Jornalista e professor de jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS). Cronista na Antena 1 e no Sapo24.

O pivô também como repórter

Não se deve ser pivô sem primeiro trabalhar, por bastante tempo, talvez dez anos ou mais, a experiência sensorial, diária, da reportagem. Falta ao pivô-editor fechado no estúdio a experiência essencial: sentir diretamente a realidade tratada. Ter à frente as pessoas que fazem parte da notícia e aí deixar funcionar os sentidos.

Ensaio
14 Janeiro 2022

Aconteceu-me ser posto em pivô e editor de noticiários da rádio (um jornal, com meia hora, ao fim da tarde) quando ainda só tinha dois escassos anos de ofício como jornalista e vinte e poucos de idade. Fui metido em recurso: o editor titular tinha saído para a televisão e a sub estava em férias. A minha tarefa era para ter sido coisa passageira, tornou-se modo de vida nas décadas seguintes a abrir manhãs na rádio.

O tempo veio a mostrar-me que, apesar do grande prazer naquela tarefa vivida com todo o entusiasmo e dedicação absoluta como aventura diária, não tive sabedoria para escolher bem o percurso: não se deve ser pivô sem primeiro trabalhar, por bastante tempo, talvez dez anos ou mais, a experiência sensorial, diária, da reportagem.

Reconheço que ser pivô-editor é um desafio sedutor, que se tornou para mim irresistível: pude (pude sempre) escolher o corpo da equipa, contar com repórteres finos, cultos, cheios de curiosidade e persistentes, e também com jornalistas pilares de tudo nas vitais tarefas de produção. Com esta base e a usar a autonomia editorial, foi construído um modelo alternativo de agenda em que, em vez da omnipresença da intriga política, ficou possível partilhar no espaço do noticiário da rádio o que havia para contar de áreas muito eclipsadas nas notícias, como as ciências, as artes, a economia, a natureza e o ambiente, para além de puxar pelo que acontece no mundo.

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A ambição era a de fazer diferente e a tarefa era a de contrariar a distorção pela hegemonia, quase exclusividade, do discurso político e laboral que só tinha escape no futebol. Ouvi reparos, mas o modelo cresceu e reproduziu-se.

O trabalho de pivô-editor tem o aliciante de, para além da condução de equipa na procura, discussão e seleção do que se afigura relevante agregar para contar, também ousar procurar a melhor construção estética do noticiário. Isso passa por explorar o léxico com a aspiração de depurar a palavra, procurar escolher palavra a palavra, como se recorrendo a uma pinça para experimentar, qual é a mais certeira para traduzir de forma simples, sem abdicar do esforço de originalidade, a complexidade dos acontecimentos, e harmonizar o envolvimento sonoro.

Mas falta ao pivô-editor fechado no estúdio a experiência essencial: sentir diretamente a realidade tratada. Ter à frente as pessoas que fazem parte da notícia e aí deixar funcionar os sentidos. A observação, a escuta, até o tato são essenciais na indagação requerida pela preparação para contar.

Conseguir assimilar o “poliedro da inteligibilidade” (Foucault), ou seja, visualizar e compreender todas as faces da história a ser contada, passa por compor, decompor e recompor o enredo das informações recolhidas no lugar do acontecimento. Implica, portanto, estar lá.

O pivô, sem essa essencial experiência continuada a encontrar as pessoas, a escutar-lhes a voz, a observar-lhes os gestos, a dar-lhes a atenção que é devida, a entender a realidade delas, a senti-las nas mágoas e ambições, a explorar os lugares, é penalizado pela falta de vida vivida para melhor poder captar e contar a realidade.

A perceção desse defeito levou a procurar modos para tentar suprir a falha. Boa opção para ocasiões especiais: o pivô-editor acumula a tarefa de repórter. Seja em acontecimentos imprevistos, seja em ocasiões planeadas. Tomemos exemplos práticos.

Acontecimento imprevisto: a queda da ponte em Castelo de Paiva/Entre os Rios. Naquele domingo, 4 de março de 2001, tinha ido a uma sessão da noite no cinema. A manhã de segunda-feira na Antena 1, que tinha para editar e apresentar, estava preparada com vários temas programados. Só quando já estava em casa, à 1 da manhã, soube do trágico colapso da ponte envolvendo um autocarro cheio de passageiros. Obviamente, era preciso todo o esforço para levar aos ouvintes a informação mais precisa e completa. Não fazia sentido que a condução da informação do amanhecer estivesse a mais de 300 quilómetros de distância. Tinha autonomia para decidir sem precisar de autorizações (a entrada deste século ainda não tinha os constrangimentos que assaltaram e empobreceram as redações e o jornalismo). De imediato telefonei para a Ana Fernandes, produtora de sempre, e para o José Guerreiro, o repórter de primeira linha na equipa. Combinámos seguir imediatamente para Entre os Rios.

Na viagem pela madrugada, a Ana Fernandes articulou com a equipa da Antena 1 no Porto, tanto o reforço dos meios técnicos como a mobilização de mais repórteres. Às 7 da manhã, o noticiário começou conduzido pela pivô Augusta Henriques em Lisboa e, instantes depois, a emissão passava a ter origem a margem sul do Douro, junto ao que era a ponte.

Recordo-me da estranheza da primeira imagem num lugar onde a emoção arrepiava: sentia-se um silêncio imponente, de pós-devastação, via-se um pilar de pedra do topo do qual se desagarrava a estrutura de ferro da parte sul do tabuleiro da ponte, tombada sobre o caudal desenfreado do rio que era sulcado por zebros de equipas de busca. O nevoeiro espesso cobria tudo o mais do que era aquela ponte.

A reportagem manteve-se em direto non stop por todo aquele dia de angústia. Depressa tomámos a decisão, acertada com a rádio, de assim continuar pelos dias que fosse necessário. Ficámos por uma semana, outros continuaram por um mês.

O pivô, em todos esses primeiros dias, foi sobretudo repórter. Com a tarefa de também enquadrar os outros repórteres em diferentes posições naquele lugar de desolação.

Para que o ofício de observar, entender e contar possa ser cumprido com a mais fina precisão é preciso respirar o ar do lugar, absorver o que vem dos sentidos, escutar cara a cara a voz das pessoas. É preciso estar lá, com apurada atenção a tudo.

Recordo o que discutimos na conferência crítica no final do primeiro dia de reportagem: avaliámos ter respondido com eficácia ao tempo da urgência, assentámos que deveríamos continuar a focar-nos nas operações de busca dos desaparecidos, também a investigar para tentar contar a vida dessas 59 pessoas (não houve sobreviventes), e a relatar o que por ali corria, a revolta das pessoas contra velhas incúrias do Estado.

Foi muito discutido pela equipa o modo de lidarmos com a emoção das pessoas. É da prática de reportagem que o microfone do gravador esteja sempre aberto. Assentámos que, neste cenário de tragédia, por princípio, teríamos grande contenção na transmissão dos sons do desespero ou na exposição das lágrimas – não faria sentido escondê-las por elas serem presença constante, mas nunca ir para além do necessário para documentar aquela realidade. Também ficou reforçado que não apontaríamos o microfone a quem estivesse em descontrolo. Nem foi necessário lembrarmos que não haveria – é suposto nunca haver - perguntas do grupo de disparate “como se sente?”.

Tal como é essencial quando estamos na redação cultivarmos a conferência crítica diária, também é vital que uma equipa em reportagem avalie, com frequência, no terreno, o que está a fazer e afine estratégias. Essa discussão deve envolver também quem está na redação e que pode acrescentar a avaliação de quem não está tão exposto à tensão emocional do lugar da tragédia.

Ao segundo dia, um dos lugares da reportagem foi a vizinha freguesia de Raiva, onde uma só família tinha perdido nove pessoas. Estava lá um padre e uma equipa de psicólogos e assistentes sociais, tentavam algum consolo a quem estava em desespero. O nosso repórter decidiu, como tínhamos combinado, não meter o microfone na intimidade das falas naquela tormenta.

Os dias foram passando e íamos sentindo que seria preciso deixar passar o tempo para assimilarmos por inteiro o significado do que estava a acontecer. E houve que relatar essa constatação, era a realidade captada pelos repórteres.

O vivido nesta semana de reportagem mostrou a mais valia da opção de ter no lugar da notícia quem edita e quem conduz a equipa de repórteres.

A noção do acerto dessa escolha de pivô no lugar da notícia é a mesma para o caso de acontecimentos planeados. Para uma manhã dedicada ao conclave no Vaticano, que tinha em fundo a sucessão papal, obviamente fez todo o sentido que o pivô estivesse junto à basílica de São Pedro e pudesse, por exemplo, enquadrar a reportagem com o relato da atmosfera no que estava acessível dos museus vaticanos e em volta da grande praça com gente de tantos lugares do mundo e até de outras crenças. Para a cobertura informativa do combate aos incêndios no pinhal central de Portugal, o relato fica mais sustentado com o pivô junto ao posto de comando da Proteção Civil no terreno. O mesmo para contar, por exemplo, a maré negra provocada pelo petroleiro Prestige no mar da Galiza.

Há uma evolução nos últimos anos. As redes de televisão ganharam muita da agilidade que antes era quase exclusivo da rádio. O pivô de uma emissão de rádio, num estúdio, com uma bateria de ecrãs à frente dele, a poder observar as imagens em direto de três ou quatro diferentes origens e perspetivas sobre um acontecimento relevante, tem a possibilidade de juntar relatos de pormenor à visão geral do acontecimento. Foi assim no relato do terror nas Torres Gémeas de Nova Iorque no 11 de setembro de 2001. Ou a contar os efeitos de uma tempestade.

Mas, para que o ofício de observar, entender e contar possa ser cumprido com a mais fina precisão, é preciso respirar o ar do lugar, absorver o que vem dos sentidos, escutar cara a cara a voz das pessoas. É preciso estar lá, com apurada atenção a tudo.

Este testemunho foi originalmente publicado no Manual de Reportagem REC, organizado por Pedro Coelho, Ana Isabel Reis e Luís Bonixe, e editado pela Livros Labcom em 2021.