Jornalista e atual correspondente da RTP em Paris. Trabalha na Antena 1 (RDP) desde 1993. Há anos que acompanha situações de conflito e o Médio Oriente e tem dois livros publicados: Ascensão e queda da irmandade Muçulmana no EgiptoDe Istambul a Nassíria, crónicas da guerra no Iraque.

Os talibã podem parar o relógio mas não conseguem parar o tempo

Os talibã vão ter de lidar com o seu próprio povo num contexto completamente diferente daquele que tiveram no fechar do século passado. Parte da sociedade afegã experimentou alguma libertação das amarras religiosas e tribais, teve acesso ao mundo exterior através das tecnologias e um maior acesso à educação.

Ensaio
27 Agosto 2021

Abordar uma realidade definindo-a à partida como de grande complexidade pode ser uma forma confortável de iniciar um texto e ficar ao abrigo de críticas maiores. Poderão dizer que é uma abordagem medrosa, mas é apenas uma questão de realismo e seriedade de quem sabe que o Afeganistão não é uma realidade que possa ser traduzida a “preto-e-branco”. A realidade afegã é, de facto, muito mais complexa do que outras em que os conflitos armados também recebem a atenção do mundo.

A História do Afeganistão retrata essa complexidade. Um erro sucessivamente repetido por países e impérios com ambições que envolveram o Afeganistão foi o de terem ignorado a História do país. No momento que estamos a atravessar, a desastrosa saída das forças militares norte-americanas e, por arrastamento, dos países aliados, além de toda a inépcia político-militar, revela essa ignorância.

Aliás, a retirada, desastrosa, foi acertada no acordo assinado em fevereiro de 2020, entre os Estados Unidos e os talibã, estando do lado talibã um homem (Mullah Abdul Ghani Baradar) que passou dez anos preso no Paquistão e libertado em 2018 por pressão dos Estados Unidos, ao que tudo indica para poder estar nas negociações que depois decorreram em Doha, no Qatar.

Pobreza e novas gerações

Neste regresso dos talibã ao poder, a grande questão é saber se vai ser uma repetição do que aconteceu de 1996 a 2001. O exemplo é assustador, mas dificilmente se repetirá, o que não significa que o resultado seja substancialmente diferente. Muitos dos atuais dirigentes de topo são do tempo do Mullah Omar, o primeiro líder dos talibã até morrer em 2013, e partilham o modelo de sociedade que então os talibã defendiam e em que os Direitos Humanos foram totalmente ignorados.

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No entanto, passaram-se 20 anos e nem os talibã conseguem parar o tempo. Vão ter de lidar com o seu próprio povo num contexto completamente diferente daquele que tiveram no fechar do século passado. Parte da sociedade afegã experimentou já alguma libertação das amarras religiosas e tribais, teve acesso ao mundo exterior através das tecnologias e um maior acesso à educação. Uma parte das novas gerações tem ambição para um futuro impossível de concretizar se o caminho for o de um regresso ao passado.

Estas novas gerações são o futuro do Afeganistão, se o país quiser sair do 169º lugar (entre 189 países) do Índice de Desenvolvimento Humano da ONU. E é também para que essas pessoas não saiam do país que os talibã disseram, em determinado momento da fase de retirada estrangeira, que não iam autorizar a saída de mais afegãos.

Esta recusa, parecendo um sinal negativo, é afinal o reconhecimento de que os talibã querem, e sabem que precisam, de pessoas com formação elevada para reconstruir o país. Em 2019, mais de 40% do PIB (Produto Interno Bruto) afegão resultou da ajuda internacional e o PIB per capita foi cerca de 1.900 euros. Mais de metade da população vive abaixo do limiar da pobreza (1,90 dólares/dia).

O Emirato Islâmico do Afeganistão – referido atualmente como declarado com a recente tomada de Cabul – nunca deixou de existir, pelo menos na perspetiva talibã. Foi precisamente o Emirato Islâmico do Afeganistão que a 15 de agosto de 2017 enviou uma carta a Donald Trump expondo a intrincada situação do país e apelando ao presidente norte-americano para analisar a realidade de “coração aberto”. Para que tomasse decisões responsáveis e ficasse na história sem deixar as questões da guerra apenas nas mãos dos militares.

Essa carta, que já estaria a fazer caminho para o acordo que os Estados Unidos e os talibã acabaram por assinar, sublinha outra questão importante para se compreender a realidade afegã (tradução livre): “No Afeganistão, cada pai ensina aos filhos a emancipação do país em relação aos invasores. Num país onde cada criança é criada com um espírito de vingança e detém a honra histórica de derrotar três impérios antes da invasão dos Estados Unidos, como conseguirão os norte-americanos uma situação estável para uma presença permanente?”

O Comandante dos fiéis

O Afeganistão não tem para já um governo à imagem da maioria dos países do sistema internacional. E não sabemos se vai ter. Terá (tem) um Emir e um conjunto de dirigentes responsáveis pelas diferentes áreas da governação. Importa sublinhar que para além de se saber que o Emir, o “comandante dos fiéis”, é Hibatullah Akhundzada e de se conhecerem mais alguns nomes, os talibã ainda não disseram qual a arquitetura de governação a construir e quem vai liderar as diferentes áreas.

Talvez o façam apenas depois de 31 de agosto. Claramente apenas querem “pegar” no país quando não houver qualquer presença militar estrangeira. Sendo conservadores e formais, não abdicam daquilo que está no acordo. Pareceu aliás ridículo o argumento de vários países europeus na reunião do G7, a 24 de Agosto de 2021, para que o controlo do aeroporto de Cabul fosse estendido para lá de 31 de agosto.

A necessidade de reconhecimento internacional pode obrigar a alguma cedência, ou a alguma “maquilhagem”, por parte dos talibãs. Estão mais preocupados com o reconhecimento de países da região do que com o dos países ocidentais.

Recorde-se que o acordo talibã/Estados Unidos previa a saída das forças norte-americanas em maio de 2021 e foi depois estendido até agosto. Pretender que fosse feita uma nova extensão do prazo, num momento em que os talibã estão já instalados em Cabul, é – lá está – não conhecer a realidade afegã e não descortinar sequer a impossibilidade prática, a não ser com a retirada a transformar-se num desastre ainda maior.

Quanto à futura governação havia sinais de que poderia ser mais inclusiva. Houve conversas entre dirigentes talibã e inimigos de até há pouco tempo, casos do antigo Presidente Hamid Karzai e de Abdullah Abdullah, antigo vice-presidente e sempre ligado à governação durante a ocupação. No entanto, acabaram os dois por ser colocados em prisão domiciliária, uma situação que levanta ainda mais dúvidas quanto à anunciada governação inclusiva.

Será preciso esperar para ver, porém a necessidade de reconhecimento internacional pode obrigar a alguma cedência, ou a alguma “maquilhagem”. É que os talibã estão mais preocupados com o reconhecimento de países da região do que com o dos países ocidentais.

Relações e parceiros

A China, por toda a sua capacidade de investimento, é talvez o mais importante, e sabemos que o tema dos Direitos Humanos é algo que nunca está em cima da mesa quando Pequim negoceia investimentos e acordos. E os talibã estiveram na China ainda antes de tomarem Cabul.

A porta-voz da diplomacia chinesa qualificou de “amigáveis” as relações entre a China e os talibã. A Rússia e a Turquia dizem pretender privilegiar o diálogo em contraponto à imposição de medidas duras que apenas iriam radicalizar o regime. Os presidentes da Rússia e da China têm conversado sobre o Afeganistão.

São posicionamentos a que não são estranhas as riquezas do subsolo afegão. Lítio, cobre e terras raras são algumas das riquezas que constam de relatórios geológicos revelados nos últimos anos, mas que a guerra nunca permitiu explorar em pleno. E será por aí que passará a economia afegã.

Aliás, um porta-voz talibã disse que o Afeganistão não voltará a ser um país de cultura do ópio – o país asiático é responsável por 90% da produção mundial de heroína. Algo que não surpreende uma vez que a maior queda da produção de papoila para produção de ópio aconteceu precisamente em 2001, por causa das restrições de cultivo impostas pelo governo talibã, segundo as Nações Unidas.

O Irão e o Paquistão são dois “vizinhos” importantes, porém em polos opostos na relação com os Estados Unidos. O Irão teme pela minoria xiita Hazara, cerca de 10% da população afegã e alvo de frequentes ataques nos últimos anos, mas pode tornar-se o grande fornecedor de petróleo do Afeganistão, ao mesmo tempo que alimenta a esperança de os talibã virem a formar um governo inclusivo. O Irão não fechou a embaixada em Cabul e disse que a maior vitória do Afeganistão foi “a expulsão da América”.

No Paquistão, a tradição de colaboração dos serviços secretos com os talibã é conhecida. A vitória talibã agradou a muitos grupos islâmicos, embora não tanto ao governo paquistanês. No entanto, o corte dos apoios decidido por Donald Trump e a falta de atenção que Joe Biden tem dado ao Paquistão – o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, foi à Índia, mas não ao Paquistão – pode empurrar o governo de Imran Khan para um maior envolvimento com o novo regime afegão. Khan usou palavras duras sobre a vitória Taliban: “os talibã quebraram as correntes da escravidão”.

Uma relação com o Afeganistão implica conhecer as etnias, as tribos, os senhores da guerra, a cultura e a tradição de gentes que nunca consentiram a presença estrangeira por muito tempo.

Sabendo-se que a Índia e os talibã são inimigos, torna-se ainda mais fácil perceber a tendência do Paquistão, embora Islamabad também receie que dentro das suas fronteiras os talibã paquistaneses possam provocar fortes problemas de segurança. E não nos podemos esquecer que o Afeganistão e o Paquistão partilham uma longa e porosa fronteira de difícil controlo, em especial a zona montanhosa que envolve Peshawar, e toda a província de maioria Pastun colada ao Afeganistão, bem como a vasta zona tribal que abrange os dois lados da fronteira.

Ocidente

Por agora, o ocidente manifesta dúvidas quanto à relação que deve desenvolver com o novo poder afegão, mas dialogar parece a única opção. Prova disso, por muito que a retórica política diga que não, foi o encontro do diretor da CIA, William Burns, com um líder talibã em Cabul.

Estados Unidos e aliados (mas também a Rússia) têm sublinhado que o Afeganistão não pode voltar a ser um albergue de organizações terroristas. Vai ser importante a relação que o novo poder talibã vai ter com a Al-Qaeda.

A chanceler alemã, Angela Merkel, foi quem primeiro terá percebido (e declarado) a necessidade de diálogo com o novo poder afegão. Depois de enviar diplomatas para negociarem com os talibã em Doha, Merkel defendeu a necessidade de se continuar a dialogar para preservar alguns avanços obtidos desde 2001. A chanceler alemã concluiu com uma evidência que muitos tardam em aceitar: “os talibã são uma realidade no Afeganistão. Uma realidade amarga, mas temos de a enfrentar”.

Uma relação com o Afeganistão implica conhecer as etnias, as tribos, os senhores da guerra, a cultura e a tradição de gentes que nunca consentiram a presença estrangeira por muito tempo. É preciso conhecer o peso e o centralismo da religião na sociedade afegã. E conhecer também a vizinhança e as amizades mais longínquas. É preciso identificar trilhos e montanhas, sem perder o norte. É tarefa para uma vida, no caso de um estrangeiro oriundo de uma realidade substancialmente diferente.