde. Em 1948 faleceu a sua mulher e mãe dos seus catorze filhos, doze dos quais vivos, e no ano seguinte, a 16 de Outubro, o diplomata afastado casou-se em Salamanca com a francesa Andrée Cibial Rey.

O casal foi viver para Cabanas de Viriato, mas sem a filha comum, Maria Rosa, nascida em Lisboa – foi entregue aos tios da mãe. Sousa Mendes morreu a 3 de Abril 1954 no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa, com uma trombose cerebral, agravada por uma pneumonia. Só foi reabilitado postumamente muito depois, em meados dos anos 1980, quando Portugal já vivia em democracia.

Outros cônsules que ajudaram refugiados

Se a atitude de Aristides de Sousa Mendes foi a mais radical entre a de todos os diplomatas portugueses, outros não deixaram de interceder a favor de perseguidos judeus e políticos. Para os ajudar, diversos cônsules omitiam por vezes o facto de o candidato a um visto ser judeu. Foi o caso do cônsul em Antuérpia, F. Coelho de Sousa, criticado pelo MNE e pela PVDE, por não ter divulgado que o passaporte de Zacharias Ledensber estava carimbado com a letra “J”.

Outro foi o conde Giuseppe Agenore Magno, cônsul honorário de Portugal em Milão, que desde 1934 visou os passaportes de 112 pessoas, na sua maioria judeus, argumentando que muitos tinham ascendência portuguesa.

A PVDE queixou-se ainda do cônsul honorário de Portugal em Bucareste, Germani, por ter visado passaportes de judeus, quando a Roménia se estava a “libertar de uma indesejável numerosa e crescente população de raça judaica”. Foi, porém, defendido pela Legação de Portugal na Roménia, que atestou a sua “honorabilidade e dedicação pelos interesses portugueses”.

No último dia de 1940, o cônsul de Portugal em Marselha, José Augusto de Magalhães, criticou as restrições ao “direito de livre-trânsito das pessoas” impostas e solicitou “a sua rápida e urgente substituição” no cargo, por lhe ser penoso dizer a palavra “não”. Na sua carta enviada ao MNE, Augusto de Magalhães considerou que as circulares retiravam por completo, “aos funcionários consulares, o direito de apreciação de casos”.

Ao afirmar que Portugal constituía então a “única porta aberta para o resto do mundo”, pela qual poderiam “sair as vítimas das perseguições políticas e religiosas”, questionou se os Portugueses poderiam, nesse difícil momento histórico, “interceptar o caminho e impedir a salvação” dos fugitivos da Europa “em convulsão”. Foi por isso afastado.

O substituto de José Augusto Magalhães no Consulado em Marseille, Júlio Santos, também pediu ao MNE, em Agosto de 1941, um “critério de certa benevolência” para com os que receavam “ter de seguir para campos de concentração”. E, em 1942, o cônsul honorário em Cannes, um dos irmãos Gissot – o outro era o vice-cônsul em Toulouse, Émile, exonerado em 1940 – foi também referenciado como estando a conceder vistos sem autorização da polícia política.

Este ensaio baseia-se no livro da autora Holocausto, publicado em 2020 pela Temas & Debates.

A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico.