Licenciada em História e mestre em História intelectual pela Universidade de Saint Andrews.  Doutoranda em Humanidades Digitais na School of Advanced Study, Universidade de Londres, onde estuda a interpretação da ideia de Europa nos média. 

O judeu de Veneza: dinâmicas de opressão em Shakespeare

É certo que nunca vamos saber ao certo se Shakespeare era ou não antissemita. Seria difícil para um inglês do século XVI ser outra coisa que não antissemita. É certo, sobretudo, que para a audiência do século XVI o final de Shylock, obrigado a converter-se ao cristianismo, foi justo e merecido.

Ensaio
8 Setembro 2022

O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, é uma peça que merece na sua plenitude o epíteto “problemático”. Em primeiro lugar, é uma comédia. Em segundo lugar, sendo uma comédia, ela tem um final feliz. Os amantes casam, os amigos reconciliam-se, e o vilão é devidamente castigado. All’s well when ends well

Infelizmente, o vilão é um judeu de nome Shylock, o final feliz é a sua conversão forçada ao Cristianismo, e os amigos que se reconciliam são os cristãos que lhe cuspiram para cima. A comédia da peça centra-se à volta do leilão de Portia; isto é, em virtude do testamento bizarro do pai, Portia terá de casar com o homem que acertar na adivinha que o pai escreveu. Portia está a ser “vendida” a quem for íntegro o suficiente para resolver o enigma. 

Em boa verdade, a peça já começa com uma contradição. Bassanio precisa desesperadamente de dinheiro para ir à conquista de Portia, mas, não o tendo, vai pedi-lo ao amigo, Antonio, o titular mercador. Antonio não tem, de momento, capital disponível, pois está tudo investido nos seus navios que estão no mar e ainda não lhe trouxeram retorno. 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Antonio, que despreza pedir dinheiro emprestado a juros, aceita pedir emprestado a Shylock, que emprestava a juros. É certo que o Evangelho não permite juros, mas valores mais altos se levantam: o seu melhor amigo tem de ir casar com uma herdeira rica. Shylock concorda e decide não cobrar o tradicional juro. 

Em vez disso, pede um pedaço da carne de Antonio caso este não consiga pagar o empréstimo em três meses. Aqui a doutrina divide-se pela primeira vez: estava já Shylock a planear mutilar e provavelmente matar Antonio ou estava ele a demonstrar genuína boa vontade? 

Antonio não consegue juntar o dinheiro necessário para pagar a dívida no prazo acordado, pois todos os seus navios ainda estavam no mar e ele ainda não tinha recebido retorno dos seus investimentos; Shylock decide então reclamar o seu bocado de carne.

O que perturba mais Shylock? A perda do dinheiro ou da filha? Uma leitura antissemita prefere a primeira opção. Uma mais benévola diz que ele simplesmente quebrou perante uma sociedade que o humilha.

Entre estes dois eventos – o acordo e a cobrança – várias coisas acontecem: Bassanio casa com Portia, a herdeira rica, e a filha de Shylock, Jessica, foge com um cristão, levando consigo jóias e dinheiro do pai. Shylock vai pelas ruas de Veneza a gritar “oh my daughter, oh my ducats”. Novamente, o texto é ambíguo. O que perturba mais Shylock? A perda do dinheiro ou da filha? 

Uma leitura antissemita prefere a primeira opção. Quando vi a peça há uns meses no Globe em Londres, um senhor sentado ao meu lado disse-me que achava que a razão pela qual Shylock perde a cabeça é porque a filha lhe levou uma joia específica: um anel que a falecida mulher de Shylock lhe havia oferecido quando eles namoravam (“I had it of Leah when I was a bachelor”) e que a filha troca por um macaco (“I would not have given it for a wilderness of monkeys”).

Esta é uma interpretação mais benévola e é aquela que muitas versões nas últimas décadas preferiram. Aqui, Shylock abandona qualquer pretensão a maquiavelismo; ele simplesmente quebrou perante uma sociedade que o humilha, que o obriga a viver num gueto e a ser agiota, que lhe rouba filha e os meios de subsistência. A violência que Shylock utiliza contra Antonio é apenas uma fracção da violência que foi usada contra ele durante toda a vida, pois Shylock é um homem velho, com uma filha já crescida. É a violência do oprimido contra o opressor. 

Contudo, ainda temos que nos bater com o fim da peça. Antonio e Shylock vão a tribunal para ver se o pagamento exigido por Shylock em troca da dívida é válido. Antonio é então defendido por uma Portia disfarçada de advogado, que prega a misericórdia a um judeu que ela obriga a converter-se ao cristianismo e cuja parte dos bens será dada ao cristão que lhe raptou a filha. Parafraseando Harold Bloom, a Shylock não é dada, sequer, a dignidade de morrer pela sua fé. E é este o final feliz. Os cristãos triunfam, o judeu é obrigado a converter-se, e a sua filha torna-se cristã porque casou com um deles. 

É certo que nunca vamos saber ao certo se Shakespeare era ou não antissemita. Seria difícil para um inglês do século XVI ser outra coisa que não antissemita. É certo, sobretudo, que para a audiência do século XVI o final de Shylock foi justo e merecido. Há um dado interessante, que me foi revelado numa tour shakespeariana de Londres há uns meses: é possível que o pai de Shakespeare tenha tido problemas com a Justiça lá nos confins do século XVI por, precisamente, emprestar dinheiro a juros.

Parafraseando Harold Bloom, a Shylock não é dada, sequer, a dignidade de morrer pela sua fé. E é este o final feliz.

Talvez o problema se resolva de uma forma mais prosaica: sim, Shakespeare era antissemita, mas era também, fundamentalmente, um excelente escritor e um extraordinário construtor de personagens. A Shylock é dada a graça de não ser um sanguinário, é dado o benefício da dúvida, é dada, enfim, complexidade. 

E esta dádiva advém, talvez, do talento de Shakespeare se sobrepor aos seus preconceitos. É quase como se Shakespeare não se conseguisse controlar. E, por isso, um Shylock que chora a perda do dinheiro, mas que tem uma vida íntima, que sofre pela filha e que sofre, sobretudo, pela mulher morta, é mais interessante do que um Shylock que é apenas uma caricatura unidimensional da ganância.

 

As representações modernas

As representações da peça nos últimos anos acentuam este Shylock-vítima, muito mais do que o Shylock-agressor. Com boa razão. O Mercador de Veneza foi uma peça popular na Alemanha Nazi, precisamente porque Shylock servia como exemplo do judeu-típico, mesquinho, sedento de sangue cristão. 

Contudo, as representações na Alemanha nazi excluíam partes importantes, como o casamento entre a filha de Shylock, Jessica, e um cristão, proibido pelas leis de Nuremberga. O famoso monólogo “Hath not a Jew eyes”, em que Shylock afirma a igualdade entre cristãos e judeus, era também suprimido. 

Hoje em dia, no nosso mundo pós-Holocausto, representações da peça desenvolvem o papel de Shylock até aos limites permitidos pelo texto e, vão, por vezes, além deles. Na versão dirigida por Trevor Nun, em 2001, passada numa Alemanha/Europa dos anos 1920, Shylock e a filha conversam em Ídiche. 

Na recente representação no Globe Theatre, Shylock explica à audiência que emprestar dinheiro é a única profissão que as leis de Veneza lhe permitem exercer. Talvez a mais famosa versão até à data, o filme de 2004 com Al Pacino como Shylock e Jeremy Irons como Antonio, acaba com Shylock a ser excluído do gueto de Veneza. É dele a última cena. Versões modernas da peça não permitem o desconfortável quinto ato, em que Shylock não é sequer mencionado, e é totalmente dedicado às festividades dos cristãos que celebram a vitória sobre o judeu. 

Tais versões modernas da peça incluem também, frequentemente, um outro elemento assinalável: na altura de esventrar Antonio, antes da intervenção de Portia, Shylock hesita. Na representação que esteve em cena no Globe, perante a hesitação de Shylock, Antonio pega na mão de Shylock, que segura uma faca, e dirige-a contra o seu próprio peito enquanto murmura “do it, Jew, do it, Jew, do it, Jew”. Shylock não quer verdadeiramente matar ninguém. Ele foi apenas levado ao limite.

Contudo, creio que Shakespeare dá a Shylock uma verdadeira vingança. Só não tenho a certeza se o faz de propósito. Ao examinarmos a peça com cuidado, verificamos que Antonio e Bassanio começam como protagonistas, mas acabam secundarizados perante Portia e Shylock.

Versões modernas da peça não permitem o desconfortável quinto ato, em que Shylock não é sequer mencionado, totalmente dedicado às festividades dos cristãos que celebram a vitória sobre o judeu.

Eles são as personagens mais bem escritas; as falas de Shylock são muito mais rítmicas e intrincadas do que as de Antonio. Ele é uma personagem com sentido de humor, e enquanto os sentimentos de Antonio e Bassanio pelas pessoas que amam (Antonio ama Bassanio e Bassanio ama Portia) revelam-se superficiais e interesseiros (Antonio empresta dinheiro ao amante para que este vá casar com uma herdeira rica), Shylock transforma-se, com uma linha apenas, em alguém que amava verdadeiramente a mulher – talvez a única pessoa na peça que ama de verdade. 

Shylock é, em suma, uma melhor personagem do que Antonio e Bassanio. Na realidade, a peça acaba como um duelo entre as personagens mais bem escritas: Portia e Shylock. E elas são também as personagens mais oprimidas de toda a peça (juntamente com Jessica, mas esta acaba por se converter ao Cristianismo). 

E é talvez aqui que se encontra o elemento mais perturbador de toda a história. Portia está a ser vendida pelo falecido pai a quem conseguir ser esperto o suficiente para decifrar um enigma. Shylock está constantemente a ser humilhado pelos cristãos que o rodeiam. Bassanio não gosta de Portia, está com ela por interesse; no fundo, é um roubo. Shylock é roubado pela própria filha e pelo genro. Estas duas personagens que tinham tudo para se unirem, acabam voltadas uma contra a outra. 

Pior: Portia, que é oprimida pelos homens da peça, é usada por eles mesmo como instrumento de opressão contra a única personagem que tem ainda menos poder do que ela. 

Talvez as palavras mais revolucionárias que Shakespeare escreveu são proferidas por Shylock: “Thou calledst me a dog before thou hadst a cause / But since I am a dog, beware my fangs." 

É o sentido de responsabilidade histórica que nos leva a ver Shylock como uma vítima e não como um vilão, embora tenha sido assim que ele era visto no século XVII.

A passagem traz à memória Ricardo III: “And therefore, since I cannot prove a lover / To entertain these fair well-spoken days, / I am determined to prove a villain / And hate the idle pleasures of these days”. A diferença é que Ricardo era de facto um verdadeiro vilão. O desprezo a que foi condenado não combinava – era desproporcional – com os seus actos de maldade. Shylock não é um vilão. Ao contrário de Ricardo e de Iago, ele chora pelos que lhe são próximos. Ele é objeto de troça e de ódio, mas por baixo disso há uma certa solenidade, pois a nenhum outro vilão Shakespeariano é concedida uma justificação tão legítima para a sua violência. 

Mesmo que Shakespeare tenha sido, como é muito provável, tão antissemita como os seus contemporâneos, há algo de extraordinário em Shylock, que o coloca na lista das melhores personagens de Shakespeare. A peça e a personagem acompanham a passagem do tempo de uma forma quase paradoxal: é o sentido de responsabilidade histórica que nos leva a ver Shylock como uma vítima e não como um vilão, embora tenha sido assim que ele era visto no século XVII. 

É a nossa consciência moderna, ampliada pelo mundo pós-Holocausto, que nos permite ter pena dele e até torcer por ele. Antonio, Bassanio e até Portia tornam-se uns pequenos fascistas, enquanto nas representações originais eles eram os heróis da peça. O mesmo texto, as mesmas personagens, mas um significado radicalmente diferente, modificado pelo contexto histórico e por um texto flexível e engenhoso o suficiente para permitir a mudança.