Doutoranda em Filosofia na FCSH-Universidade Nova de Lisboa, onde desenvolve um projeto doutoral sobre epistemologia feminista do trabalho. As suas áreas de interesse são: epistemologia social, teoria feminista, filosofia da linguagem e filosofia wittgensteiniana.

Mulheres comuns e mulheres extraordinárias na série "A Criada"

Um dos grandes feitos da série é revelar as consequências da aliança entre as estruturas patriarcais, o capitalismo e a ordem social racista para manter as mulheres como as primeiras responsáveis pela esfera doméstica, contribuindo para a sua dependência financeira e, em última instância, subalternização.

Ensaio
4 Fevereiro 2022

Empregada doméstica ou criada (housekeeper ou maid). São estes os termos com que a protagonista de A Criada, uma série da Netflix, se debate ao descrever a sua profissão. Que importa o decoro da designação quando o conceito que lhe subjaz é o mesmo? O mais vital dos trabalhos, despromovido ao mais vulgar. Um não-trabalho que se arrasta do exterior para o interior, que não distingue entre casa alheia e o próprio lar, invisível na sua elementaridade. Quem o desempenha?

Nesta história, a criada é Alex, uma jovem de 25 anos, mãe de uma menina de três, que foge de um relacionamento abusivo com Sean, pai da sua filha, e é forçada a enfrentar traumas do passado. Tudo isto enquanto procura cuidar de uma mãe com um transtorno bipolar não-diagnosticado. 

O contexto é ideal à sucessão de adversidades que se segue: a burocracia monstruosa de um sistema de apoio social (no caso, o norte-americano), o desamparo financeiro, a maternidade em situação de pobreza, a falta de abrigo, de comida, de autonomia.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

A realidade de demasiadas mães solteiras, cuja desresponsabilização dos pais, primeiro, e do Estado, depois, deixa à sua sorte. A realidade de tantas mulheres que, capturadas num ciclo de abuso e de controlo, se descobrem isoladas e sem rede de apoio. Conseguindo manter-se no domínio da legalidade, restam-lhes as ocupações mais estigmatizadas, desvalorizadas e precárias nas sociedades ocidentais – muitas das quais se enquadram na esfera do trabalho de cuidados e doméstico.

Muito tem sido dito sobre o modo como A Criada retrata as estruturas patriarcais que perpetuam os ciclos de violência – física e emocional – em que mulheres de todas as idades, origens e classes sociais se veem aprisionadas. Um número desproporcional de mulheres. Pouco se falou, porém, sobre o facto de A Criada revelar o modo como essas mesmas estruturas interagem com a sociedade de classes na manutenção de uma divisão sexual do trabalho que determina que às mulheres das classes não dominantes estão destinadas às profissões mais desvalorizadas, contribuindo para a sua subjugação e dependência.

De acordo com dados do Departamento do Trabalho dos Estados Unidos da América, entre as 25 profissões menos bem pagas do país, 18 são predominantemente realizadas por mulheres. Em Portugal, onde 97,5% dos trabalhadores domésticos assalariados são mulheres, a contratualização do trabalho doméstico goza de um estatuto especial que viabiliza uma série de "prerrogativas" laborais. Entre estas, conta-se a possibilidade de trabalhar 44 horas semanais, ao arrepio das 40 horas semanais estabelecidas para os restantes trabalhadores do setor privado e das 35 horas definidas para a função pública. 

Num estudo recente, a Organização Internacional do Trabalho conclui que esta e outras desigualdades vividas pelas empregadas domésticas face a outros setores contribui para que formem um dos grupos mais vulneráveis da economia portuguesa. Exemplo disso é o facto de mais de um terço destas trabalhadoras não receberem o salário mínimo.

Acresce a responsabilização das mulheres por outro tipo de trabalho, não-remunerado, que deve ser desempenhado 24 horas por dia, sete dias por semana: o da parentalidade. 

Em Portugal, estima-se que as mulheres desempenham mais do triplo do trabalho de cuidados e doméstico do que os homens, em casos em que mãe e pai têm trabalho remunerado. Num estudo de 2019, financiado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, conclui-se que o mesmo país que trata as trabalhadoras domésticas assalariadas como grupo profissional de segunda não viu qualquer evolução, relativamente à geração anterior, no que diz respeito à partilha dos cuidados parentais entre mulheres e homens. 

A tendência parece ser global. Quem não sentiu a angústia de Alex quando, desesperada, pedia ao seu ex-parceiro que cuidasse da filha doente – e, por isso, impedida de ir para a creche – para que não perdesse o emprego? Alex faltara ao trabalho por três dias consecutivos para cuidar da filha, mas quando procurou recorrer a Sean por estar prestes a ser despedida, este sentiu-se no direito de retorquir: “Well, so it’s ok for me to get fired? Nobody asked you to get a job” (Então é okay eu ser despedido? Ninguém te pediu que arranjasses um emprego). Eis o momento pelo qual a cultura pop ansiava, ou receava: a responsabilização das mulheres, dentro e fora de casa, pelo cuidado dos outros, a troco de muito pouco.

Ambas as versões – assalariada e não-assalariada – deste tipo de trabalho entram na esfera daquilo a que a teoria feminista, partindo das análises marxistas sobre trabalho, chamou “trabalho reprodutivo”. Entende-se por trabalho reprodutivo não apenas as funções estritamente associadas à maternidade (gravidez, parto e amamentação), como também todas as tarefas necessárias ao sustento e manutenção da vida: o cuidado do lar, das crianças, dos idosos, dos doentes, etc. 

Apesar de todos os obstáculos, de toda a distância, de todo o isolamento, do abuso e da pobreza, Alex não é deixada sozinha, mesmo quando assim o pretende. São mulheres quem a alicerça, quem lhe estende a mão sem pedir nada em troca.

A categoria serve análises sobre o modo como as estruturas patriarcais se aliam ao sistema capitalista – bem como a uma ordem social racista –, para manter as mulheres como as primeiras responsáveis pela esfera doméstica, contribuindo para a sua dependência financeira e, em última instância, para a sua subalternização.

Um dos grandes feitos de A Criada é revelar as consequências desta aliança e a curta distância que existe entre a desvalorização capitalista do trabalho assalariado de Alex e as imposições patriarcais às suas responsabilidades parentais. Há, porém, uma distância porventura menos curta entre a precariedade e a miséria, entre a injustiça que se reconhece porque é inaudita e aquela que nos está destinada em função do nosso poder social. 

Alex não estava destinada a uma vida de miséria e, por isso, pode rejeitá-la. Sabemos pouco da sua educação, das oportunidades que teve, das escolas que frequentou, mas sabemos que, por algum motivo – ainda que o motivo seja “puro talento” –, esta jovem mulher teve a possibilidade de cultivar as suas capacidades intelectuais e presença de espírito.

Por ter tido determinadas oportunidades ou por ser extraordinariamente talentosa – pouco importa –, Alex estava destinada a um futuro maior. E, assim, depois de muita resiliência, coragem e determinação, escapa ao círculo vicioso que ameaçava tornar-se a sua vida. O seu futuro ganha agora um novo brilho, mas diz-nos pouco sobre as perspetivas reais das mulheres reais que habitam um mundo alicerçado no seu trabalho sem que alguma vez sejam recompensadas por isso. Que saídas para estas mulheres que não tiveram as oportunidades ou o talento extraordinário – pouco importa – de Alex?

A protagonista de A Criada é inspirada em Stephanie Land, uma mulher de carne e osso que viveu esta realidade durante anos e escreveu o livro de memórias Maid: Hard Work, Low Pay, and a Mother's Will to Survive, lançado em 2019. Land, note-se, é ela própria uma mulher extraordinária, cuja determinação e conquistas impossíveis transformaram o seu livro num bestseller do New York Times. Mas a crítica é unânime relativamente àquilo que é mais brilhante neste trabalho: o retrato da classe trabalhadora norte-americana, a re-perspetivação do trabalho doméstico, o olhar de alguém que vê por dentro do sistema, que caminha invisível, que sustenta lares e sociedades.

É claro que nenhuma obra de ficção pode fazer tudo – nem se espera da Netflix que o faça –, mas as falhas de A Criada merecem ser assinaladas precisamente porque esta não é só mais uma história individual de persistência e recompensa, como nos habituámos a ver. Fiel às memórias de Land, a série não romantiza nem vilaniza, não oferece soluções fáceis e imediatas, e tampouco se perde em dramatizações rebuscadas. 

Simultaneamente crua e enternecedora, a história comove na sua dimensão coletiva, transpondo as experiências de Alex para um lugar que revela a nossa distância – ou proximidade – dessa realidade. É por isso lamentável que essa dimensão não acompanhe o telespectador até ao final, mesmo que a narrativa deva conduzir ao momento de emancipação da protagonista.

Evidentemente, torcemos por Alex e rejubilamos quando finalmente parte para a faculdade, mas o que nos tocou, entretanto, foram os momentos em que encontramos na sua história a própria condição da mulher sob o signo do patriarcado e do neoliberalismo. É essa história coletiva que se perde no percurso extraordinário, e individual, de Alex. 

Reproduzindo as palavras da poetisa e ensaísta norte-americana Adrienne Rich, “para nós, ser ‘extraordinária’ ou ‘incomum’ é falhar. A História tem sido embelezada com mulheres ‘extraordinárias’, ‘exemplares’ e, claro, ‘simbólicas’ cujas vidas não tiveram qualquer efeito nas demais. A ‘mulher comum’ é na verdade a incorporação da extraordinária força de vontade em milhões de mulheres anónimas”. “As nossas lutas só podem ter significado e os nossos privilégios, por mais precários que sejam sob o patriarcado, só podem ser justificados”, continua a poetisa, “se ajudarem a mudar as vidas de mulheres cujos talentos e cujo próprio ser continuam a ser desprezados e silenciados”. 

A série perde, pois, uma oportunidade de revelar a pura impossibilidade de superação individual num sistema construído para renegar as mães solteiras em situação de pobreza – condição frequentemente agravada por outros eixos de opressão indexados à origem étnico-racial, à nacionalidade, etc. 

 

“As nossas lutas só podem ter significado e os nossos privilégios, por mais precários que sejam sob o patriarcado, só podem ser justificados se ajudarem a mudar as vidas de mulheres cujos talentos e cujo próprio ser continuam a ser desprezados e silenciados”, escreveu Adrienne Rich. 

E, no entanto, a pista é deixada na figura de três mulheres: Paula, Denise e Danielle representam essa mulher comum que incorpora tudo o que de mais extraordinário há no espírito que resiste. Essa extraordinária força de vontade de quem não logra romper o ciclo. E aqui se encontra o verdadeiro clímax da série. É que, porventura em contradição com os ditames do célebre “sonho americano”, a história de superação de Alex só é possível por causa da rede de apoio que encontra junto destas mulheres.

Apesar de todos os obstáculos, de toda a distância, de todo o isolamento, do abuso e da pobreza, Alex não é deixada sozinha, mesmo quando assim o pretende. E são mulheres quem a alicerça. São mulheres quem lhe estende a mão sem pedir nada em troca. São mulheres comuns, não-extraordinárias, que falham como mães, amigas ou profissionais, mulheres que regressam sete vezes a casa do agressor antes de escapar de situações de abuso. 

A série merece ser vista, não tanto pela história de superação individual que (também) apresenta, senão pela sua dimensão coletiva. Perante um mundo que exige individualismo, competitividade e rivalidade entre mulheres, A Criada devolve-nos um sentido de comunidade, de cooperação e de sororidade.