Físico de formação. Tem trabalhado como docente e investigador na Irlanda, Reino Unido, Brasil e Portugal. Autor dos livros Boris Hessen, o cientista subversivo e Einstein e Lenine em Moscovo – polémicas filosóficas da ciência soviética.

As origens estratégicas do novo fascismo

As linhas de continuidade entre o velho fascismo e a nova extrema-direita são mais profundas do que a intervenção pública quotidiana pode fazer crer. Se os métodos e as aparências mudaram, deve-se a uma opção deliberada. É uma cedência necessária, não devemos deixar-nos enganar pelo seu ilusionismo.

Ensaio
17 Fevereiro 2022

O fascismo do período entre as duas guerras mundiais foi, nos casos clássicos de Itália e Alemanha, um movimento de massas. Nesses dois países milhares de homens participaram em desfiles e comícios, envolveram-se ativamente no esmagamento violento dos sindicatos e dos partidos da esquerda, na conquista do poder e na repressão de toda a oposição que se seguiu. Foi com base nesta força social que os regimes de Adolf Hitler e Benito Mussolini se lançaram na conquista da Europa e promoveram a mais terrível carnificina da história da humanidade. 

Este breve resumo histórico serve apenas para sublinhar um aspecto fundamental para a compreensão do fenómeno do fascismo: um movimento com um impacto tão profundo na história das respectivas nações dificilmente pode ser erradicado. Muitos milhares de nazis e fascistas sobreviveram à derrota militar dos seus regimes. Muitos terão calado para sempre as suas convicções, outros mantiveram-nas vivas apenas no seu núcleo familiar restrito e outros em pequenos grupos semi-clandestinos. Após a hecatombe da II Guerra Mundial, o fascismo tornou-se marginal e politicamente indefensável, mas não uma ideologia morta.

No imediato do pós-guerra, só em Itália se manteve um partido claramente identificado com a experiência fascista e com representação parlamentar: o Movimento Social Italiano (MSI), composto por antigos dirigentes e oficiais militares do regime de Mussolini. Poucos anos depois, em 1956, foi criado o Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ), fundado e dirigido por um grupo de ex-oficiais das Waffen-SS de Hitler, tendo desde o início uma representação parlamentar, embora muito minoritária. 

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Em 1972, em França, é criada a Frente Nacional (FN), juntando grupos de extrema-direita oriundos do colaboracionismo com a ocupação nazi e com as redes terroristas que tentaram impedir a independência da Argélia. A FN tornou-se um autêntico laboratório de experimentação das possibilidades do fascismo na Europa do pós-guerra, e é desde há largas décadas o farol para uma boa parte da extrema-direita do continente. O seu principal sucesso tem sido a conquista de uma força social para as ideias reacionárias, adoptando novas linguagem e imagem sem quebrar as ligações com a experiência passada do fascismo. Por isso importa olhar com alguma atenção para a Frente Nacional, hoje União Nacional (Rassemblement National), e para as suas origens. 

Após a derrota na II Guerra Mundial, os fascistas franceses viram-se perante a tarefa de redescobrir um caminho para a relevância política num mundo profundamente alterado por um longo período de crescimento económico e pela estabilidade dos novos regimes que emergiram do conflito mundial.

Foi com esse problema em mente que, em 1961, François Gaucher publicou o livro Le Fascisme est-il actuel?, no qual explicou que o fascismo não é um movimento doutrinário, mas um movimento que se carateriza precisamente pela ausência de dogmas e por ser essencialmente um movimento de ação. No período entre guerras, Mussolini e os fascistas teriam defendido a Itália da humilhação externa (a Itália, entre os vencedores da I Guerra Mundial, era menorizada pelos seus aliados por não ter um império colonial) e da desordem interna causada pelo movimento operário, que punha em causa a propriedade e as hierarquias sociais. 

Para lançar o movimento, Mussolini contou com os soldados desmobilizados, humilhados pelo desprezo de uma classe política insensível aos seus sacrifícios. À medida que o movimento crescia, usando a violência terrorista contra o movimento operário, foi ganhando o apoio de inúmeros sectores das classes médias, da aristocracia e da burguesia italianas, que viam nos fascistas uma alternativa a um Estado incapaz de controlar os operários.

Para Gaucher, porém, o mundo do pós-guerra era radicalmente diferente daquele que assistira à conquista do poder por Mussolini e, portanto, o fascismo, fazendo uso do seu pragmatismo, deveria procurar adaptar-se às circunstâncias. Essas circunstâncias tornavam o caminho muito mais difícil para os fascistas europeus. Uma classe política avisada pelos acontecimentos que levaram à II Guerra Mundial sabia agora manter uma relação mais integradora com os ex-combatentes e não hesitaria em usar da força para anular qualquer tentativa de aproximação ao poder por parte dos fascistas. 

Mas Gaucher identificava mudanças estruturais mais profundas. Por um lado, a crescente tendência de urbanização esvaziava o campo e as suas tradições de apego à terra e à propriedade. Por outro, a ascensão do Estado Social amolecia os espíritos, afogava no conforto material as ideias épicas de construção ou manutenção de um império e fazia dos governos meros conselhos de administração, empenhados apenas em garantir que não havia recuos no bem-estar material dos cidadãos.

Gaucher via nestes desenvolvimentos um sinal claro do declínio das nações da Europa, que abandonavam o governo político, ou seja, o governo dedicado à afirmação da força da nação no palco internacional e à imposição da hierarquia social na ordem interna, por um mero governo económico, sempre refém da pressão das massas e da luta parlamentar. Nestas circunstâncias, “se a chama [do fascismo] se reanimar, não poderá arder da mesma forma, pois a atmosfera foi profundamente modificada”.

Os fascistas do pós-guerra deveriam, portanto, resolver os problemas de encontrar o tema que suscitasse o entusiasmo de um sector da população por um homem forte e por medidas autoritárias, e de encontrar os métodos adequados aos novos tempos. Para que tal fosse possível seria essencial que os fascistas soubessem ter o cuidado de evitar serem facilmente identificados como tal. Deveriam criar um movimento “que obedecerá aos imperativos da hora, que lute contra a nostalgia, mas que mobilize os nostálgicos”, que “mobilize os partidários de uma democracia “musculada” e aqueles de um estado autoritário e popular”, para um projecto cesarista, autoritário, embora com algumas necessárias cedências democráticas para não perder o contacto com as massas.

Outro aspecto determinante seria o de reanimar entre as elites e as massas a vontade de pertencer a uma grande potência respeitada no palco internacional. Mas a ideia de imperialismo já não podia manter o formato anterior, isto é, o de um imperialismo nacional. Nas novas condições só seria possível um imperialismo europeu com base numa federação de estados, cada um fortalecido pela sua revolução nacionalista. 

Para Gaucher, os fascistas do pós-guerra deveriam encontrar o tema que suscitasse o entusiasmo por um homem forte e medidas autoritárias. Era essencial que os fascistas evitassem ser facilmente identificados como fascistas.

O novo fascismo deveria apoiar-se na união das nações autoritárias da Europa e não na luta entre elas. Deveria procurar explorar os sentimentos de medo face ao recuo do homem branco (a perda dos impérios coloniais, uma vez que a imigração não era ainda vista como um problema que pudesse ser explorado politicamente). A palavra de ordem seria: “Homens brancos das velhas raças, uni-vos!”. 

A nova ordem internacional era vista por Gaucher como um mundo ainda mais duro do que o do período entre guerras mundiais e, para lhe fazer frente, seriam necessários “cônsules bem armados e que se possam manter por longos períodos no seu posto de comando”.

Gaucher publicou o seu livro no rescaldo da derrota francesa na Indochina (1954) e num momento crítico da luta pela independência da Argélia, no qual a Organisation Armée Secrète (OAS) mobilizava a extrema-direita para o combate armado contra os independentistas. Sem dúvida que Gaucher alimentava ainda a esperança de que os eventos argelinos pudessem despoletar o sobressalto nacionalista em França. 

De facto, a guerra pela independência da Argélia e a experiência da OAS (a qual incluiu uma tentativa de assassínio contra o presidente francês Charles de Gaulle) revelou-se fulcral para o relançamento do fascismo francês e proporcionou um número significativo de novos quadros. Um dos homens que participou nas atividades terroristas da OAS foi Dominique Venner, filho de um militante do Parti Populaire Français, o principal partido fascista francês do período entre guerras e apoiante da ocupação nazi de França.

Em 1964, Dominique Venner publicou o panfleto Pour une critique positive (Por uma Crítica Positiva) em que explorou o problema de como adaptar uma estratégia fascista a um mundo profundamente diferente daquele do período entre guerras. Como Gaucher, Venner chamou a atenção para o crescente poder e sofisticação do Estado e da sua crescente capacidade de satisfazer as necessidades básicas da população. Nestas circunstâncias estavam excluídas as possibilidades de ação proporcionadas pelo ambiente de convulsão social que caraterizou o período anterior. A violência fascista como alternativa a um Estado enfraquecido já não seriam possíveis no mundo do pós-guerra, pelo que era preciso organizar a luta contra o sistema na base “das ideias e da astúcia”. 

Sem negar a supremacia da ação no projecto fascista, Venner procurou no seu panfleto elaborar as bases de uma doutrina fascista que permitisse unificar os vários grupúsculos de extrema-direita franceses, fazendo “uma reviravolta completa, uma total revisão das verdades aceites”. O fascismo do pós-guerra deveria abandonar toda a simbologia dos fascismos do período anterior, uma premissa necessária para não ser identificado com regimes desacreditados e odiados pela generalidade da população. Para Venner, “a revolução não é um baile de máscaras”. 

Pelo contrário, a ação dos fascistas deveria ser “estritamente legal”, “um trabalho de longo prazo, sem glória nem grandeza, um trabalho de formiga”, ocupando posições no aparelho do Estado e mostrando pelo exemplo as virtudes do fascismo: “É melhor controlar uma só empresa, um só município, uma só faculdade em toda a França do que se empenhar numa agitação genérica sem influência sobre a massa”. Os fascistas teriam de provar que seriam capazes de conduzir a máquina do Estado, para no processo subverte-la a seu favor.

Temos visto políticos de aspecto convencional que na sua acção quotidiana, mas sobretudo quando chegam ao poder, se dedicam a minar todos os fundamentos do Estado liberal, a atacar as liberdades democráticas e a castigar sem piedade os sectores mais pobres e frágeis da sociedade.

Essa nova abordagem assenta na velha rejeição do liberalismo e do marxismo e na afirmação dos valores de uma sociedade dedicada a cumprir o destino nacional. Uma sociedade dirigida por uma elite de indivíduos enérgicos e abnegados, fortemente hierarquizada, com estruturas definidas pelo mérito e valor de cada um no combate pela vida, e na superioridade do homem europeu (branco, presume-se), “organizador natural” de toda a humanidade. 

Tal como em Gaucher, é abandonada a ideia de imperialismo nacional, baseado na rivalidade intra-europeia, a favor de um imperialismo europeu conduzido por nações fortalecidas pela revolução nacionalista. Venner avisa, cautelosamente, que “imaginar a Europa sob a hegemonia de uma nação seria retomar um sonho sangrento do qual a história ainda tem marcas recentes”.

Estes dois homens, François Gaucher e Dominique Venner, tiveram uma influência relevante nos rumos políticos do fascismo francês. Jean-Marie Le Pen, regressado da guerra da Argélia, fundou a Société d’études e de Relations Publiques (SERP) para a edição de música “tradicional”, como os cânticos militares da Wehrmacht e das Waffen-SS. Entre os seus sócios estava Léon Gaultier, colaboracionista ativo do regime de Vichy que lutou na frente leste com o uniforme das Waffen-SS e para quem o nazismo foi “uma grande aventura altruísta”. Gaultier era amigo de François Gaucher, cujos escritos fazia questão de partilhar com Le Pen. 

Por outro lado, Venner e o seu grupo Europe-Action participaram em 1965 na primeira tentativa (falhada) de Le Pen federar a extrema-direita. Mas quando em 1972 foi criada a Frente Nacional, o principal grupo envolvido, Ordre Nouveau, considerava que o panfleto de Venner tinha uma importância para o fascismo semelhante àquela que O que fazer? de Vladimir Lenine tivera para o movimento comunista.

Os apelos de Gaucher e de Venner para uma mudança da forma e dos métodos de ação não deve ser considerada uma espécie de revisionismo fascista. As suas vidas provam o contrário. François Gaucher foi um combatente empenhado do regime de Vichy que comandou um batalhão da Legião dos Voluntários Franceses contra o Bolchevismo (LVF), unidade do exército alemão constituída por voluntários franceses, na invasão da União Soviética. Quando caiu o regime de Vichy, refugiou-se na Alemanha nazi e posteriormente, com a derrota do nazismo, exilou-se na Espanha franquista. Condenado à morte in absentia pelo seu colaboracionismo, viveu em Espanha até à sua morte em 1990.

Já Dominique Venner, demasiado jovem para ter tido uma oportunidade no colaboracionismo, voluntariou-se para combater na Argélia e integrou a OAS. Ajudou a fundar várias organizações de extrema-direita, mas abandonou a atividade política em 1971.

Dedicou-se então à vida académica, tendo sido um colaborador próximo de Alain de Benoist, um dos pais teóricos do identitarismo de extrema-direita, e do GRÉCE, o centro académico de propagação de ideias de extrema-direita. Em 2013, Venner suicidou-se com pompa em frente ao altar da Notre Dame de Paris, aparentemente numa tentativa de agitar as consciências contra os perigos da homossexualidade e da imigração magrebina. A sua morte foi acolhida por notas de pesar dos mais altos dirigentes da FN, incluindo Marine Le Pen.

As ideias de Gaucher e de Venner continuam atuais na definição estratégica do fascismo francês e por essa via têm influenciado toda a extrema-direita europeia. Estruturas como o Partido Identidade e Democracia (que junta partidos como a FN, os nazis da AfD e da FPÖ, ou o Chega), que agrega a extrema direita no parlamento europeu, servem precisamente para fazer essa troca de experiências. 

O principal contributo da FN para o fascismo foi uma lição de adaptação aos novos tempos: a necessidade de se fazer uma mudança de roupagens para poder manter vivo o seu projecto político. A sua organização continua a construir-se pela mobilização da frustração e do ressentimento contra os supostos inimigos internos e externos que promovem a decadência da nação. E a sua solução continua a ser um regime autoritário, liderado por um homem forte e inspirado, que suprima as liberdades democráticas e restabeleça a ordem interna, que imponha em particular a total submissão do trabalho ao capital. 

Mas o fascismo contemporâneo (por enquanto) não centra a sua ação na atividade terrorista de milícias armadas e uniformizadas contra os sindicatos e os partidos da esquerda. O que vemos é políticos de aspecto convencional que na sua ação quotidiana, mas sobretudo quando chegam ao poder, se dedicam a minar todos os fundamentos do Estado liberal, a atacar as liberdades democráticas e a castigar sem piedade os sectores mais pobres e mais frágeis da sociedade. Os desenvolvimentos políticos dos últimos anos na Hungria, nos Estados Unidos ou no Brasil são um sério aviso. 

As linhas de continuidade entre o velho fascismo e a nova extrema-direita são mais profundas do que as aparências e a intervenção pública quotidiana podem fazer crer. Se os métodos e as aparências mudaram, tal deve-se a uma opção deliberada dos próprios fascistas, uma cedência necessária para agir num cenário desfavorável. Não devemos por isso deixar-nos enganar pelo truque de ilusionismo político favorito destas organizações: o de se deixarem vestir com as roupagens do populismo para melhor ocultar a sua filiação fascista.