Investigador integrado do Instituto de História Contemporânea (FCSH-UNL).
Ex-Diretor do Museu do Aljube Resistência e Liberdade

Lutas de estudantes de um tempo novo: a crise académica de 1962

Há 60 anos viveu-se nas universidades portuguesas a crise académica de 1962. Os estudantes enfrentaram por três meses o regime do Estado Novo e as suas forças repressivas. Foi um grande momento de unidade universitária para se exigir liberdade de expressão e de associação e autonomia universitária. As suas ondas de choque fizeram-se sentir até ao 25 de Abril de 1974. 

Ensaio
31 Março 2022

Maio de 1972, 1º de Maio, dia do trabalhador. Desde a véspera que se perguntava pelos corredores das faculdades de Letras e de Direito quem ia descer ao Rossio, em Lisboa, para as comemorações do 1º de Maio. Todos (e todas), pela disposição que se percebia nos rostos. Contavam-se histórias de correrias e de atropelos, de gente presa, dez anos antes. Desceriam nas diferentes estações de metro (Avenida, Restauradores, Rossio) para dispersar os esforços da Polícia de Choque. Quem comandava? 

Aparentemente, só mesmo a palavra que passava de boca em boca, porque as vozes de comando eram muitas e diversas. Na verdade, desde março que os átrios das duas faculdades tinham abarrotado, dias seguidos, com meetings explosivas. Quase sempre dispersadas pelas tropas de choque e os cães do capitão Maltez que, chamados pela Direção da Faculdade, subiam a Alameda e invadiam os corredores, empurrando os alunos de baldão para o bar, para a biblioteca, para uma qualquer porta de sala aberta.

A agitação prolongou-se pela primeira quinzena de maio nas três Faculdades (Letras, Direito e Medicina) e pela Cantina Velha. Alguns lembram a greve de fome, as prisões de estudantes e os plenários do Estádio Universitário de uma década atrás, coordenados pela Reunião Inter-Associações (RIA), com um secretariado liderado por Jorge Sampaio. 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Essa coordenação de associações ainda existe em 1972, ou melhor, procura existir e atuar, mas com novas dificuldades. Em 1972, o balcão existente na sobreloja por cima da sala de refeições da Cantina Velha era disputado ao metro por duas, três, quatro, cinco vozes diferentes e antagónicas. Cada uma tentando abafar o som (e a razão) da outra, gritando mais alto ou inundando as mesas do refeitório com comunicados de diferentes tons, todos vermelhos. Não raro, o ambiente exaltava-se, com confrontos ideológicos (e acusações). Motivo (falso, evidentemente) para a Polícia de Choque cercar a Cantina Velha e atingir o interior com balas (nem sempre de borracha), como demonstrava Saldanha Sanches, apontando pontos de impacto profundo nas paredes. 

A dois anos do 25 de abril de 1974, a academia está largamente sindicalizada e a sua politização menospreza, como patamar inferior de luta, o corporativismo académico, que apoda de colaboracionista. Reivindica uma autonomia universitária extensa e liberdade de atuação para as Associações Académicas, tanto mais que as listas concorrentes tendem agora a ter coloração partidária, por natureza combativa e exclusivista. 

Embora em escala menor, a agudização das contradições do regime, plasmadas no sistema educativo universitário, manifesta-se pela primeira vez através de lutas de fação, não raro  lutas de classes. O sistema mantivera-se elitista até aos anos 1950, mas crescera de 76% na década de 1960 e mais que duplicara na década seguinte. O rácio dos alunos em cursos superiores continuava a ser baixo, em comparação com outros países da Europa, mas o crescimento exponencial apontado permitiu o acesso ao Ensino Superior de um contingente significativo de alunos oriundos das classes médias baixas.

O ano de 1972 constitui, pois, o barómetro de um processo histórico das lutas académicas durante a ditadura salazarista, por ser o seu quase terminus. Manifestaram-se sempre em ciclos anuais, iniciados normalmente em março e concluídos no final do ano letivo (até setembro-outubro), com a ida da maioria dos alunos a exame. Era uma situação que os mais intransigentes (e também o regime) associam, normalmente, a uma derrota. 

No entanto, esta continuidade não pode, de algummodo, iludir o processo histórico destas lutas académicas, logo desde os anos 1930, em torno de três objetivos fundamentais: 1) alargamento da autonomia universitária, com participação dos alunos nos órgãos académicos e nas decisões pedagógicas e científicas, designadamente em matérias relacionadas com currículos, cursos e qualidade do ensino ministrado; 2) liberdade de associação e organização da atividade associativa académica, através de eleições livres e recusa de nomeação governamental de comissões administrativas, bem como de interferência política nas suas seções culturais e desportivas; 3) recusa da tutela política de órgãos académicos e de associações académicas. 

A reivindicação desta autonomia e liberdade foi sempre acompanhada, nos regulamentos e nas intenções expressas dos intervenientes (estudantes e governo), do compromisso de apoliticismo e arreligiosidade. No entanto, o equilíbrio exigido por estes desígnios foi sempre ténue e constantemente violado, em particular pela parte do Governo autoritário que temia perder a universidade como “casa-mãe das elites nacionais”. 

A sindicalização das lutas académicas tinha sido fortíssima durante a Ditadura Militar. Os estudantes das três academias (Coimbra, Porto e Lisboa) enfrentaram a ofensiva dos ditadores militares, nalguns casos de armas na mão, ao lado dos resistentes republicanos. Foram vencidos em 1931/32, altura em que confrontos com a polícia resultaram na morte do estudante João Martins Branco, a 28 de abril de 1931, no Porto. Voltou a ganhar contornos políticos durante e no final da II Guerra Mundial, contra o aumento de propinas (1941-42) e com a realização das grandes manifestações que assinalaram a vitória dos Aliados em Lisboa (e noutros locais do país).

O ano de 1972 foi o barómetro de um processo histórico das lutas académicas durante a ditadura salazarista.

O crescimento do contingente universitário – particularmente a partir dos anos 1950 -, alargando o campo de mobilização e de manobra dos dirigentes associativos, aparece aos olhos do ditador como um perigoso campo de manobra das oposições ao regime. Por essa razão, em 1956, o Governo de Salazar procura manietar o movimento académico através do Decreto-Leiº 40 900, impedindo a livre expressão cultural dos estudantes e o seu associativismo livre. 

A reação estudantil foi forte nas três academias e, em resultado disso, 17 deputados da Assembleia Nacional (entre eles o deputado e ex-ministro Daniel Barbosa), requerem, numa atitude inédita, a sua apreciação na Assembleia, coisa que veio a acontecer a 16 de janeiro de 1957, com as galerias cheias de estudantes. 

A Câmara Corporativa elaborou o Parecer nº 55/VI, de 23 de maio de 1957, mas a Proposta de Lei nº 48 nunca mais voltou à Assembleia, caindo no limbo do esquecimento. Porém, as interferências do poder político continuam. Em 1956 é interrompido o normal funcionamento da AEIST (Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico) por, entre outros motivos, insistir em filiar-se numa associação internacional de estudantes de engenharia, suspeita de “ter acordos com países com os quais não mantemos relações diplomáticas”.

Este seria o rastilho para o descontentamento que teve lugar cinco anos depois, em 1962, quando o Dia do Estudante foi proibido.

A miséria política e moral da situação ditatorial

Nos cinco anos que vão do sobressalto provocado pela contestação ao “40 900” à crise académica de 1962, larga e profunda, permanece um vazio legal. Ao mesmo tempo, as contrapropostas dos estudantes sobre a Proposta de Lei da Câmara Corporativa (março de 1957) não são aceites pelos responsáveis do regime. Mas da luta legal levada a cabo nesses anos vão sair reforçadas as associações: intensificam-se as relações interassociativas e promove-se o convívio dos estudantes (Comemorações do Dia do Estudante).

Assiste-se a uma maior politização dos dirigentes associativos, traduzida na disputa pela eleição de Associações Académicas democráticas, divergentes dos interesses do regime, quando não claramente hostis à Situação. São disso exemplo a conquista da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, por uma lista liderada por Jorge Sampaio, em 1960-61, o mesmo acontecendo em Coimbra com a lista liderada por Carlos Candal.

A proibição das comemorações do Dia do Estudante de 1962 e a longa e profunda crise académica dessa ano são a expressão mais evidente do isolamento crescente do regime em relação à juventude universitária. 

A par da ascensão desta corrente laica, muito influenciada pelo materialismo dialético e pelo marxismo, uma outra fonte de preocupações para o regime começava a surgir com a renovação ideológica dos organismos juvenis universitários da Ação Católica. A Juventude Universitária Católica (JUC) e estudantes como João Salgueiro ou Maria de Lourdes Pintasilgo imprimiam uma direção inovadora, centrada sobre a necessidade de uma nova “formação humana” – nisto coincidindo com as preocupações expressas pelas associações académicas eleitas no início da década de 1960. 

A campanha eleitoral de 1958 foi o abanão de que precisavam as consciências mais abertas à mudança para as injustiças e tensões sociais já dificilmente eram dissimuladas pelo corporativismo autoritário do regime - incluindo os meios católicos, com destaque para um Lino Neto ou para o Bispo do Porto.

Animados pelas mudanças do mundo deste início da década, poetas, jornalistas e escritores davam sinais de inconformismo perante a miséria moral e política do pântano de hipocrisia e totalitarismo por que enveredava o regime de Salazar, em Portugal e no Império. Um bom exemplo, no mundo académico, é a Carta a uma Jovem Portuguesa, de Marinha de Campos, publicada no Via Latina, jornal da Associação Académica de Coimbra, em março de 1961.

No domínio político, os apelos feitos à juventude académica são, por esta altura, muito fortes. Chegam-lhes dos ‘delgadistas’ que, para realizarem o “Assalto ao Quartel de Beja” no último dia de 1961, contavam com o ativismo da academia.C hegam-lhes dos seus colegas africanos da Casa dos Estudantes do Império, que se colocam ao lado dos movimentos de libertação das colónias onde, por essa altura, se vão iniciar as guerras de libertação em África. Chegam-lhes dos descontentes do regime, apostados em agitar as águas estagnadas – com o Assalto ao paquete Santa Maria ou com o desvio do avião da TAP da carreira Casablanca-Lisboa. 

Também Henrique Galvão, o organizador destas ações espetaculares, esperava da academia atitudes audazes, convidando-a à revolta contra o regime. Chegam-lhes também, naturalmente, de um Partido Comunista em renovação, mas em que os ecos da Frente Nacional Antifascista que deram oportunidade à candidatura única à Presidência de 1958 continuavam a ser fonte de inspiração unitária.

Perante a perda de Goa (no final de 1961), o início da guerra colonial em Angola e o isolamento induzido pela condenação na ONU da política integrista e assimilacionista de Salazar em África (resolução 1542 da Assembleia Geral da ONU, dezembro de 1960), o regime tremeu e passou a manifestar grandes sinais de insegurança.

A proibição (por duas vezes) das comemorações do Dia do Estudante de 1962 e a longa e profunda crise académica desse ano são a expressão mais evidente do isolamento crescente do regime em relação à juventude universitária. Como em 1958, também em 1962 o espiritualismo católico e o materialismo marxista – as duas correntes dominantes nos meios estudantis – puseram de lado os receios e contendas para se unirem numa grande frente estudantil, sem distinção de convicções políticas ou religiosas. 

Sob um manto negro de incomodidade e fraqueza

A proibição das comemorações do Dia do Estudante em 23 de março de 1962 (que se deviam prolongar por 24 e 25, em Lisboa e em Coimbra), foram uma violação clara da autonomia universitária e  o ponto de partida da reação estudantil das três academias do país, só apaziguada pelo levantamento da greve aos exames a 14 de junho. 

Trata-se de uma medida inédita – de algum modo contraproducente, tendo em conta a política de distensão promovida pelos governos da Ditadura com o Dia do Estudante –  que provocou não só uma reação forte dos estudantes, mas também enormes dúvidas e dissensões no seio do Governo e do Senado e Reitor da Universidade, cargo na altura desempenhado pelo futuro Chefe do Governo Marcello Caetano. 

O regime salazarista temia e opunha-se às grandes bandeiras do movimento associativo universitário de 1962: as liberdade de associação e de expressão e a autonomia universitária.

A polícia de choque invadiu as Faculdades de Direito, Medicina e Letras a 24 de março e, à tarde, carregou no Estádio Universitário, à saída do Festival Desportivo que costumava assinalar a efeméride. A situação foi tal que obrigou a uma intervenção pacificadora de Marcello Caetano. 

Os estudantes são convidados para um jantar-convívio no Restaurante Castanheira de Moura, no Lumiar, mas também aí foram agredidos e dispersados pela polícia de choque. Os incidentes vieram mostrar, à sociedade, as enormes disputas entre o ministro da Educação, Lopes de Almeida, e o ministro do Interior, Santos Júnior, sobre as decisões tomadas, obrigando Salazar a decidir-se por uma nota explicativa para a proibição do Dia do Estudante. “[...] Elementos de ação declaradamente subversiva tentaram desviar das atividades escolares alguns estudantes universitários, liceais e até das Escolas do Magistério Primário e colégios particulares, com o pretexto de reuniões, colóquios e convívios a efetuar em Lisboa nos dias 24, 25 e 26 […]”, lê-se na nota divulgado pelo Secretariado Nacional de Informação. 

O mote, tão antigo como a ditadura, estava dado. O governo temia e opunha-se às grandes bandeiras do movimento associativo de 1962 – as liberdades de associação e de expressão e a autonomia universitária. Os estudantes não desarmam e, a 26 de março, decretam o luto académico em Lisboa e Coimbra sob a nova consigna que servia de emblema ao portal da novel Faculdade de Letras: “Unidos Venceremos”. 

Na sociedade e na rua, a luta académica era vista como uma nova frente de combate para a Ditadura, assediada por várias frondas em Portugal e em África. A desorientação cresce no seio do Governo. 

Enquanto o ministro da Educação promete uma nova oportunidade para o Dia do Estudante a 7 e 8 de abril, o ministro do Interior solicita, em reunião de Governo, autorização para usar força indiscriminada na repressão aos plenários (quase diários) no Estádio Universitário e nas manifestações de rua. A 5 de abril, o MEN volta a proibir o Dia do Estudante por si acordado anteriormente, o que leva o Reitor a demitir-se, causando grande constrangimento para Oliveira Salazar.

Os estudantes mostraram-se organizados e, espantosamente, capazes de aplicar à sua ação critérios de uma enorme adaptabilidade no decurso dos acontecimentos. O luto académico é reposto a 6 de abril, e suspenso perante promessas feitas aos estudantes pelo ministro Correia de Oliveira em 10 de abril. Mas logo retomado a 12 por causa dos processos disciplinares promovidos pelo Senado da Universidade de Coimbra aos membros diretivos da AAC. 

Perante a força do movimento associativo, o Governo sobe  o nível de repressão: a 13 de abril suspende as direções das Associações de Estudantes legalmente constituídas e, a 7 de maio, promove legislação que suspende os corpos gerentes da AAC. Os estudantes respondem com a suspensão de todas as Seções Culturais, incluindo a Desportiva, ao mesmo tempo que a tradicional Assembleia dos Grelados suspende a Queima de Fitas. O conflito passava a interferir, muito diretamente, com atividades como o Campeonato Nacional de Futebol ou o normal comércio de Coimbra. 

A articulação das duas academias – Coimbra e Lisboa – é, no início de maio, total. A 9 de maio, um Plenário no Estádio Universitário decide o “luto total”, ou seja, a greve às aulas, às frequências e aos exames. Um grupo de dirigentes associativos anuncia que vai entrar em greve de fome, instalando-se na Cantina Velha da Cidade Universitária. O governo não recua e, a 11 de maio, pelas 3h30 da madrugada, expulsa os estudantes em greve de fome e procede à sua prisão em Caxias e noutras prisões (Parede e Governo Civil). 

Censurado por uma opinião pública interveniente (manifesto de escritores e homens de cultura, de  19 de maio) que não aceita o argumento do Governo de que são minorias ativas as responsáveis pelos acontecimentos, o mesmo Governo e forças policiais assaltam e destroem materiais da AAC (10 e 19 de maio) e iniciam a prisão dos líderes mais incómodos. Foi o caso de José Bernardino, secretário da RIA e elemento influente do PCP, e de Eurico de Figueiredo, Presidente da Pró-Associação de Medicina.

As grandes mudanças

A crise académica de 1962 trouxe elementos novos à luta estudantil. A defesa da autonomia universitária é uma velha bandeira da academia, e isso corresponde a uma linha de continuidade. Porém, o que é novo é a intransigência colocada pelos estudantes na defesa dessa autonomia, conduzindo a luta a patamares nunca experimentados anteriormente. Foi o que aconteceu com a convocatória de plenários quase permanentes, mesmo arrostando com a fúria da polícia de choque, ou decretando a greve de fome.Esta intransigência, no entanto, só é possível porque os métodos de combate são estruturalmente diferentes. 

Em primeiro lugar, uma prática constante de consultas democráticas aos estudantes, permitindo adaptações constantes na estratégia de luta e respostas eficazes no dia a dia. Depois uma articulação estreita de todas as universidades e escolas através da RIA, secretariada por Jorge Sampaio, o que faz com que os plenários e as manifestações tenham tido sempre um forte carácter representativo. Por fim, uma estreita ligação entre as três academias – Lisboa, Coimbra e Porto, muito particularmente entre as duas primeiras. Estas fortes ligações permitiram sempre às direções associativas e ao Secretariado do Movimento Associativo um programa de ação expedito e bem articulado entre o movimento de massas e a reivindicação institucional, sem risco de vazios ou deserções.

Nestas circunstâncias, a continuidade da reivindicação de autonomia universitária é aqui salientada  como nova fase de luta, aquela que permitiu que temas “surdos” fossem ouvidos. Permitiu que a Guerra Colonial, que esteve em pano de fundo na crise de 1962, fosse abertamente discutida a partir da crise académica de 1969, e daí em diante até ao 25 de Abril. Num balanço sobre a herança da crise académica de 1962, Jorge Sampaio, o seu líder indiscutível considerou, numa entrevista ao autor, que “a grande herança da crise de 1962 é a persistência ininterrompida na Universidade portuguesa até ao 25 de Abril, da luta generalizada por um regime democrático e respeitador dos direitos humanos” O ano de 1972 não é, por isso, um universo deslocado da crise académica de 1962.