Revisor, tradutor e sonoplasta. Fundador do CADPP (Comité para a Anulação da Dívida Pública Portuguesa) e membro da rede internacional CADTM (Comité para a Anulação das Dívidas Ilegítimas). Co-autor do livro "Quem Paga o Estado Social em Portugal?".

O envelhecimento da população: ciência ou vudu ideológico?

Será o envelhecimento da população portuguesa uma ameaça real à sobrevivência da nossa sociedade, à sustentabilidade da segurança social e ao financiamento das pensões? Ou será apenas uma trapaça neomalthusiana?

Ensaio
29 Setembro 2022

A campanha contra os idosos foi um dos cavalos de batalha da governação de Pedro Passos Coelho no tempo da ingerência directa da Troika em Portugal e, em 2013, teve por epítome um queixume do deputado do PSD Carlos Peixoto (“a nossa pátria foi contaminada com a já conhecida peste grisalha”). Este episódio anedótico suscitou numerosos protestos, passou pelo crivo bafiento dos tribunais portugueses e acabou no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

Passado esse ponto alto do espectáculo parlamentar, o debate sobre os idosos prosseguiu de forma mais discreta, sustentado por think tanks como a Fundação Francisco Manuel dos Santos e o seu braço digital Pordata, que de mão dada com a Agência Lusa produziu vários documentos para desencaminhar os jornalistas mais desprevenidos e o público em geral. Criaram o pânico do envelhecimento catastrófico da população.

Espanta-me que, artigo após artigo, tantos autores se prestem a ecoar esse grito de alarme neomalthusiano: que horror, já chegámos ao ponto de ter 182 idosos (pessoas com 65 anos ou mais) para cada 100 jovens (pessoas dos 0 a 14 anos)!

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Em primeiro lugar, não percebo de onde saiu esta definição de jovens. Porquê dos 0 aos 14 anos? O que acontece com as pessoas dos 15 aos 18 anos? Fazem parte de que grupo? Não podem entrar legalmente no mercado de trabalho, ainda não votam, ainda não são “idosos”, mas já não são jovens? É mistério que a Pordata ainda não teve a bondade de explicar, deixando os pobres coitados no limbo.

Em segundo lugar, parece-me evidente que o horror perante aquele rácio de 182/100 entre idosos e jovens tem um cariz moral, ou ideológico. Porque é que 182/100 haveria de ser pior ou melhor do que 100/182? Não se vislumbra nenhuma razão lógica.

A campanha contra os idosos teve por epítome um queixume do deputado Carlos Peixoto: “a nossa pátria foi contaminada com a peste grisalha”.

Ponhamos, entretanto, de lado as vozes mais disparatadas e ouçamos os alarmistas mais benignos, aqueles que dizem que é formidável as pessoas não morrerem tão cedo como dantes, terem tempo para gozar a vida após 40-50 anos a trabalharem que nem uns mouros, mas, acrescentam, pelo andar da carruagem, é preocupante no futuro não sobrarem adultos suficientes para produzir a riqueza necessária para alimentar os idosos.

É urgente desmontar todos estes sofismas, denunciar a mistificação do “envelhecimento da população”.

Vamos brincar às pirâmides

A maneira mais fácil de apreender o que está em causa no debate sobre o “envelhecimento” consiste em olhar para a pirâmide etária da população. Trata-se de uma representação gráfica que nos diz instantaneamente quantas pessoas têm um ano de idade, dois anos, 30 anos, 85 ou mais anos.

Nas sociedades menos desenvolvidas, a representação gráfica da estrutura etária da população assume a forma aproximada de uma pirâmide, daí o seu nome. Um exemplo característico é o de Portugal na década de 1950 (gráfico 1).

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Gráfico 1

O que aqui vemos é uma pirâmide etária muito semelhante à do Brasil na década de 1980 e de outros países do Sul Global: a base da pirâmide estreita rapidamente (ou seja, há muitos nascimentos, logo seguidos de elevada mortalidade infantil), assim como o topo da pirâmide (ou seja, há elevada mortalidade entre os maiores de 40 anos).

Como passámos deste cenário para o da pirâmide invertida (Gráfico 2), típica das sociedades europeias actuais?

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Gráfico 2

Numerosos factores contribuem para a inversão da pirâmide etária. Comecemos pelos mais óbvios: 1) introdução de um sistema público de saúde pródigo em cuidados pré-natais e pediátricos, o que reduz drasticamente a mortalidade infantil; 2) aumento generalizado dos níveis de educação e salubridade; 3) cuidados de saúde acessíveis a toda a população, permitindo um alongamento da esperança de vida; 4) entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, subtraindo-as em parte ao seu papel de parideiras profissionais; 5) generalização dos métodos de planeamento familiar e contracepção.

O efeito conjugado destes factores sugere uma alternativa ao termo “envelhecimento”: mais adequado seria talvez “uma população mais saudável e longeva”, fórmula que não tem conotações pejorativas, leva em conta não só os factores quantitativos mas também os qualitativos, e retrata melhor a evolução social, política e económica.

Para invertermos a nossa pirâmide etária no espaço de 70 anos, tivemos de adquirir um conjunto de valores e paradigmas civilizacionais de que não dispúnhamos no tempo da ditadura (1926-1974). Por exemplo, a introdução de critérios mais razoáveis de higiene e segurança no trabalho, juntamente com a aceitação do papel dos sindicatos na sociedade, salvou da morte precoce milhares de jovens adultos. O respeito acrescido pelo trabalho e pelo seu papel na sociedade ajudou a engordar o topo da pirâmide etária. Isto significa o seguinte: a regressão a uma pirâmide etária “de pé” significaria um regresso à barbárie.

A evolução demográfica avança à velocidade de caracol

Um importante aspecto a ter em conta na análise da evolução da população tem que ver com a velocidade de reacção dos fenómenos demográficos. Não podemos esperar que as políticas públicas que tomamos neste momento tenham efeitos imediatos, como se se tratasse de uma reacção química instantânea. Se, por exemplo, introduzirmos numa sociedade uma campanha de educação e de planeamento familiar, podemos ter a certeza de que os seus efeitos só se tornarão visíveis, por motivos óbvios, à distância de uma geração ou mais.

Por outro lado, como sucede com tudo o mais nas sociedades humanas, um factor (no exemplo dado, o planeamento familiar) nunca actua isoladamente: interage com uma vasta teia de factores (o rendimento mediano da população, as condições de habitação, as mudanças nos paradigmas éticos, etc.). Daí não nos podermos admirar se uma medida aplicada de forma isolada acabar por não dar os resultados previstos ou até se os contrariar.

Esta complexidade, inerente a todas as relações sociais, é responsável pelo falhanço rotundo de muitos dos modelos de previsão do futuro aplicados nas últimas décadas.

Uma coisa chamada “dependência”

Os gurus do envelhecimento populacional catastrófico evocam o suposto peso excessivo dos dependentes na situação económica presente e futura do país. Mais uma vez, é preciso entender o conceito inerente para driblar o sofisma.

Dependentes são todos os membros da sociedade que necessitam do apoio da população em idade activa, isto é, da população disponível para trabalhar. As crianças, os jovens em idade escolar, os estudantes universitários antes de entrarem no mercado de trabalho, as pessoas reformadas ou incapacitadas são todos dependentes. Contudo, os gurus do envelhecimento catastrófico tendem a pôr a tónica nos pensionistas (a tal “peste grisalha”), e esta definição maliciosamente curta permite-lhes enviesar a leitura das tabelas estatísticas.

O conceito de «população em idade activa» não é um dado da natureza, mas civilizacional. Há 100 anos, parecia natural uma criança pré-adolescente trabalhar numa mina de carvão.

Recordemos que o conceito de «população em idade activa» não é um dado da natureza. É um dado da civilização. Há 100 anos, parecia natural uma criança pré-adolescente trabalhar toda a noite numa padaria ou nas minas de carvão. Hoje, isso é visto como um crime. Os critérios que aplico à organização dos dados disponíveis baseiam-se em larga medida nesta constatação: há um conjunto de valores civilizacionais adquiridos que nos forçam a actualizar o cálculo demográfico à luz dos avanços civilizacionais adquiridos. A adopção deste princípio justifica o facto de os números constantes dos gráficos aqui apresentados diferirem dos que são geralmente transmitidos por entidades como o INE ou a Pordata.

À medida que a pirâmide etária se inverte, o que temos à vista é não só um aumento dos dependentes idosos, mas também uma diminuição dos dependentes jovens. Isto deveria fazer qualquer pessoa de boa-fé pensar: espera aí, então se tirámos da base da pirâmide para pôr no topo, talvez o bloco que ficou no meio (os que sustentam os dependentes) se tenha mantido proporcionalmente igual. Vamos lá verificar (Gráfico 3).

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Gráfico 3

Em 1970, 55 % da população estava em idade activa. Em 1995 esse grupo constituía 61 % da população; e em 2020 representava 60 % do total da população residente. Moral da história: no espaço de meio século invertemos a pirâmide etária, sim, mas a situação, do ponto de vista dos recursos disponíveis para suportar os dependentes, não piorou, melhorou, porque há agora mais pessoas disponíveis para trabalhar do que havia há 50 anos (Gráfico 4). Exactamente o oposto do que dizem os neomalthusianos e neoliberais!

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Gráfico 4

 Ao longo de quase meio século, a instalação de serviços públicos de saúde e educação causou um forte impacto na estrutura etária da população. Esse impacto levou alguns anos a evidenciar-se por causa da “lei da velocidade do caracol demográfico” acima mencionada, mas por fim fez-se notar: a mortalidade pré-natal, natal e infantil caiu espectacularmente, os cuidados de saúde e prevenção prolongaram a vida de muitos milhares de pessoas, a melhoria de algumas condições de trabalho poupou muita gente a uma morte precoce.

Em 2003, os “sustentadores” (chamemos assim ao grupo social não dependente) atingiram o seu valor máximo até à data: 62 % da população. A perda de 2 % no grupo social que em 2020 suporta os dependentes não me parece assustadora. Primeiro, porque 2020-2022 são anos atípicos, por causa do covid-19 e das medidas impostas pela governação a esse propósito. Segundo, porque os não dependentes continuam a constituir a larga maioria da população.

Além disso, é regra – quando nada de tão radical ou imprevisível como uma guerra, uma catástrofe natural ou medidas políticas bárbaras afecta o processo demográfico – que o equilíbrio demográfico tenda naturalmente para a estabilização depois de uma fase de transição. E se políticas bárbaras houver, como me parece ter sido o caso de algumas das medidas adoptadas pelas autoridades a coberto da pandemia de covid-19, então o problema não é demográfico, mas sim político.

Seja como for, antes de saltarmos para qualquer conclusão final, seria prudente verificarmos se alguma coisa que não o “envelhecimento” está ligada à ligeira diminuição relativa do grupo social dos “sustentadores” nos últimos dez anos.

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Gráfico 5

 O mapa da evolução dos “sustentadores” (Gráfico 5) é bastante esclarecedor: depois de um claro aumento da população em idade activa ao longo de pouco mais de um quarto de século, chegámos por volta do ano 2000 a uma fase que parecia ser de estabilização, mas que afinal, a partir de 2008-2011, entra em queda. Há aqui uma coincidência com factores políticos e económicos nacionais e internacionais que merece a nossa atenção.

O que acontece, por exemplo, quando a emigração aumenta? Obviamente, há uma fatia do bolo populacional que vai desaparecer. Ora, de toda a população residente, quem é que sai para ir trabalhar no estrangeiro? Não são as crianças nem os reformados, claro está; são os adultos em idade de trabalhar. Podemos, ainda assim, argumentar que as sociedades contemporâneas evoluíram nesse aspecto, em particular na Europa, e, portanto, é bem possível que, ao contrário do que acontecia com o trabalhador luso dos anos 1960 ao dar o salto para França, alguns emigrantes carreguem hoje consigo, além da mala, os filhos – mas não os avós; estes ficam para trás, a pesar no topo da pirâmide etária do país de origem.

Em suma, temos uma situação em que aquela fatia do meio assinalada nos meus gráficos, a dos “sustentadores”, corre o risco de emagrecer por efeito da emigração (com correspondente aumento proporcional do topo da pirâmide). Isso não significa que os emigrantes não continuem a enviar remessas de poupanças para casa, para proverem ao sustento dos seus entes queridos.

Os mistérios do saldo demográfico

Para que os números da estrutura etária não se tornem abstracções sem sentido, é preciso compreender a evolução do saldo demográfico. Comecemos por analisar a complexa relação entre a população residente total, os movimentos migratórios, os nascimentos e os óbitos (Gráfico 6).

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Gráfico 6

O saldo natural representa o número de nascimentos, subtraídos do número de óbitos; um saldo positivo significa que os nascimentos excederam as mortes; um saldo negativo significa que não houve nascimentos suficientes para compensar as mortes. O saldo migratório, por sua vez, representa o número de migrantes entrados, menos o número de saídas; um saldo migratório negativo significa que saiu mais gente do que a que entrou. A conjugação dos dois factores é variada: ambos os saldos podem subir, descer ou evoluir em sentidos contrários.

A dificuldade de leitura deste gráfico advém do seguinte: os nascimentos e os óbitos são variáveis independentes com efeito directo e instantâneo no volume total da população residente. Mas o saldo migratório é uma variável composta e tem um efeito cumulativo que se manifesta ao longo dos anos: a entrada de migrantes (ou saída) vai somar-se às entradas dos anos anteriores. Daí que a curva da população total a dado momento “descole” da curva do saldo migratório e continue a crescer sem motivo aparente.

O Gráfico 7 é mais simples, porque apenas põe em jogo o saldo natural e o total da população residente.

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Gráfico 7

Por fim, o Gráfico 8 compara o saldo natural com a taxa de fecundidade geral (ou seja, a relação entre o número de nados-vivos e o número de mulheres em idade fértil):

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Gráfico 8

Olhando para o conjunto dos três últimos gráficos, podemos concluir: o que salvou o volume total da população de sofrer um pronunciado trambolhão por causa do número assustadoramente crescente de óbitos (iniciado em 2007-2008, muito antes da pandemia de covid-19) foi o influxo migratório a partir de 2017-2018 e um ligeiro aumento de natalidade a partir de 2014-2015.

Para se ter uma ideia do peso das crianças nascidas de mãe estrangeira em Portugal, no conjunto do saldo populacional do país: em 2010 preencheram 11 % dos nascimentos; em 2015, cerca de 8 %.

Uma coisa está ausente dos gráficos, mas resulta evidente da sua leitura conjunta: quando se diminui ao longo de vários anos a capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde e se encerram maternidades, é natural que o saldo da população caia a pique, ou seja, que a esperança de vida diminua e o trânsito nos cemitérios entre em hora de ponta. É também evidente a importância do influxo migratório que trouxe a Portugal milhares de trabalhadores imigrantes que se dedicam a distribuir comida ao domicílio por salários miseráveis, caindo muitas vezes em esquemas de exploração laboral.

O papel da desregulamentação do trabalho na evolução demográfica

Vários mistérios e mistificações já foram esclarecidos, mas ainda faltam algumas perguntas. O que sucede quando as condições de trabalho se deterioram para além de certo limite? E quando os trabalhadores são empurrados para a reforma antecipada, a fim de darem lugar a outros mais jovens, mais mal pagos e menos reivindicativos?

Os problemas que nos afectam não são demográficos, mas sim políticos e laborais.

Primeiro, uma grande parte da força de trabalho é empurrada para a emigração, podendo dar origem a um aumento relativo dos grupos sociais dependentes. Segundo, os trabalhadores que entraram na reforma antecipada (menores de 65 anos) continuam estatisticamente a fazer parte do nosso indicador (geral e abstracto) da população em idade activa, mas de facto deixaram de trabalhar e passaram a pesar na segurança social e na caixa de pensões, em vez de contribuírem para elas.

É uma ironia que as correntes neoliberais, responsáveis por uma vaga de emigração, pela degradação dos serviços sociais, dos fundos de pensões e do mercado de trabalho, venham agora queixar-se dos resultados das suas próprias propostas e dos seus efeitos nefastos na demografia do país!

É preciso deixar isto muito claro:

  1. O grupo social que sustenta os membros da sociedade dependentes não diminuiu; antes pelo contrário, aumentou! E não há qualquer sinal convincente de que possa vir a desaparecer da face da Terra.
  2. Nestas condições, se tudo corresse pelo melhor, não se poria qualquer problema de sustentabilidade; antes pelo contrário, estaria a ser gerado um excedente nas fontes de financiamento dos cofres do Estado, dos serviços sociais e dos fundos de pensões.
  3. No entanto, se houver desemprego, os efeitos benéficos da engorda da cintura da pirâmide etária serão anulados, embora isso não se reflicta nos gráficos demográficos.
  4. Se, mesmo não havendo uma taxa de desemprego anómala, a remuneração do trabalho cair a pique, nada disso se reflecte directamente nas estatísticas demográficas. Mas é de facto a sentença de morte por asfixia financeira dos serviços sociais, da saúde pública, da educação pública, dos fundos de pensão, etc., visto que a uma massa salarial menor correspondem menos impostos e contribuições sociais. Não percamos de vista que, num sistema providencial por repartição, o dinheiro para pagar agora a pensão dos nossos avós e dos nossos filhos depende inteiramente do salário que recebemos agora.

Em suma: do ponto de vista demográfico, nunca estivemos tão bem como estamos hoje. Contudo, as carpideiras neomalthusianas e neoliberais viram esta verdade do avesso, criaram um autêntico mito à volta do envelhecimento da população e desviaram a atenção dos verdadeiros problemas que nos afectam, os quais não são demográficos, mas sim políticos e laborais.

O falso problema dos limites

Finalmente, quero deixar uma nota abreviada sobre a questão dos limites, que há 200 anos constitui o vício central das teses malthusianas e continua presente, sob novas formas, nos debates actuais. Por exemplo, as teses malthusianas inspiraram o ecofascismo e a teoria de ser necessário eliminar-se uma parte da população humana (a racializada) para se salvar o planeta.

O economista Michel Husson dedicou um livro inteiro ao assunto, pondo a claro um princípio muito simples: o ser humano define-se por ser o único animal cuja relação com o meio ambiente e com o seu próprio meio social não tem uma relação rígida com a questão dos limites, pois ele próprio está constantemente a mudá-los. Falar em limites de recursos, no caso da humanidade, é um pouco como tentar caminhar sobre areias movediças.

É relativamente fácil deitar contas aos limites do crescimento demográfico dos lobos, porque eles ocupam um território mais ou menos bem delimitado e precisam de estar em equilíbrio demográfico (ecológico) com a massa demográfica das suas presas e dos seus predadores – e nem uns nem outros têm a capacidade de mudar os limites do seu meio ambiente.

Isto não funciona assim com os seres humanos. Os limites da humanidade estão constantemente a mudar, são uma variável móvel. Foram os seres humanos que extinguiram o mamute, o auroque, o urso ibérico e dezenas de outras espécies. E também criaram muitas outras (ou vocês pensam que existem laranjas doces na natureza “natural”?). E de cada vez que provocaram uma catástrofe (para os outros, não para eles próprios), sempre que romperam um limite (dos outros) ou o alteraram, adaptaram-se e passaram à frente, como se nada fosse. Ainda que seja deplorável a extinção de tantas e tão belas espécies, temos de reconhecer que a humanidade sobreviveu sem mamutes.

Se, para os outros animais, os limites produtivos da terra são imutáveis, no caso da humanidade é ela mesma que decide a cada momento quais são os limites da produtividade agrícola, seja num sentido, seja no seu inverso. Tem o engenho de aumentar a capacidade produtiva da terra além de qualquer limite imaginável pelas gerações anteriores; da mesma forma que tem a capacidade destrutiva de esgotar em poucos anos, à custa de monoculturas intensivas, adubos químicos, etc., uma terra cultivável que alimentou milhões de pessoas ao longo de milhares de gerações sem problema algum. Os limites a que estamos sujeitos não são exclusivamente resultantes da nossa relação com a natureza, mas também das nossas opções de organização social, política e económica.

Os limites dos recursos colectivos pouco ou nada têm que ver com a natureza e o envelhecimento demográfico. São limites impostos por quem detém a sua posse e o poder de os gerir.

Assim, quando os alarmistas da “peste grisalha” gritam “olha o lobo!” (sendo o lobo, por exemplo, o esgotamento dos recursos financeiros da segurança social ou dos fundos de pensões), é preciso ter claro que estão a levantar um problema que não existe e que por isso nunca poderá ser resolvido. “Se não tem solução, então não tem problema”, como se diz em Cabo Verde. Por outras palavras, é um falso problema.

Os catastrofistas ameaçam com a fome devido ao esgotamento dos recursos alimentares e afinal chega-se à conclusão de que sobra alimento, como se pode ver nas tabelas de produção mundial da FAO – por exemplo, a colheita de cereais de 2021 bateu todos os recordes históricos. O problema é que a comida nunca chegou onde reina a fome.

A produtividade aparente do trabalho em Portugal, segundo a Pordata, duplicou no espaço de 25 anos (1995-2019). Isto significa que no espaço de uma geração passámos a produzir o dobro do valor. Ou seja, mesmo que os “sustentadores” tivessem sido reduzidos a metade, poderíamos continuar a produzir a mesma quantidade de valor de há 25 anos. Ora, a produtividade duplicou (+100 %) e a massa de “sustentadores” caiu ligeiramente (-1,31 %). Então o que aconteceu a esse duplo valor criado e aos recursos acumulados? Foi parar ao sítio errado, como é evidente, senão ninguém estaria hoje a discutir limites demográficos e limites de recursos financeiros.

Os limites dos recursos colectivos pouco ou nada têm a ver com a natureza e o envelhecimento demográfico. São, muito simplesmente, limites impostos por quem detém a sua posse e o poder de os gerir. São um problema político e económico, nada mais do que isso.

Rui Viana Pereira escreve segundo o antigo acordo ortográfico.