Escritor e repórter freelance. Foi, durante 23 anos, jornalista do diário Público. Professor de Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social.

Jornalismo de causas ou a causa do jornalismo?

Entreolhámo-nos. A proposta era terrível. Talvez a mais difícil que cada um de nós ouvira. Se os jornalistas internacionais ficassem, talvez as forças do regime fossem mais comedidas no massacre. Mesmo que não fossem, talvez algum de nós sobrevivesse, para contar ao mundo.

Ensaio
4 Fevereiro 2022

Ras Lanuf era a linha da frente, a meio caminho entre Bengazi e Trípoli, naquela estrada cruzando a Líbia de Leste a Oeste e onde a guerra civil aconteceu — toda a guerra, de Fevereiro a Agosto de 2011, a ponto de ter deixado marcas, vestígios e provas na superfície do asfalto.

Sulcos de bombas, crateras de morteiros, restos de pneus queimados, carcaças de carros destruídos pelo fogo, manchas de óleo, de gasolina e de sangue contariam a história daquela guerra durante anos, se outras guerras não lhe tivessem sucedido, baralhando os indícios.

Percorrendo as duas estreitas faixas entre o deserto e o mar, como eu fazia diariamente naquele mês de Março, com um pequeno grupo de jornalistas e o motorista, Faisal, era possível parar num local e reconstituir a batalha travada horas antes, ou semanas. Fui aprendendo essa arte, que decerto requeria imaginação, mas também uma dose de coragem e outra de perversidade.

DEPENDEMOS DE QUEM NOS LÊ. CONTRIBUI AQUI.

Ao fim de algum tempo, sabia identificar a roupa rasgada de quem foi atingido por uma bala, o sapato abandonado de quem fugiu em pânico.

Uma vez, durante uma sessão de bombardeamentos aéreos, alguém surgiu a gritar que um Sukhoi fora abatido e que a cara do piloto fora encontrada entre os destroços.

Nesta altura, ainda não tinha começado a intervenção internacional, pelo que os aviões do regime bombardeavam livremente os grupos de rebeldes. Estes, que eram, com raras excepções, jovens civis, estavam armados com tudo o que haviam conseguido roubar nos quartéis, incluindo metralhadoras anti-aéreas. Mas não sabiam usá-las. Quando cruzava o céu um dos caças Sukhoi, de fabrico russo, largando as suas potentes cargas explosivas, eles apontavam para o ar e esvaziavam os carregadores das kalashnikov, espingardas automáticas ligeiras sem alcance para atingir um avião. Ou disparavam as anti-aéreas aleatoriamente, fazendo rodopiar a arma no seu suporte giratório, como um carrossel.

Pelos vistos tinham, naquela ocasião, e por acaso, acertado num caça.

Corremos para o local e lá estava, entre pedaços de ferro derretido, a “cara” do piloto.

"Seria preciso fugir a tempo. Todos o fariam, menos os feridos do hospital, e talvez os médicos, responsáveis por eles. Nós, os jornalistas, contávamos os minutos. Faríamos o nosso trabalho enquanto fosse possível, depois seria preciso alcançar rapidamente a estrada."

Nunca me tinha ocorrido que a “cara” fosse uma parte do corpo, tal como o é a cabeça, um braço ou uma perna. A “cara” é apenas a pele, e os traços, a expressão, a fisionomia. A “cara” não é um pedaço que se possa separar, ou retirar, como se fosse uma máscara. É apenas uma imagem, que se pode reconhecer, admirar, recordar. É humana, mas imaterial. A representação daquilo a que chamamos “alma”.

Talvez fosse isso que aqueles “shebab” queriam dizer. Que tinham derrubado a alma do piloto. E era isso, de facto, que ali jazia, entre os pedaços rebentados de uma asa. A alma, como um farrapo na areia ensanguentada.

Naquela altura, não tínhamos tradutor. Os meus companheiros eram fotógrafos e eu, que estava ali para escrever, também vivia das imagens.

Faisal, o motorista, quase não falava inglês, mas tentava. Repetia: “My baby. My baby”. Pouco mais sabia explicar sobre a guerra da Líbia. Apenas que o filho, de 18 anos, tinha saído de casa e há várias noites que não ia dormir. Até então, desde o início do conflito, tinha-se comportado como uma criança, e não como um “shebab”, a expressão que significa “jovem” e os rebeldes usavam para se referirem a si próprios. Agora, talvez o jovem se tivesse tornado um “shebab”, e integrasse os contingentes de defesa de Ras Lanuf.

Faisal trabalhava connosco para poder procurar o filho. Perguntava por ele a todos os “shebab”, em vão.

 A guerra da estrada evoluía aos solavancos. Os rebeldes conquistavam uma cidade, depois outra, as forças de Muhamar Kadafi reconquistavam a primeira cidade, depois a segunda. Os “shebab” tinham tomado Ras Lanuf, um importante centro da indústria do gás natural, mas estavam prestes a perdê-la.

Passei algum tempo na frente de batalha, onde isso era claro. Depois, com o grupo de jornalistas, vim para o hospital, acompanhar a situação. Tinha fechado, e depois reaberto, graças a um grupo de jovens médicos voluntários, para receber os feridos da linha da frente.

A todo o momento, chegavam carrinhas, camiões, ambulâncias, com guerrilheiros tombados em combate. A multidão à porta do hospital gritava Allah Uh-Akbar e disparava rajadas de Kalashnikov à chegada de cada veículo.

"Hesitámos por segundos. Mas não havia mais tempo a perder. A nossa função não era sermos escudos humanos, e a nossa alma não estava à venda, nem mesmo por aquele preço. Um de nós disse: 'Malta, está na hora'."

Um homem que acompanhava um ferido gritou para os jornalistas: “É meu irmão”. Tratava-se, disseram-me, de um comerciante de Benghazi. Alto e magro, escuro, desdentado e cheio de rugas, usando um lenço do deserto na cabeça e uma Kalashnikov ao ombro, levantou os braços, para mandar calar toda a gente, e gritou mais alto, cheio de raiva e orgulho: “Este homem é meu irmão”.

Não era a primeira vez que eu ouvia algo semelhante. As pessoas falavam sempre dos pais, dos filhos, dos irmãos, chegava a parecer que eram todos da mesma família. Até a Kadafi, que combatiam, se referiam muitas vezes como pai. “Como pode um pai maltratar assim os seus filhos?” perguntava um homem à porta do hospital. E eu pensava que os olhares de todos se assemelhavam aos de uma família cujo pai, numa loucura, tivesse desatado a matar os filhos. Todas as guerras se assemelham a uma pavorosa cena de violência doméstica.

As forças do regime aproximavam-se da cidade, e era sabido que, quando chegassem, lançariam bombas sobre os principais edifícios, e não poupariam ninguém.

“As forças de Kadafi estão a uma hora daqui”, disse alguém.

Seria preciso fugir a tempo. Todos o fariam, menos os feridos do hospital, e talvez os médicos, responsáveis por eles. Nós, os jornalistas, contávamos os minutos. Faríamos o nosso trabalho enquanto fosse possível, depois seria preciso alcançar rapidamente a estrada.

“As forças de Kadafi estão a meia-hora daqui”.

Os feridos continuavam a chegar, cada vez em pior estado. Os que podiam, erguiam os dedos fazendo o sinal de vitória. Outros vinham inertes, um com o crânio desfeito. Não tinham vencido.

“As forças de Kadafi estão a quinze minutos”, disseram.

Começámos a preparar-nos para escapar. Faisal estava a postos, o carro à entrada do cruzamento, já voltado para a estrada.

Quando um homem anunciou “as forças de Kadafi estão a dez minutos daqui”, um outro colocou-se à nossa frente e gritou: “Não partam já, os médicos querem falar convosco”.

Levou-nos para uma sala onde os cerca de dez médicos estavam reunidos em círculo. Um deles dirigiu-se, com a voz a tremer, ao pequeno grupo de jornalistas: “Temos um pedido a fazer-vos. Queremos que fiquem aqui connosco”.

Entreolhámo-nos. A proposta era terrível. Talvez a mais difícil que cada um de nós ouvira. Se os jornalistas internacionais ficassem, talvez as forças do regime fossem mais comedidas no massacre. Mesmo que não fossem, talvez algum de nós sobrevivesse, para contar ao mundo.

Hesitámos por segundos. Mas não havia mais tempo a perder. A nossa função não era sermos escudos humanos, e a nossa alma não estava à venda, nem mesmo por aquele preço. Um de nós disse: “Malta, está na hora”.

Minutos depois, na estrada, pressionando o chinelo velho e sujo contra o acelerador, Faisal chorava baixinho, “My baby. My baby”.

Este testemunho foi originalmente publicado no Manual de Reportagem REC, organizado por Pedro Coelho, Ana Isabel Reis e Luís Bonixe, e editado pelos Livros Labcom em 2021.