Historiador na Universidade de St Andrews, na Escócia, e investigador doutorando no Centre for Analysis of the Radical Right (CARR)

Porque usa a extrema-direita videojogos como ferramentas de radicalização?

Comparando os movimentos fascistas de outrora e a extrema-direita contemporânea, há algo que se destaca: abertura para a utilização de videojogos como meio de disseminação da ideologia e de perpetuação de estereótipos étnicos, raciais e religiosos.

Ensaio
22 Outubro 2021

Na obra Fliegeralarm [tradução livre: Alarme de Bombardeamento Aéreo], a autora alemã Gisela Elsner, nascida em 1937, conta a história satírica de um grupo de crianças nos últimos anos da II Guerra Mundial. Nas ruínas do seu bairro e perante a ameaça constante de ataques aéreos e bombardeamentos, estas crianças, que cresceram no regime Nazi e não conhecem outra realidade, usam a imaginação para ultrapassar esses tempos difíceis.

Acusam os pais de serem civis cobardes e começam a encarnar o papel do cidadão-modelo Nazi, construindo o próprio campo de concentração em miniatura. No entanto, rapidamente se apercebem de que falta um elemento importante: precisam de alguém que faça de judeu. Ao descobrirem outro rapaz no bairro - filho de um preso político - que é, de certa forma, adequado para substituir um "verdadeiro" judeu, a história desenrola-se com uma série de reviravoltas sombrias, ilustrando os poderes destrutivos da imaginação humana e como esta pode ser formatada e comprometida pela ideologia.

Gisela Elsner, uma crítica de longa data da Alemanha nazi, deixa uma mensagem muito clara: não há nada intrinsecamente inocente no recreio, e pela sua afinidade com os jogos, as crianças são particularmente vulneráveis a ideologias e a faz-de-conta.

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Posto isto, as crianças não eram o único alvo de doutrinação lúdica. O jogo sempre foi político. Gerações de reformadores e autoproclamados engenheiros sociais tentaram aproveitar a necessidade humana de recreio e diversão de forma a canalizá-la para algo maior e alegadamente mais substancial. Tal diz respeito tanto ao recreio infantil como jogos para adultos nas suas variadas formas, desde jogos de tabuleiro, cartas, videojogos ou jogos de azar.

Porém, ainda hoje, a dimensão do significado de "direito ao recreio" não está suficientemente clarificada quer no Artigo 31 da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU quer no Artigo 24 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Para complicar ainda mais, as fronteiras entre categorias socialmente construídas como jogos e desportos podem ser obscuras, como é o caso do bilhar, em que os praticantes aguardam ansiosamente o dia em que a sua atividade seja reconhecida como desporto e lhes seja concedida participação no que são chamados, talvez um pouco ironicamente, os Jogos Olímpicos.

Interpretações de jogo da extrema-direita

Em todo o espectro político, o jogo nunca foi adotado como uma arma para o bem. Quer diga respeito a debates contemporâneos sobre videojogos ou ao aumento preocupante das apostas online, as manchetes focam-se tendencialmente nos aspetos negativos dos jogos, e a mudança aproxima-se lentamente.

A forma como uma sociedade lida com o jogo, que tem sido um elemento básico de lazer e sociabilização ao longo da história humana, é muito reveladora das aspirações e da necessidade compulsiva de moldar a natureza humana como tal.

Como o notável historiador cultural holandês Johan Huizinga assinalou no seu livro precursor Homo Ludens: Um Estudo sobre o Elemento Lúdico da Cultura, "a cultura emerge do jogo, é jogada desde o início". Em suma, o jogo precede a cultura, e a necessidade de domar o desejo primordial de jogar, no sentido mais lato da palavra, revela o desejo de reformular a própria essência do que nos torna humanos.

O jogo sempre foi político. Gerações de reformadores e autoproclamados engenheiros sociais tentaram aproveitar os momentos de recreio e de diversão para algo maior e alegadamente mais substancial. 

Já muito foi escrito por estudiosos do fascismo sobre o que só pode ser descrito como uma antropologia da extrema-direita algo peculiar, em que a natureza humana foi reenquadrada num cosmos imaginário de super-humanos nietzschianos, eugenia e psicologia das multidões. A educação foi outra vertente importante desde projeto de grande escala, e o crescimento global de organizações juvenis fascistas e de extrema-direita é prova disso.

Organizações juvenis e de escoteiros baseadas no "protótipo" fascista estiveram em voga dos anos 1920 até aos dias de hoje, desde a fascista Opera Nazionale Balilla, a Juventude Hitleriana ou a Mocidade Portuguesa a organizações juvenis de inspiração fascista por todo o mundo, em diversos países como a Índia (Rashtriya Swayamsevak Sangh), Indonésia (Surya Wirawan), o Egito ou a China (Sociedade dos Camisas Azuis).

Organizações juvenis que encobriam treino paramilitar como tempo de recreio e prazer para as crianças tornaram-se uma ferramenta política de grande relevância durante as décadas seguintes, transformando elementos do movimento do Escotismo original, de Robert Baden-Powell, em campos de formação política e de criação de "novos homens" e mulheres.

Comparando os movimentos fascistas de outrora e a extrema-direita contemporânea, há algo que se destaca particularmente: uma abertura para a utilização de jogos como meio de disseminação da ideologia e de perpetuação de estereótipos étnicos, raciais e religiosos. Dando apenas um exemplo recente, Mark Townsend apresentou vários projetos e iniciativas de extrema-direita no The Guardian, a maioria envolvendo videojogos.

Contudo, os enredos entre a extrema-direita e subculturas de jogo globais são demasiado complexos para serem categorizados como uma simples "infiltração". A radicalização ideológica de comunidades virtuais através das contribuições e intervenções da extrema-direita é só uma vertente deste fenómeno. A outra é o que os observadores descrevem como a crescente gamificação da direita radical, que foi recentemente analisada num relatório publicado pela Comissão Europeia.

Por exemplo, o autor, de 28 anos, dos tiroteios em massa em Christchurch, na Nova Zelândia, transmitiu em direto o primeiro, espelhando a prática popular de transmissão em direto da comunidade de gaming. Os autores dos tiroteios em El Paso, Pittsburgh e Halle, na Alemanha, seguiram a mesma abordagem, encenando os seus atos horrendos como espetáculos de jogos.

Ao mesmo tempo, exemplos positivos de gamificação difundem-se em todas as áreas da vida, da educação à psicoterapia. A gamificação raramente é um fim, mas sim um instrumento destinado a tornar determinada experiência mais eficaz ou simplesmente mais agradável. Cria um nível de envolvimento e imersão mais profundo.

Em última análise, de uma perspetiva histórica, a direita radical sempre entendeu o jogo como uma porta de entrada para a mente humana.

Mas, em última instância, o que importa são o conteúdo e o contexto. Títulos como Jesus Strikes Back: Judgement Day, em que o jogador veste o papel de várias figuras do panteão da extrema-direita, como Hitler, Mussolini e o atirador de Christchurch, Brenton Tarrant, entre outros, para assassinar grupos minoritários, bem como políticos liberais e de esquerda, deixam uma mensagem clara.

Noutros casos, estabelecer um limite pode ser difícil. Por exemplo, na sinopse de Freedom Fighters, um jogo de tiroteio lançado em 2003 que está disponível em todas as principais plataformas, lê-se: "Freedom Fighters é um intenso jogo de ação na terceira pessoa passado numa história alternativa em Nova Iorque durante a invasão por uma superpotência estrangeira. Veste a pele de Chris Stone, um canalizador esforçado, e sobe nas fileiras da resistência para provares ser um líder carismático".

Neste caso específico, há bastante espaço para interpretação. Freedom Fighters ainda tem uma comunidade fiel, e, no entanto, o conceito mostra o quão facilmente se podem incluir mensagens de extrema-direita em certos tipos de jogos. Genericamente, os movimentos fascistas e a extrema-direita contemporânea sempre se esforçaram para aproveitar o impulso humano de competir, provar o seu valor e triunfar.

Qualquer jogo que divida os intervenientes entre vencedores e vencidos proporciona terreno fértil para a prosperidade das ideologias de extrema-direita. Qualquer jogo pode ser politizado para servir um propósito.

Todos os ilustres teóricos do jogo no século XX definiram como prioridade realçar que não há nada de intrinsecamente liberal ou iliberal nos jogos, sejam eles desportos, jogos de tabuleiro ou videojogos. Para reiterar a visão de Huizinga: o jogo precede a cultura.

O interesse da extrema-direita em jogos não é um interesse em jogos per se, mas um fascínio pelas raízes primordiais e pré-culturais da humanidade. Explorar a nossa psique sedenta de diversão é uma ferramenta tão prática como fake news, discurso de ódio ou simbolismo polido repleto de referências mitológicas ou espirituais.

Jogo: uma Ferramenta para inúmeros propósitos

Em última análise, de uma perspetiva histórica, a direita radical sempre entendeu o jogo como uma porta de entrada para a mente humana. No entanto, tal como a imprensa ou os desportos organizados, tinha de estar sob controlo do regime, e qualquer forma de jogo que fosse considerada decadente e inútil à sociedade em geral era rigorosamente monitorizada.

Programas de lazer como o Kraft durch Freude na Alemanha nazi, a fascista Opera Nazionale Dopolavoro ou a Fundação Nacional para Alegria no Trabalho tentaram trazer o jogo adulto para a órbita do controlo estatal, oferecendo mesas de bilhar, noites de jogos de cartas e outros semelhantes. Ao mesmo tempo, designadamente em Portugal, sessões de jogos de cartas entre amigos e colegas eram frequentemente interrompidas pela polícia, sob o pretexto de reprimir jogos de apostas ilegais.

Contudo, de modo geral, regimes fascistas e de extrema-direita estiveram na vanguarda de um movimento global que tentou reformular o lazer e o jogo mais do que nunca na história. Ocasionalmente, regimes de extrema-direita mostraram um grande pragmatismo, como no caso de Portugal ou da Itália fascista. Ainda que o regime fascista tenha banido oficialmente os jogos de apostas, admitiu a existência de um casino em Sanremo, Liguria, de forma a atrair turistas da Riviera Francesa, particularmente de Nizza, para Itália.

O interesse da extrema-direita em jogos é um fascínio pelas raízes primordiais e pré-culturais da humanidade. Explorar a nossa psique sedenta de diversão é uma ferramenta tão prática como fake news, discurso de ódio ou simbolismo repleto de referências mitológicas ou espirituais.

Nestes casos, o dinheiro falou mais alto do que a ideologia. Porém, a mensagem global dos regimes autoritários e fascistas foi sempre clara: o jogo só podia servir o Estado e tinha de ser limitado, se não eliminado, sempre que acontecesse fora do controlo do regime.

O tema de debate é saber até que ponto o forte controlo e a instrumentalização do jogo são exclusivos da direita radical. Por exemplo, há apenas um ano, o governo chinês baniu o jogo da Nintendo Animal Crossing: New Horizons, que rapidamente se tornou numa ferramenta e plataforma para protesto democrático em Hong Kong durante a pandemia.

Dito isto, não é propriamente a vontade de banir certos jogos ou de influenciá-los que torna a extrema-direita única. É, sim, a forma como diferentes vertentes da direita radical, do fascismo ao neonazismo ou grupos da alt-right têm utilizado os jogos para alcançar a mente e o coração das pessoas.

O direito ao recreio deve ser universal. Mas sempre teve duas aceções. Não esqueçamos a problemática. E, mais importante, certifiquemo-nos de que o jogo continua a ser uma fonte de aprendizagem, construção comunitária e de alívio de stress que traz alegria às nossas vidas e não mais ódio.

Como disse tão pertinentemente, já no final da sua longa carreira, o famoso teórico do jogo Brian Sutton-Smith: "Estudamos o jogo, porque a vida é uma porcaria. A vida é uma porcaria, cheia de dor e sofrimento, e a única coisa que a faz valer a pena - a única coisa que torna possível levantarmo-nos de manhã e continuar a viver - é jogar".