Gestora do projeto "Faz Delete", implementado pela Rede de Jovens para a Igualdade. Tem publicado sobre violência sexual, género e sexualidade. 

“Não envies nudes”: A culpabilização das vítimas 2.0

Em todos os contextos mulheres são atacadas e agredidas, não só por estranhos, mas sobretudo por maridos, namorados, parceiros ou ex-parceiros. A violência sexual com base na captação e partilha de imagens íntimas acrescenta-se a essa equação. E a culpa ainda é colocada sobre a vítima.

Ensaio
26 Novembro 2021

“Não te vistas assim”. “Não fales com estranhos”. “Tem cuidado à noite”. “Não vás por aí sozinha”. Agora, acrescentamos, “não envies nudes”. A socialização feminina implica um manual de autocensura, uma disciplina sobre os nossos corpos e comportamentos. Aprendemos a policiar-nos desde cedo, como se fosse tarefa e responsabilidade nossas garantir que estamos seguras – agora também online.

Mas falhamos sempre – falharíamos sempre – em garantir que não somos alvo de violência masculina. Sabemos que todos os esforços de autoproteção são falíveis, porque as mulheres são atacadas e agredidas em todas as idades, em todos os contextos: na rua, no trabalho, e naquele que seria o último reduto de segurança, em casa. Sabemos que as mulheres são violentadas (também) pelos maridos, pelos namorados, pelos parceiros (ou ex-parceiros) íntimos. Por aqueles em quem confiamos – que são, tantas vezes, os mesmos que agora divulgam imagens íntimas, enviadas em contextos de intimidade.

A violência sexual com base em imagens (VSBI) acrescenta-se a esta equação. Na definição de VSBI (image-based sexual abuse, no original) adotada por N. Henry, C. McGlynn, A. Flynn, K. Johnson, A. Powell e A. Scott no recente livro Image-based Sexual Abuse: A Study on the Causes and Consequences of Non-consensual Nude or Sexual Imagery (2020), incluem-se três comportamentos principais: a captação não consentida, a partilha não consentida e a ameaça de partilha (mesmo que não efetivada) de imagens ou vídeos de nudez e/ou índole sexual. O questionário divulgado no livro, a que responderam 6109 pessoas entre os 16 e os 64 anos em diversos países (Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido), revelou que um/a em três participantes tinha tido pelo menos uma experiência de VSBI.

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A captação não consentida de imagens ou vídeos íntimos abrange situações em que as imagens são obtidas com recurso a câmaras ocultas, ou em contextos mundanos onde as pessoas (sobretudo mulheres) são fotografadas, muitas vezes por parceiros íntimos, sem que o saibam e tenham consentido: por exemplo, a dormir ou a sair do banho. Na captação não consentida de imagens ou vídeos íntimos inclui-se também a manipulação de imagens.

Por exemplo, fazem-no com recurso a software de edição de imagens como Adobe Photoshop, ou mesmo produzindo deep fakes – vídeos criados a partir de inteligência artificial, muitas vezes com conteúdos pornográficos, que reproduzem a imagem de alguém de forma hiper-realista. A partilha não consentida de conteúdos íntimos (mostrar as imagens a terceiros, distribuí-las online ou enviá-las para sites pornográficos) é ilegítima, mesmo que esses conteúdos tenham sido enviados de forma voluntária e consentida num primeiro momento.

Deste leque de comportamentos abusivos, tendemos a falar mais sobre a captação e a partilha não consentida de imagens ou vídeos íntimos, vulgarmente (e de forma pouco rigorosa) conhecida como “pornografia de vingança” [revenge porn], que surge muitas vezes no término de uma relação de intimidade e confiança. Porém, é importante reconhecer que a ameaça de divulgação, mesmo quando não concretizada, pode ser profundamente disruptiva e impactante (constituindo a própria ameaça crime, podendo ser apresentada queixa-crime junto das autoridades competentes). 

Como noutras dimensões da violência sexual, o julgamento social sobre VSBI recai com frequência sobre as próprias vítimas-sobreviventes. Exemplos desta abordagem culpabilizante perpassam narrativas mediáticas, depoimentos de polícias e de figuras de relevo na política internacional. Por exemplo, lia-se num artigo no tabloide Daily Mail: “Queres parar a pornografia de vingança? Não tires a roupa!” [“Want to stop revenge porn? Just keep your clothes on!”]. 

A culpabilização das vítimas pela sua própria vitimização não é uma realidade recente nem exclusiva da violência sexual. A teorização da culpabilização das vítimas remonta a 1971, quando William Ryan problematizou a culpabilização das comunidades marginalizadas no contexto do racismo e da pobreza de que são vítimas. Contudo, a violência sexual é, porventura, a dimensão onde a cultura de culpabilização das vítimas é mais flagrante.

Há vários fatores apontados para que a culpabilização das vítimas seja tão presente e persistente, sobretudo no que concerne à violência sexual. Primeiramente, a crença difusa num “mundo justo”, vertida em ideias de justiça divina, Karma, ou agência moral e consequência: “quem anda à chuva molha-se”; “quem semeia ventos, colhe tempestades”. What goes around comes around. Agarramo-nos a uma ideia de mundo justo, porque queremos acreditar num sentido moral do mundo – talvez porque as ideias de arbitrariedade, caos, injustiça e impunidade sejam esmagadoras. Precisamos de uma ordem moral, de um sentido de consequência e de controle. Queremos, profundamente, acreditar que não estamos absolutamente à mercê de outros e que o mundo é “lógico e organizado”, como explica a socióloga Isabel Ventura.

Em paralelo – talvez na raiz de tudo – o sexismo, e a persistência de um duplo padrão sexual, que pune as mulheres pelo mesmo tipo de comportamento que admite (e até celebra) nos homens. Aprendemos que o corpo feminino é tentador e a masculinidade, por natureza, predatória. Crescemos a ouvir os homens retratados como animais sexualmente famintos, criaturas de pulsões e apetites, incapazes de controlo perante um decote, uma saia mais curta ou um vislumbre de nudez. Perante este retrato da (pretensa) irracionalidade masculina, aprendemos que todas as prudências são necessárias e que qualquer deslize nos compromete: “Ela pôs-se a jeito”, “ela estava a pedi-las”.

O foco em torno dos “riscos” no envio de imagens íntimas põe o ónus da prevenção na vítima, qualificando ou presumindo os seus comportamentos como transgressores, perigosos ou irresponsáveis, julgando-os moralmente. O papel de quem comete o acto ilícito – a partilha – é secundarizado.

Em Portugal, a investigação de Patrícia Mendonça Ribeiro oferece dados sobre a VSBI e a culpabilização das vítimas-sobreviventes. No questionário lançado a estudantes do ensino superior, a que responderam 525 estudantes de ambos os sexos/géneros, 5% da amostra já tinha sido vítima de uma partilha não consentida e 9% já tinha sido ameaçada com a divulgação de imagens íntimas. No questionário, a investigadora estabeleceu um cenário hipotético com personagens não nomeadas: A e B, sendo A a pessoa que partilhou a imagem com B no contexto de uma relação, e B aquele que a divulgou sem consentimento, após o término da relação. Perguntava-se então quem seria responsável pela situação. 

Nas respostas, ainda que a maioria (93,49%) responsabilizasse B, uma percentagem minoritária (6,51%) da amostra respondeu A. Acrescentava-se uma pequena parcela (1,64%) da amostra que atribuía a responsabilidade como partilhada: A porque partilhou inicialmente a imagem e B porque a divulgou a terceiros. Analisando as respostas, a autora concluiu que diversas/os participantes consideravam a conduta de A como de alguma forma responsável. 

Por exemplo, uma participante apontou para uma alegada falta de cautela por parte de quem tinha enviado a mensagem no contexto de uma relação: “A pessoa A deveria ter sido mais cautelosa e pensado no perigo ao enviar a foto”. Outra participante respondeu “Nós somos os primeiros responsáveis pela nossa dignidade, e não o nosso companheiro”, remetendo assim a partilha de conteúdos íntimos para uma questão de “dignidade” (ou para a sua ausência).

“Valoriza a tua intimidade”

Por cá, o projeto Internet Segura – um importante serviço público gratuito, da responsabilidade de um consórcio coordenado pelo Centro Nacional de Cibersegurança – escrevia numa publicação no Facebook que “enviar uma fotografia íntima a alguém em quem não confies pode-se tornar num erro irreversível. Uma das consequências mais comuns do envio de nudes é o Revenge Porn / Chantagens”.

Na mesma publicação, acrescenta ainda que “a expressão ‘pensar antes de partilhar’ é o melhor conselho que podemos dar a quem gosta de enviar e receber nudes – imagens de uma pessoa sem roupa (a exposição da nudez pode ser total ou parcial). Se realmente pretendes partilhar nudes, listamos aqui algumas dicas para teres em consideração”. Encontra-se nessa lista o apelo “Valoriza a tua intimidade”.

Compreendo que, face ao problema da partilha não consentida de imagens íntimas, haja a necessidade de informar e promover a segurança online, sobretudo tendo em conta um público jovem. Não questiono as boas intenções que subjazem a este tipo de comunicação. Contudo, é necessário problematizar o enquadramento do envio de imagens como “risco inerente” e a abordagem da “revenge porn” como consequência do envio de nudes. Nesta formulação subentende-se um certo sentido de inevitabilidade, como se imagens íntimas enviadas num contexto de confiança fossem (quase fatalmente) posteriormente divulgadas, e coubesse às potenciais vítimas evitar o risco da exposição. 

É preciso invertar o foco: o caminho para o combate à violência sexual baseada em imagens faz-se pela responsabilização de quem obtém ou partilha conteúdos íntimos e das plataformas digitais, como motores de busca, aplicativos de mensagens instantâneas e sites de pornografia, que alojam esses conteúdos.

O foco em torno dos “riscos” no envio de imagens íntimas – e não na sua partilha não consentida – põe o ónus da prevenção na vítima, qualificando ou presumindo os seus comportamentos como transgressores, perigosos ou irresponsáveis. Simultaneamente, esta abordagem invisibiliza (potenciais) agressores e infratores: o comportamento de quem efetivamente comete um acto ilícito – de quem partilha conteúdos íntimos sem consentimento – é secundarizado. Ao mesmo tempo, mensagens como “valoriza a tua intimidade” remetem para uma ideia de julgamento moral: como se o envio de imagens íntimas, ou a sua frequência, fossem expressão de (falta de) autorrespeito e valorização da própria intimidade.

Tudo isto é problemático – e, no limite, infrutífero. Além de manter o status quo sexista, os mecanismos de prevenção focados nas vítimas são ineficazes face às múltiplas formas de violência sexual com base em imagens. Não alcançam situações em que as imagens são obtidas em contextos coercivos, obtidas sem o consentimento da pessoa fotografada ou filmada (como no caso das imagens captadas por baixo da roupa, sem o conhecimento das mulheres, designado como upskirting) ou manipuladas com recurso a Photoshop.

Por isto mesmo urge uma inversão do foco nos dicursos de prevenção, e o reconhecimento cabal de que a responsabilidade da violência sexual é sempre, exclusivamente, de quem a exerce. Como escreveu a jornalista australiana Gabrielle Jackson: o furto de bicicletas é um crime comum, mas nunca ouvimos a polícia dizer, “se não queres que roubem a tua bicicleta, não andes de bicicleta” [“Bicycle theft is a common and intractable crime and yet I’ve never heard a police officer come out and say: ‘If you don’t want to have your bike stolen don’t ride a bike’”]. Por isso, é crucial amplificar a mensagem de Inês Marinho, fundadora da pioneira Não Partilhes, a primeira Associação a atuar especificamente no âmbito da VSBI: “A pessoa que divulga é que tem de se envergonhar”

A violência sexual baseada em imagens vive da (percepção de) impunidade dos perpetradores. O caminho para o combate à VSBI faz-se pela responsabilização de quem obtém, partilha (ou ameaça partilhar) conteúdos íntimos sem consentimento, também por via legal. Faz-se, também, por uma efetiva responsabilização das próprias plataformas digitais - como redes sociais, motores de busca/pesquisa e sites de pornografia - que alojam conteúdos íntimos obtidos e/ou partilhados de forma não consentida. Ainda que a maioria destas plataformas tenha regras e mecanismos de remoção de conteúdos íntimos não consentidos, estes processos são muitas vezes lentos, complicados e ineficazes. 

Há uma única (e infalível) receita para acabar com a violência sexual: que os (potenciais) perpetradores não a pratiquem. Que quem tem o poder de exercer violência, não o faça. Cabe-nos também a todas/os criar uma cultura onde a violência sexual, nas suas diversas expressões, não seja tolerada e promovida. Na violência masculina contra as mulheres, a raiz da intervenção e prevenção é a própria socialização masculina, assim como a cumplicidade daqueles/as que observam e não intervêm. Todas as outras formas de prevenção focada nas vítimas serão incompletas, quando não estrondosamente inúteis e contraproducentes. Combater a violência sexual é responsabilidade de todas/os: não sejamos cúmplices.

A Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV presta apoio a nível nacional e internacional em caso de VSBI ou outra forma de violência sexual contra mulheres.

A Associação Quebra o Silêncio presta apoio especializado a homens e rapazes vítimas de violência sexual.

O projeto “Faz Delete - diagnosticar, sensibilizar e prevenir a violência sexual com base em imagens contra jovens mulheres” visa mapear os contornos, contextos e impactos da VSBI entre jovens mulheres, e contribuir para o reconhecimento social e político deste tipo de violência. É implementado pela Rede de Jovens para a Igualdade (REDE) e financiado pelo Programa Cidadãos Ativ@s

Linha Internet Segura: um serviço do Centro Internet Segura, coordenado pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Presta esclarecimento e apoio sobre o uso da Internet e tem serviço de denúncia de conteúdos ilegais online. Contacto telefónico gratuito: 800 21 90 90); correio electrónico linhainternetsegura@apav.pt

Associação Não Partilhes: Facebook e Instagram.