Sociólogo. Professor na Universidade Europeia e investigador no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. 

Onde fica a crítica de classe à tauromaquia?

A direita defende a tauromaquia, enquanto à esquerda não existe consenso. A classe social conta uma história menos mistificada e menos nacionalista, embora mais realista. Mas tem estado ausente do discurso da esquerda sobre as touradas.

Ensaio
20 Outubro 2022

A tauromaquia não faz parte das principais preocupações da população portuguesa. O aumento dos preços, a saúde pós-pandémica ou a guerra de Ucrânia são hoje os temas prioritários. No futuro serão outros, mas as touradas dificilmente tirarão o sono à maioria das pessoas que cá vive e trabalha. 

Mesmo assim existem surtos tauromáquicos na opinião pública propiciados pela comunicação social. Emergem cada vez que alguém propõe alterar a idade mínima de assistência aos espetáculos taurinos, modificar o IVA dos bilhetes ou, num exercício de maximalismo político, proibir as corridas de touros. Nessas ocasiões, o debate torna-se aceso nas televisões, nos jornais ou nas redes sociais confirmando aquilo que já se suspeitava: as polémicas sobre a tauromaquia estão mediaticamente sobrerrepresentadas. 

Estamos perante uma questão inflacionada na arena pública, e para a qual também contribuem os partidos políticos. Estes dificilmente deixam fugir a oportunidade de marcar posições neste terreno. A sobrerrepresentação mediática e a inflação política não implicam que os portugueses sejam indiferentes aos assuntos tauromáquicos. De facto, não o são e expressam opiniões diversas que refletem uma saudável moderação afastada do ruído gerado pelos media e pelos partidos políticos.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Os partidos adotam um alinhamento mais ou menos fixo cada vez que as touradas chegam ao parlamento. A direita não tem dúvidas: a tauromaquia é para manter em nome das tradições, da cultura e do caráter nacional. A esquerda tem dúvidas, o que se traduz num leque de posições que vai da repulsa até à defesa entusiástica, passando por uma aprovação mais ou menos condescendente. Dir-se-ia que para a direita a tauromaquia não é um problema, enquanto para a esquerda é uma fonte de tensões. 

Porque é que acontece? Porque é que não existe na esquerda o consenso da direita? Para responder, convém olhar com mais atenção para os argumentos que oferecem cada uma das partes.

Para a direita, a tauromaquia possui uma origem milenar e está vinculada à idiossincrasia nacional. É, portanto, uma manifestação cultural típica de Portugal. Não interessa se estas afirmações são verdadeiras. De facto, dificilmente resistiriam a uma análise rigorosa.

Começando pela direita, vale a pena relembrar a campanha eleitoral das últimas eleições legislativas. Na altura, Rui Rio, na liderança do Partido Social-democrata (PSD), garantia a um grupo de forcados em Santarém o apoio do seu partido à tauromaquia. Os sociais-democratas nunca deixariam cair uma tradição autenticamente portuguesa. Surge assim a ideia de tradição como argumento. No mesmo sentido se manifestava a propaganda do partido Aliança presente num cartaz com a imagem de um touro e o slogan seguinte: “Nas nossas tradições ninguém mexe”. Parece, pois, que existe a tentativa de alterar uma tradição comum. 

O Centro Democrático Social (CDS) apontava na mesma direção na conferência “As touradas: factos e realidades”. Este evento tinha um objetivo duplo. Por um lado, argumentar junto dos assistentes sobre a tauromaquia como “realidade ancestral” do povo português. Por outro lado, desmontar os “mitos” e as “falácias” que difundem aqueles que desejam “apagar a tradição”. Estamos perante um elemento fulcral da nacionalidade que supostamente estaria a ser atacado. 

Pedro Pinto, deputado do Chega, de extrema-direita, insiste continuamente nesta ideia nas suas intervenções na Assembleia da República: o seu partido defenderá a cultura e as tradições da “nossa nação”. A Iniciativa Liberal (IL) desmarca-se dos argumentos até agora oferecidos. Defende a existência da tauromaquia sempre que haja pessoas que queiram participar em atividades taurinas ou assistir a espetáculos dessa natureza. Trata-se, segundo os liberais, de respeitar as liberdades individuais.

Em suma, para a direita, a tauromaquia possui uma origem milenar e está vinculada à idiossincrasia nacional. É, portanto, uma manifestação cultural típica de Portugal. Não interessa se estas afirmações são verdadeiras. De facto, dificilmente resistiriam a uma análise rigorosa. O que interessa é a sua capacidade de persuasão, ou seja, que funcionem como verdades para o eleitorado.

Na esquerda, o panorama é bem diferente. O Bloco de Esquerda (BE) é abertamente contrário à tauromaquia e a sua argumentação concentra-se em três pontos. Em primeiro lugar, os touros são animais que sentem e, por extensão, sofrem durante a corrida. Em segundo lugar, a tauromaquia exibe níveis de violência inadmissíveis em sociedades avançadas. Em terceiro lugar, os espetáculos taurinos beneficiam de apoios – subsídios e vantagens fiscais – procedentes do Estado ou das autarquias, o que não é justo ao tratar-se de uma atividade eticamente reprovável. 

Em geral, estes são também os argumentos do partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN). Não é fácil classificar-se este partido num eixo tradicional esquerda/direita, onde, nesta matéria e por razões de conveniência, posiciono junto ao BE. 

A argumentação do Partido Comunista Português (PCP) é diferente e está estreitamente ligada ao poder autárquico. O PCP reconhece que a tauromaquia faz parte das tradições do país e, por esse motivo, não pode ser suprimida por decreto. É preciso ter em conta que as tradições tauromáquicas constituem formas de expressão da cultura popular e da identidade de muitas povoações portuguesas, argumenta. Neste terreno, o poder central deve ouvir o que tem a dizer o poder local.

O Partido Socialista (PS) apresenta uma face tripla quando se fala em tauromaquia: rejeição, reivindicação e aceitação. A rejeição é encarnada, por exemplo, na figura da antiga ministra da cultura, Graça Fonseca, que se opôs à diminuição do IVA para os espetáculos tauromáquicos em nome do avanço civilizacional. Tratar-se-ia de desincentivar a assistência a eventos que representam um retrocesso ético para a comunidade. 

A reivindicação vem da mão de um membro histórico do PS, Manuel Alegre, extremamente crítico das palavras de Graça Fonseca. Alegre vê nelas um sintoma da correção política, da intolerância e da tendência punitiva contra a tourada. Esta constitui uma “grande tradição ibérica” que é necessário manter devido à sua dimensão artística, moral e transcendental. 

As classes populares não têm capital económico para ser donos de cavalos e carecem do capital social que acompanha a pertença a estas famílias. Quando olhamos para a tourada portuguesa descobrimos um espaço de desigualdades perpetuadas no tempo.

Por último, a aceitação é a atitude exibida pelo atual ministro da cultura, Pedro Adão e Silva, que declara o seu respeito pela diversidade de opiniões em torno da tauromaquia e mostra-se contrário à censura de “práticas culturais”. O ministro sugere que este tema é um “não-tema” para a disputa política, apostando na simples aplicação da legislação em vigor. As três caras do PS são visíveis. Há uma que não está longe do BE e que insiste na supressão dos valores que nos fazem regredir como pessoas. Há outra que coincide com a argumentação da direita quando fala em tradição e cultura. E há uma terceira que procura, sobretudo, não hostilizar a opinião pública com assuntos já regulamentados. 

Na esquerda há por onde escolher, embora também existam ausências na argumentação. Uma dessas ausências, especialmente significativa, é a da classe social. A esquerda refere a tradição, a cultura, o poder local, os valores civilizacionais ou o sofrimento animal quando olha para a tauromaquia, mas esquece-se das questões de classe. De algum modo, a ênfase noutros argumentos tem obscurecido a sua importância e, por conseguinte, todo o sistema de desigualdades sociais associados ao mundo do touro.

Para compreender a relevância da classe social na tauromaquia é preciso recuar no tempo e observar como se foi estruturando a tourada. A sua origem está nas caçadas dos nobres, que confrontavam touros – entre outros animais selvagens – como espécie de treino para a guerra. Ao mesmo tempo, deviam mostrar nesse confronto que eram merecedores de um estatuto social elevado: o prestígio aristocrático tinha de ser confirmado mediante uma luta honrosa que acabasse com a morte do animal. 

Assim, desde a Idade Média até, aproximadamente, ao século XVIII, a tourada foi uma dádiva que a nobreza oferecia ao povo durante, por exemplo, casamentos e batizados reais. As classes populares podiam comprovar numa praça (e gratuitamente) a destreza e a coragem dos cavaleiros. Estes só podiam ser nobres, enquanto a pé ficavam os seus ajudantes, inferiores em condição social. Em suma, a tourada servia para confirmar e reforçar o estatuto social dos privilegiados.

Os nobres foram perdendo o gosto pela guerra quando encontraram nas cortes reais um espaço para encenar o seu prestígio mediante a etiqueta, a cortesia e a conquista do favor do rei. Assim, a nobreza deixou de lutar para se tornar cortesã. Nesta altura, a tourada já não serve para exibir o estatuto social, daí que o espaço dos nobres seja ocupado, paulatinamente e desde o século XVIII, pela burguesia terratenente. Estes novos proprietários rurais são agora os cavaleiros na tourada: burgueses com um verniz aristocrático.

A estrutura convencional da tourada à portuguesa começou a ser fixada, sendo definitivamente estabilizada no século XX. Nessa estrutura temos os cavaleiros como profissionais remunerados e protagonistas da lide. Temos também os forcados, a pé e sem remuneração dada a sua condição oficial de amadores. E temos os touros, com os pitões protegidos para não ferir os cavalos. A modalidade tauromáquica que se diz nacional, a tourada à portuguesa, possui uma estrutura que limita o acesso das classes populares à profissionalização. Por outras palavras, a tourada à portuguesa é uma fonte de desigualdade social.

A burguesia terratenente tem controlado a estrutura da tourada, favorecendo os seus interesses. Por um lado, as suas ferramentas de trabalho, os cavalos, ficaram mais protegidos com a obrigação de embolar os touros. O risco de ferimentos para um bem tão apreciado é reduzido dessa maneira. Por outro lado, só os cavaleiros são profissionais remunerados. Perante isto, que saídas têm as classes populares que desejam vingar no mundo dos touros? 

Como não têm cavalos, terão de ser toureiros a pé, embora em Portugal sejam escassas as corridas onde ocupam o papel protagonista. Esta via de profissionalização oferece poucas oportunidades. De facto, os toureiros a pé portugueses sempre procuraram desenvolver as suas carreiras em Espanha, onde o toureio a pé é a modalidade dominante. Uma outra opção é integrar um grupo de forcados, mas estes fazem do amadorismo a sua razão de ser, o que nega qualquer possibilidade de profissionalização.

Quem é que pode ainda ser dono de cavalos especificamente treinados para a tourada? Em geral, os grandes proprietários rurais, grupo social do qual procedem maioritariamente os cavaleiros. São estes os que têm condições para criar e manter os cavalos, além de adquirir novos exemplares. Mas é também no seio destas famílias onde se aprende a lidar com o touro. São um repositório de saberes transmitidos através das gerações, o que permite a formação de estirpes de cavaleiros. 

Resumindo, as classes populares não têm capital económico para ser donos de cavalos e carecem do capital social – rede de relações e conhecimentos – que acompanha a pertença a estas famílias.

A tourada à portuguesa é uma fonte de desigualdade social. A burguesia terratenente tem controlado a estrutura da tourada, favorecendo os seus interesses.

Quando olhamos para a tourada portuguesa descobrimos um espaço de desigualdades perpetuadas no tempo. A hegemonia dos cavaleiros impede a abertura de vias de profissionalização para as classes populares. Sob esta perspetiva, a tourada não é algo de todos e para todos, como se costuma dizer. A verdade é que está mais próxima de ser algo de alguns e para alguns.

Como já disse, a classe social não conta para a esquerda no terreno da tourada. Mas contou alguma vez? Para responder, temos de viajar de novo ao passado e, mais concretamente, a Vila Franca de Xira. Segundo Luís Capucha no seu artigo “Festas de touros”, antes do 25 de Abril de 1974 os militantes democratas, herdeiros da tradição republicana, eram maioritariamente adeptos do toureio a pé. Faziam uma leitura da situação servindo-se da classe social: o toureio a pé representaria as classes populares que podem ascender socialmente graças às suas habilidades e à sua coragem. Não são como os cavaleiros, filhos dos latifundiários, que herdam o estatuto social, os cavalos e os conhecimentos. 

Com o 25 de Abril chegaram novas oportunidades e um grupo de toureiros a pé com a colaboração de alguns locais que pretendiam organizar corridas cujos protagonistas fossem, precisamente, os toureiros a pé como profissionais remunerados. Esses espetáculos não são touradas à portuguesa e sim corridas que, além dos próprios toureiros a pé, incluem picadores a cavalo e a morte do touro na praça. 

Abriram-se oportunidades de profissionalização para os toureiros a pé originários das classes populares ao longo de 1975 e 1976. Logo depois chegou a repressão policial e a intervenção estatal, que declarou ilegais tais espetáculos. Neste terreno não existiu qualquer rutura revolucionária ou democrática com o Estado Novo, uma vez que a normativa que se aplicou foi a aprovada durante a ditadura. Fechou-se assim a via popular para se regressar, de novo, à hegemonia dos cavaleiros. Desde então, ficou claro que as classes populares podiam dominar à vontade as largadas ou as esperas, enquanto eram secundarizadas no evento tipicamente nacional, isto é, na tourada à portuguesa.

A classe social conta uma história diferente da tauromaquia, menos mistificada e menos nacionalista, embora mais realista. Chegados a este ponto, resta responder a uma última pergunta: em que medida a classe social é relevante para a esquerda no seu posicionamento face às touradas?

Relembremos rapidamente aquilo que revela um olhar através da lente da classe social. Em primeiro lugar, a persistência de uma estrutura da tourada que satisfaz os interesses dos cavaleiros, procedentes na sua maior parte da burguesia latifundiária. Em segundo lugar, o bloqueio da profissionalização do toureio a pé, mais próximo das classes populares. Em terceiro lugar, o reencaminhamento das classes populares para modalidades tauromáquicas não remuneradas. Em quarto e último lugar, o esquecimento da própria classe social na interpretação dominante da tourada, hegemonizada por conceitos como a tradição, a cultura e a nação.

Ao Bloco de Esquerda a análise de classe serve-lhe de pouco. O seu vocabulário é o do sofrimento animal, o dos direitos dos animais ou o das touradas como escolas de violência. Dificilmente adotará a perspetiva da classe social. Não faria muito sentido denunciar as desigualdades sociais e defender a sua correção na atividade tauromáquica quando, em geral, deseja ver suprimida a própria atividade. 

A mesma análise de classe pode ser, à partida, mais pertinente para o PCP ou até para o setor do PS que reivindica o valor da tourada. Historicamente, a esquerda sempre desconfiou dos movimentos protetores dos direitos dos animais. A raiz da desconfiança foi sempre a mesma desde o século XIX: estes movimentos não passariam de organizações burguesas que se preocupavam mais com a sorte dos animais do que com as desfavoráveis condições de vida que a dominação capitalista impõe ao proletariado. Essas organizações, muitas delas fundadas por aristocratas em horas baixas, operavam no mundo urbano e exibiam, aos olhos dos comunistas, um desconhecimento absoluto do mundo rural, onde as relações animal humano-animal não-humano são diferentes das relações dos urbanitas com os seus animais de estimação. 

Neste sentido, o PCP não usa o vocabulário do BE, sendo mais sensível às particularidades e às identidades locais, muitas delas localizadas no âmbito rural e favoráveis à celebração de espetáculos tauromáquicos. 

A verdade é que a correção das desigualdades sociais associadas à tauromaquia implicaria alterar o equilíbrio de forças na tourada retirando poder e protagonismo aos cavaleiros e organizando mais espetáculos de toureio a pé. Não é, pois, uma correção simples de executar. Também não se percebe muito bem qual seria o ganho eleitoral para os partidos. Ao fim e ao cabo, não deixa de ser uma espécie de reforma de um setor de atividade que interessa, sobretudo, aos envolvidos na atividade. Não nos esqueçamos que os portugueses têm opiniões sobre as touradas, mas que não fazem parte das suas preocupações principais. Assim, tudo aponta para a total ou a relativa irrelevância que a classe social tem para a esquerda no debate sobre as touradas. 

Este debate continuará a ser dominado pela tradição, pela cultura e pela nação apesar das idealizações, romantismos e exageros que propiciam estes argumentos. 

É frequente ouvir a afirmação de que as touradas não são de esquerda nem de direita. Como declaração de intenções, até pode ser verdade: nenhuma atividade humana possui um significado intrínseco até os diferentes grupos sociais tentarem a sua apropriação impondo um dado significado, unívoco e tido como correto. Mas essa afirmação, quando observada pelo filtro da classe social, é inexata. Sabemos que há grupos sociais privilegiados e secundarizados. Sabemos que há desigualdades. Sabemos que há interesses satisfeitos e desatendidos. E sabemos que a base social do privilégio está no cavaleiro e nos proprietários latifundiários. Sob esta ótica, não parece que a tourada esteja muito virada para a esquerda.