Jornalista desde 1998. Foi grande-repórter na Visão, no Público e no Diário de Notícias. Atualmente é presidente da cooperativa Investigate Europe, grupo permanente de jornalistas europeus criado em 2016. É autor de três livros de não-ficção sobre a oposição estudantil à ditadura, a crise bancária e a desinformação.

É a desinformação o buraco negro da censura?

A desinformação é uma estratégia de um setor da direita. A convicção de que esta identificação é uma discriminação política de jornalistas e académicos resultou numa acusação séria: ao discutirmos a desinformação, e as formas de a contrariar, estaremos a entrar no perigoso domínio da censura. Será?

Ensaio
27 Setembro 2021

Quando comecei a trabalhar no tema tinha muitas ideias vagas, e erradas. Uma delas, talvez a mais importante, levava-me a crer que a desinformação era, sobretudo, um problema de geopolítica. Isso levou-me, tantas vezes, a olhar para o que via com uma grelha “excel” em que tentava arrumar a complexidade das coisas num mecanismo simplista de manipulação em que, alguém, por uma razão lógica qualquer, pretendia arregimentar uma horda de seguidores usando sofisticadas técnicas de propaganda algorítmica.

Esse foi o meu primeiro erro. Demorei algum tempo até perceber que os “manipulados” são, as mais das vezes, manipuladores. Que o “movimento” que a extrema-direita ensaiava na Europa, tanto quanto a sua versão original norte-americana, se baseavam em vontades concretas (e tantas vezes antagónicas) muito mais do que em estratégias de persuasão arquitetadas no domínio da “inteligência artificial” (AI, sigla em inglês). Querem um exemplo? Os candidatos do Chega às autárquicas que pululam em vídeos sarcásticos nas redes sociais em Portugal. Para ser optimista direi, para já, que a AI é muito mais artificial do que inteligente, como tentarei demonstrar adiante.

Esse erro foi, como tento explicar fugindo ao novo senso-comum imediatista, um meio-erro. É demonstrável que tudo aquilo acontece, e continuará a acontecer no futuro: a extrema-direita tem uma estratégia “digital” para a sua propaganda; com isso chega hoje a muitos mais cidadãos; essa estratégia assenta em campanhas de desinformação e isso é um traço comum entre as campanhas de Donald Trump, Jair Bolsonaro e do Chega, para não irmos mais longe.

DEPENDEMOS DE QUEM NOS LÊ. CONTRIBUI AQUI.

Mas o problema maior não é esse. Muito mais do que a geopolítica, é a epistemologia que está em causa, para citar uma célebre resposta de Barack Obama à The Atlantic: “We are entering into an epistemological crisis”.

O Facebook e o Twitter decidiram “limitar” o alcance de um trabalho jornalístico do The New York Post durante a campanha eleitoral norte-americana sobre as ligações empresariais de um filho de Joe Biden.

Bem sei que há muitos bons argumentos que relativizam esta previsão. Ouço-os desde que comecei a escrever sobre o assunto. O primeiro a surgir fazia sentido, e aprimorou-se com o tempo, passando a ser dominante em largos sectores da direita tradicional: toda a narrativa da desinformação era tendenciosa e preconceituosa. “Por que só dá exemplos de campanhas de desinformação de direita, se a esquerda também as faz?”, perguntaram-me alguns leitores. Tentei explicar que os exemplos que dava eram aqueles que encontrava. 

Mas discuti o assunto com os investigadores do MediaLab do ISCTE-IUL que trabalhavam comigo na recolha de dados e tentámos perceber como seria possível combater essa aparente desproporção nas nossas descobertas e tentámos alargar a base de dados sem qualquer viés ideológico. O resultado mostrou, na altura, que uma campanha organizada de desinformação (divulgação de mentiras com o objectivo de influenciar opiniões nas redes sociais, disseminadas por contas falsas, que chegam a um número relevante de pessoas reais) era uma estratégia seguida por um núcleo político restrito e identificável. 

Chamemos-lhe o que quisermos “direita alternativa”, “populismo nacionalista” ou “extrema-direita”. Esse sector usava sobretudo um tema, a corrupção, para aglutinar seguidores. O racismo e o nacionalismo, sendo visíveis, eram subalternos em Portugal neste tipo de campanhas políticas, ao contrário da maioria dos países europeus onde o mesmo tipo de organizações políticas deste tipo se alimentava de campanhas nacionalistas, anti-refugiados, anti-islão, pelos “valores culturais tradicionais” europeus.

Com raras excepções, este é o padrão mundial. A desinformação é uma estratégia de um sector da direita. Mas a convicção de que esta identificação resulta de uma discriminação política por parte de jornalistas e académicos convenceu muita gente de que este seria um tema enviesado. Isso alimentou, e alimenta ainda, muitos dos estranhos debates que vamos tendo sobre “cancelamento cultural”, “marxismo cultural”, etc. Resultou, nos últimos tempos, numa acusação séria: ao discutirmos a desinformação, e as formas de a contrariar, estaremos a entrar no perigoso domínio da censura.

Esse é outro ponto em que concedo: os críticos estão meio-certos. Desde logo porque já passámos, de facto, a estreita linha vermelha da censura. A vítima mais óbvia é Donald J. Trump. Ao proibir o ex-presidente dos EUA de usar as suas contas pessoais (identificadas) e as de alguns dos seus apoiantes, uma longa lista de plataformas (do Facebook ao Snapshat, do YouTube à Amazon e ao Twitter) aplicaram um mecanismo de censura, justificado por essas plataformas pelos crimes cometidos na invasão do Capitólio, após as eleições de Novembro de 2020 que ditaram a vitória do democrata Joe Biden. 

Outros casos, recebidos com igual bonomia por alguns sectores da esquerda norte-americana e mundial, mostraram que a censura decretada pelas plataformas é bem real, e perigosa. O Facebook e o Twitter decidiram “limitar” o alcance de um trabalho jornalístico do The New York Post durante a campanha eleitoral norte-americana sobre as ligações empresariais de um filho de Joe Biden. Ou seja, as redes sociais puseram em marcha uma forma de censura, sobre um trabalho jornalístico, impedindo na prática que ele fosse lido e partilhado

Isso é um passo inequívoco em direcção à censura, seja qual for a qualidade, a relevância ou até a veracidade do trabalho jornalístico em causa. Se a história publicada pelo The New York Post é falsa, difamatória, inventada - o que seja - quer os visados, quer os leitores desagradados podem accionar mecanismos jurídicos e repor a verdade dos factos. A comunicação social, ao contrário das plataformas digitais, obedece a regras legais sobre a qualidade do que publica. Este parece ser um “detalhe” ignorado por muita gente.

Outra vítima desta história é o jornalista norte-americano Glenn Greenwald, que revelou o caso Snowden-NSA e o lawfare do caso Vaza-Jato no Brasil. Greenwald foi impedido de escrever sobre o caso Biden no próprio jornal que fundou – para ter mais liberdade do que dispunha nos meios tradicionais onde trabalhara, como o Guardian e isso levou-o a acusar o The Intercept de censura e sair. Greenwald não é um trumpista, e nem sequer é de direita. Por isso, todo o cuidado é pouco no que toca às generalizações.

A censura é a política assumida pelas grandes plataformas como o Google e o Facebook. É a liberdade que o mercado lhes dá para serem um duopólio dominante e universal que decide o que é ou não publicável nas suas redes.

Onde os críticos do perigo de censura falham e, repito, estão meio-certos é no alvo. Falham flagrantemente. A censura é um risco real, mas não é dirigida por Estados nem governantes totalitários, nem sequer pelos indefesos e ultra-minoritários agentes do tal “marxismo cultural”. A censura é a política assumida pelas grandes plataformas multinacionais, como o Google e o Facebook. É a liberdade que o mercado lhes dá para serem um duopólio dominante e universal que lhes permite decidir o que é ou não publicável nas suas redes. Seja Trump (quando perdeu o poder, recorde-se), seja a imagem de um seio nu, seja o que for. 

Essa é a grande falha de um outro grupo de críticos do combate à desinformação, este maioritariamente de esquerda. Argumentam que as redes sociais trouxeram um regime livre de partilha de opiniões, que é muito mais rico e diverso do que aquele que os media ofereciam, e que, por isso, a desinformação (podendo até existir) é apenas uma gota num oceano de pluralidade. Alguns destes críticos usam um argumento evidente: “A desinformação sempre existiu.” Voltam a estar meio-certos.

Ninguém de boa-fé ignora que as redes sociais possibilitam a todos os cidadãos o acesso a um speakers corner gratuito e potencialmente universal. Nisso são muito mais úteis e eficazes que qualquer outro meio de comunicação (da rádio aos blogues, da televisão aos jornais). São, por isso, mais inclusivos. Até mais humanos: as redes sociais ajudam a ultrapassar a solidão, oferecem uma sociabilidade possível em períodos de afastamento (a pandemia demonstrou-o a quase todos os cépticos), reforçam a auto-estima de quem lá recebe “gostos”, ou retweets.

Sendo tudo isso verdade, é bom que nos lembremos (como escreveu José Cardoso Pires em Alexandra Alpha), que as evidências têm um verso, um reverso e muitas vezes um perverso. Todas essas características a que chamei “humanas” das redes são também armadilhas e mostram, a quem passar os dedos uma vez que seja pelo feed do Facebook, o ensimesmamento e o individualismo, o mais cândido marketing pessoal militante, a dependência pura e simples do retorno que recebemos.

Tal como os críticos de direita que alertam para o perigo de censura quando ouvem falar de “regulação” das redes, os críticos de esquerda falham o alvo. Ainda mais estrondosamente, acrescento, se me permitem. Ignoram que o problema está, como diria um célebre filósofo oitocentista barbudo, na “infra-estrutura”. 

Talvez por limitação, ou casmurrice, continuo a acreditar que o debate político só é livre e rico quando a informação é boa. Por isso que me declaro meio-certo quanto à importância da desinformação na nossa vida comunitária.

Desde logo porque o tal speakers corner não o é. Quantas contas falsas há no Facebook? Metade, como afirma Aaron Greenspan, co-fundador da rede? Não sabemos. O que sabemos é que não há qualquer debate livre quando uma boa parte dos debatentes são perfis criados por agências de comunicação, ou agrupamentos de interesses de outra natureza, precisamente para fazerem com que o debate seja condicionado. 

Mesmo que todas as contas fossem verdadeiras (e sim, defendo que seja criado um mecanismo obrigatório de identidade digital pelas redes, para que seja mais difícil haver bots), e já sabemos que não são, o debate não poderia ser livre por outra razão óbvia. O Facebook e o Google querem ter nas suas redes biliões de utilizadores (sejam reais ou fictícios), porque é esse universo que lhes garante o rendimento de que vivem: o mercado publicitário. 

Se as redes vendem anúncios, a uma empresa qualquer, prometendo alcançar seis milhões de portugueses (é o número de contas que o Facebook tem em Portugal), está a deixar a uma distância considerável o programa mais visto de sempre da TV portuguesa. Os bots são euros. 

O que significa que as campanhas anti-vacinas (muito anteriores a esta da covid) são euros; as publicações da terra plana são euros; as publicações racistas são euros. Quanto mais gente se agremiar em torno de um tema “viral” mais euros em publicidade chegam às contas da empresa que gere a rede. A única hipótese de isto tornar o debate mais rico, e mais livre, para o maior número de pessoas, é fazer esse debate numa performance viciante. Haverá alguns bons exemplos disso no mundo. Há, contudo, uma miríade de maus exemplos, sobretudo à esquerda, de performers nas redes sociais, com boa audiência e estatuto de influenciadores.

Talvez por limitação, ou casmurrice, continuo a acreditar que o debate político só é livre e rico quando a informação é boa. É por isso que me declaro meio-certo quanto à importância que a desinformação tem na nossa vida comunitária. Quando todas as nossas formas tradicionais de receber informação (em conversas longas de café, a ler factos verificados que nos permitem informar-nos) passaram a estar condicionadas pelas estratégias de difusão publicitária das redes – e pelas campanhas de propaganda que elas facilitam e promovem – passámos a ter, de facto, um sério problema epistemológico.

Se não acreditam, façam um teste rápido comigo. Tudo isto da desinformação e das fake news, podemos concordar, começou a ocupar-nos a cabeça há poucos anos. Se nos tentarmos lembrar, somos capazes de repetir a origem do caso: a Cambridge Analytica. 

Façamos só mais um esforço e tentemos resumir esse caso numa só frase: “A Cambridge Analytica foi uma empresa que roubou dados online de norte-americanos e possibilitou a vitória de Trump em 2016, trabalhando com o Kremlin.”

Esta é, provavelmente, a memória que resta na maioria dos cidadãos do mundo que leram sobre este assunto. O problema é que a história desmente quase todas as premissas dessa conclusão. Quem concordou comigo no penúltimo parágrafo talvez não precise de ler as linhas seguintes. Peço, por favor, a quem discordou que as leia. 

O caso Cambridge Analytica

Tudo começou quando um professor universitário, especialista em direitos digitais, David Carroll, decidiu procurar saber com exactidão que informações privadas tinha a Cambridge Analytica recolhido sobre si, e sobre os restantes 86.999.999 milhões de norte-americanos, para basear nelas a estratégia da campanha eleitoral de Donald Trump nas redes sociais, em 2016. 

Na verdade, não foi a Cambridge Analytica que recebeu os dados, mas Aleksandr Kogan, um investigador da Universidade de Cambridge, que criou um questionário (“thisisyourdigitallife”) para utilizadores do Facebook que usou a API do Facebook (acrónimo de Application Programming Interface, interface de programação de aplicações, em português). 

Até aqui tudo parece normal, além de oficialmente permitido pelo Facebook em 2013/2014. O problema surgiu quando Kogan, o programador, decidiu vender os dados que recolheu no Facebook à Cambridge Analytica. Isso, sim, violava as regras. Em seguida, a Cambridge Analytica trabalhou os dados para criar perfis dos utilizadores e, com base neles, tentou identificar um grupo de eleitores na campanha presidencial americana de 2016 que poderiam ser eficazmente “persuadidos”, através de anúncios políticos, a votar em determinado candidato. Esta operação high-tech ajudou a conceber estratégias de publicidade “negra” como a que foi concebida pelo “projecto Alamo”. 

Dito de outra forma: na história da Cambridge Analytica não há qualquer vestígio de hacking ou de violação de dados. Os dados dos utilizadores do Facebook não foram hackeados nem as suas palavras-passe usurpadas, nem ninguém acedeu aos dados internos do Facebook.  Como escreveu a revista Slate: “O verdadeiro escândalo não é o que Cambridge Analytica fez, é o que o Facebook tornou possível”. Em resumo: não foi um defeito, era o feitio.

O candidato presidencial republicano Ben Carson contratou a Cambridge Analytica. A sua equipa disse à Mother Jones que os serviços da empresa eram na melhor das hipóteses, uma farsa e, na pior das hipóteses, também uma farsa. 

Muito antes da Cambridge Analytica e de Trump, métodos bastante semelhantes de recolha de dados foram usados noutros momentos eleitorais. Basta lembrar a forma como a campanha de Barack Obama (em 2008, mas sobretudo na reeleição de 2012) se baseou na “publicidade direccionada”, inovando o campo do marketing político. 

Como o Washington Post observou, em 2011 a campanha de Obama “construiu uma base de dados de todos os eleitores americanos usando a mesma ferramenta de desenvolvimento do Facebook usada pela Cambridge (...) Sempre que as pessoas usavam o botão de login do Facebook para aceder ao site da campanha, os cientistas de dados do Obama podiam aceder ao seu perfil e às informações dos seus amigos”.

Nada disto compara as duas situações, é preciso reforçar. No caso da Cambridge Analytica, os utilizadores do Facebook que forneceram os seus dados não sabiam que seriam redireccionados e usados para marketing político. Tinham concordado apenas com uma aplicação de teste de personalidade que nada tinha a ver com política. Todos os dias há cidadãos portugueses que respondem a questionários deste tipo, mais ou menos bem-humorados, sobre música, personalidades e gostos. 

Na campanha de Obama, em 2012, pelo contrário, os utilizadores do Facebook deram acesso aos seus dados sabendo que era uma campanha política que os pedia. Mas a história está longe de se tornar mais simples…

A principal testemunha na qual se baseia a tese de que as ferramentas da Cambridge Analytica ajudaram Trump a conseguir a eleição foi o denunciante Christopher Wylie, ex-funcionário da Cambridge Analytica e, provavelmente, o maior “herói” desta história. Durante uma entrevista, que pode ver-se no documentário da Netflix, The Great Hack, Wyle é questionado, a respeito de suas alegações: “Qual é a sua prova disso?” Ao que Wylie responde: “Eu estava lá”.

Mas Wylie, na realidade, não “estava lá” quando a campanha eleitoral americana arrancou. Ele foi contratado pela Cambridge Analytica em 2013, permaneceu por nove meses e deixou a empresa no verão de 2014, pelo menos um ano e meio antes de a CA ser contratada pela campanha Trump. 

Cinco reportagens diferentes do New York Times, The Verge, Mother Jones, CBSNews e Wired afirmam de forma mais ou menos categórica que nunca foram usados dados “psicográficos” na campanha de Trump. A CBSNews, por seu turno, garante que “a campanha Trump eliminou gradualmente o uso dos dados da Cambridge Analytica antes da eleição”.

A Cambridge Analytica forneceu uma análise útil dos dados sobre o eleitorado americano. No entanto, não forneceu os dados brutos coisas como informações demográficas, informações de contacto e dados sobre como os eleitores se sentem sobre diferentes questões sobre as quais essa análise foi feita. Pode parecer uma distinção fútil, mas é crucial. 

Os arquivos da Comissão Eleitoral Federal norte-americana, a única fonte “objectiva” sobre gastos políticos, mostram que a campanha Trump pagou à Cambridge Analytica um total de US$ 5,9 milhões (5,4 milhões de euros em 2016). Um pagamento de $5 milhões (4,5 milhões de euros) foi para comprar anúncios de televisão, deixando apenas $900.000 (820 mil euros) para tudo o resto, e nenhuma prova disso incluiu psicografias ou os dados brutos que a empresa é acusada de recolher.

Até à data, não existem muitas provas que demonstrem o impacto eleitoral que estes instrumentos e métodos tiveram. 

Esta história, porém, começa antes de Trump. Foi o seu concorrente nas primárias republicanas, Ted Cruz, que primeiro contratou a Cambridge Analytica. No entanto, de acordo com o New York Times, “os modelos psicográficos da Cambridge revelaram ser pouco confiáveis na campanha presidencial da Cruz, de acordo com Rick Tyler, ex-assessor de Cruz e outro consultor envolvido na campanha. Num teste inicial, mais da metade dos eleitores de Oklahoma que a Cambridge tinha identificado como partidários de Cruz realmente escolheram outros candidatos. A campanha deixou de usar os dados da Cambridge após as primárias da Carolina do Sul”. 

Também o candidato presidencial republicano Ben Carson contratou, por algum tempo, a Cambridge Analytica. A sua equipa disse à Mother Jones que os serviços da empresa eram na melhor das hipóteses, uma farsa e, na pior das hipóteses, também uma farsa. 

Mesmo os defensores da privacidade duvidam da tecnologia da Cambridge Analytica. Frederike Kaltheuner, da Privacy International, disse ao Guardian ter testado essa tecnologia usando os seus próprios dados do Facebook: “A Cambridge Analytica usa dados e inteligência artificial para traçar o perfil das pessoas e prever personalidades e atributos. Quando fiz o teste, eu tinha 65% de probabilidade de ser do sexo masculino”.

No entanto, a crítica mais forte vem da investigação académica. O professor de Tuft, Eitan Hersh, publicou em 2015 Hacking the Electorate, descrito pela sua editora, a Cambridge University Press, como “o estudo mais abrangente até hoje realizado sobre as consequências das campanhas que usam bases de dados de micro direccionamento para mobilizar os eleitores nas eleições”. 

Em 2018, Hersh testemunhou na comissão do Senado dos EUA com o seguinte depoimento: “Com base nas informações que tenho visto em relatórios públicos sobre a Cambridge Analytica, é minha opinião que as suas práticas de segmentação em 2016 não devem ser uma grande causa de preocupação por terem influenciado indevidamente o resultado da eleição. E estou céptico que a Cambridge Analytica tenha manipulado os eleitores de uma forma que afectou a eleição”.

Na verdade, o único estudo sobre a eficácia da operação de recolha de dados é de Aleksandr Kogan, o programador que iniciou esta história, recolhendo dados no Facebook que depois vendeu à Cambridge Analytica. Num longo e-mail para os seus colegas da Universidade de Cambridge, Kogan declarou que a ferramenta claramente não funcionou: “De facto, a partir da nossa pesquisa sobre o tema, descobrimos que as previsões que demos à SCL [empresa dona da Cambridge Analytica] eram seis vezes mais propensas a colocar todos os cinco traços da personalidade de uma pessoa errados”. 

E concluiu: “Em suma, mesmo que os dados fossem usados por uma campanha de micro direccionamento, isso só poderia, realisticamente, prejudicar seus esforços”. Daniel Kreiss, professor da Universidade da Carolina do Norte e considerado um dos principais especialistas em campanhas orientadas por dados, afirmou: “Há muitas razões para ser céptico. Há pouca evidência baseada em pesquisas de que a segmentação psicométrica seja eficaz na política e muita base teórica de que não é”. Esse é um bom argumento para a parte seguinte desta história. 

Mercenários da desinformação

Há muito poucas provas de que esta história tenha origem em espionagem ou de que tenha sido uma tentativa russa para influenciar as eleições nos EUA ou o referendo do Brexit. A mais forte é a denúncia de Chris Wylie, que, no seu testemunho escrito ao Senado dos EUA, inclui um longo capítulo chamado Contacto Russo, conduzindo a essa conclusão. 

Wylie afirmou que Kogan era um cidadão com dupla nacionalidade, umas vezes descrevendo-o como “russo-americano”, ou apenas “russo” noutras circunstâncias. Tanto o New York Times como o Washington Post, como a VOX, a AFP e a Slate,  apresentaram Kogan como russo-americano; igualmente a repórter do Guardian, Carole Cadwallader, liga Kogan ao “governo russo” e explica que terá recebido  subsídios de Moscovo para investigar os estados emocionais dos utilizadores do Facebook. 

O problema é este: Kogan não é russo nem russo-americano. Nasceu na Moldávia quando ainda era uma república da União Soviética, sim, mas aos sete anos de idade Kogan emigrou com a sua família para os EUA. A única cidadania que tem é a norte-americana. 

Kogan, “professor associado” num dos melhores departamentos de psicologia do mundo, na Universidade de Cambridge, tem trabalhado com várias universidades (a maioria delas no Reino Unido, EUA e Canadá). É verdade que trabalhou com a Universidade de São Petersburgo num projecto específico. 

A venda que Kogan fez de dados de utilizadores do Facebook para a Cambridge Analytica a partir do questionário online que criou está no centro do escândalo e do problema mais amplo do abuso de dados. 

No e-mail que enviou aos seus colegas da Universidade de Cambridge após o escândalo, forneceu detalhes sobre esta colaboração que não foram apontados como falsos até à data: «O meu cargo na Universidade Estadual de São Petersburgo (SPSU) é sobretudo honorário. Visitei a Universidade julgo que três vezes no total, nos dois anos em que colaborei com ela. Como muitos de vocês sabem, nasci na antiga União Soviética e emigrei para NYC quando tinha sete anos de idade. Mas adoro visitar São Petersburgo porque é uma cidade absolutamente linda. Antes de assumir o cargo, pedi a Trevor [o seu chefe na Universidade de Cambridge] e, posteriormente, ao gabinete de investigação para obter autorização. Deram-me luz verde”. 

A explicação continua e dá novos detalhes. “A bolsa que citam foi concedida a um grupo de colegas do SPSU. Fui nomeado para a bolsa apenas para aumentar as hipóteses de o projecto ser financiado. Em termos de trabalho, fiz muito pouco, honestamente tive algumas reuniões com eles para discutir os seus métodos e resultados. Nem sequer sou autor de nenhum dos artigos publicados pela equipa do SPSU. A equipa também visitou o meu laboratório em Cambridge uma vez para um encontro com os meus alunos de doutoramento”, lê-se no e-mail

A Universidade de Cambridge emitiu uma declaração confirmando que Kogan tinha pedido autorização para colaborar com a Universidade de São Petersburgo. À acusação de financiamento russo, o investigador comenta o seguinte: "Os artigos do The Guardian, em particular, são frustrantes, pois têm uma infografia que mostra uma ligação entre mim e o governo russo - aparentemente, se receber dinheiro do governo para pesquisa, posso ser um espião”. Mas Kogan também recebeu financiamento de outros Estados, entre os quais alguns ocidentais, e o próprio admitiu-o: “O que eles não fizeram foi também estabelecer ligações com os governos do Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e China, uma vez que eu recebi financiamento para pesquisa de todos esses governos também num ou noutro momento”.

Kogan não é nenhum santo. A venda que fez de dados de utilizadores do Facebook para a Cambridge Analytica a partir do questionário online que criou está no centro do escândalo e do problema mais amplo do abuso de dados. Mas a acusação de que é um "espião russo" é impossível de provar com o que sabemos até ao momento.

Mas tomemos como boa – e provada – a hipótese de haver uma ligação efectiva entre Kogan, a Cambridge Analytica e a Rússia. O que é que isso nos permite concluir? Pouco, ou nada, dada a história da empresa.

Operações de informação

A Cambridge Analytica faz parte de um grupo maior chamado Strategic Communications Laboratories (SCL). A SCL tinha várias divisões: Eleições SCL (que trabalhou com governos e partidos políticos em eleições ao redor do mundo), IOTA Global (o seu departamento de formação), SCL Defense (de defesa), Cambridge Analytica (campanhas eleitorais) e BDI (o “Behavioral Dynamics Institute”, um think tank e centro de pesquisa). 

Chris Wylie explica num podcast que o Grupo SCL era um empreiteiro militar britânico que trabalhava em operações de informação para os militares britânicos e norte-americanos.  Em 2016, enquanto a empresa estaria envolvida numa suposta conspiração com os russos, lia-se no rodapé da sua página: “Trabalhamos com marcas, organizações políticas e grupos de defesa em todo o mundo, e a nossa metodologia foi aprovada pelo Ministério da Defesa do Reino Unido, pelo Departamento de Estado dos EUA, pelos Laboratórios Nacionais Sandia e pela NATO”.

O Grupo SCL tinha uma estreita relação de trabalho com o Ministério da Defesa do Reino Unido e recebeu quase £200.000 (183 mil euros) pela realização de dois projectos separados. Em 2015, organizou uma formação para o Centro de Excelência em Comunicação Estratégica da NATO na Letónia, um curso de oito semanas que treinou o pessoal dos serviços secretos e militares dos países da NATO para “contrariar a propaganda da Rússia”.

A desinformação, ou a utilização das generalizadas e universais redes sociais para operações de “persuasão e influência”, não é o que sempre foi. É diferente, mais poderosa, ubíqua e perigosa.

Nesse mesmo ano, a SCL também foi seleccionada para auxiliar a Defesa Norueguesa num grande estudo. Estudou jihadistas paquistaneses para o governo britânico e forneceu avaliações de inteligência para empreiteiros de defesa americanos no Irão, Líbia e Síria, segundo documentos da empresa. De acordo com o Guardian, a SCL ganhou ainda contratos com o Pentágono para realizar operações [psi-ops] no Irão e no Iémen.

Para avaliar as actividades multifacetadas da SCL em todo o mundo, a nossa guia mais útil será Emma Briant, professora da Universidade de Essex. Em 2014, antes de rebentar o escândalo, Briant entrevistou responsáveis da Cambridge Analytica para o seu livro Propaganda e contra-terrorismo: Estratégias para a mudança global

Em 2018, Briant publicou um artigo no site Open Democracy onde reformula completamente a história: a Cambridge Analytica surge não como um possível canal de interferência da Rússia nos assuntos ocidentais, mas como o exacto oposto, uma empresa que serviu interesses militares e políticos ocidentais em todo o mundo e investiu na chamada “indústria da influência”. A pesquisa de Briant, que submeteu ao inquérito do parlamento britânico sobre fake news, indicou “sobreposições importantes de pessoal, relações financeiras e métodos em comum” entre as duas empresas do mesmo grupo.

A afinidade é mais sentida na divisão “eleições”. Enquanto a Cambridge Analytica apresentava resultados aos candidatos dos EUA, a sua empresa-irmã, a SCL Elections, vangloriava-se, no seu site, dos “projectos eleitorais” que havia produzido em todo o mundo. O alcance global da SCL inclui mais de 100 campanhas eleitorais em mais de 30 países em cinco continentes. 

Um dos países onde a SCL tem estado bastante activa é a Ucrânia. O “trabalho” da SCL na Ucrânia remonta a 2004, ano em que começou a Revolução Laranja. Em 2014, um projecto SCL intitulado Estratégia e operações orientadas por dados na Ucrânia visava ajudar “o governo ucraniano [...] a recuperar o controlo de Donetsk” através de “campanhas de comunicação localizadas para erodir e enfraquecer a República Popular de Donetsk (RPD)”. (Donetsk é maioritariamente povoada por ucranianos-russos; o DPR é o pseudo-Estado que foi criado nos territórios ucranianos ocupados com o apoio da Rússia após a invasão militar da Rússia.) 

O contratante do projecto parece ser o governo ucraniano (pró-EUA, pró-NATO), mas a SCL não esconde o papel do governo do Reino Unido neste contexto: “o relatório final do projecto” foi “partilhado com o Ministério da Defesa do Reino Unido”.

Evitar o debate sobre a regulação não só não nos protege da censura como ainda nos deixa mais vulneráveis às nascentes “ferramentas de propaganda” que ameaçam a nossa democracia.

Finalmente, em 2015, a IOTA Global (o departamento de formação do SCL) apoiou o reforço das capacidades da NATO nas Comunicações Estratégicas do governo da Ucrânia. Curiosamente, além de o SCL se congratular e vangloriar pelo seu trabalho, a NATO também elogiou o SCL. Um comunicado da StratCom da NATO intitula-se Contrariar a propaganda: A NATO lidera o uso da ciência da mudança de comportamento. 

Por esta altura, admito, a história está demasiado confusa. Como é que podemos acreditar, em simultâneo, que uma empresa contratada pela NATO para ajudar a Ucrânia na guerra territorial com a Rússia é, ao mesmo tempo, nos mesmos anos, o biombo através do qual a Rússia tenta manipular as eleições americanas? 

Steve Tatham, antigo director de psi-ops no Reino Unido, director da SCL Defence, dissipa as dúvidas com um artigo, onde afirma que a solução para a propaganda russa não é a propaganda da União Europeia ou da NATO, antes a ciência social avançada para compreender e mitigar os seus efeitos sobre as populações-alvo. O escândalo da Cambridge Analytica começou em 2017, no entanto, a SCL, empresa-mãe da Cambridge Analytica, já existia há muito tempo.

Em 2005, quando Trump, Steve Bannon ou o Brexit não faziam parte das preocupações do mundo, a SCL fez a sua estreia pública numa feira global de armas em Londres. O seu presidente na altura era Sir Jeffrie Pattie, antigo Ministro da Defesa do Reino Unido. Um artigo da Slate previa: “A propaganda de psi-ops vai ser mainstream”. Na altura, o Guardian comentou: “É mais Orwell do que 007. A SCL está no ramo da gestão da informação. As estações lidam com dados demográficos e sociais e análises de tendências para que o governo possa usar "persuasão e influência" para alcançar seus objectivos”.

Por sua vez, Emma Briant conclui: “É uma história sobre como foi desenvolvida uma rede de empresas que permitiu o amplo uso de ferramentas de propaganda - baseadas em técnicas de propaganda que foram criadas e projectadas para serem usadas  como armas em zonas de guerra - sobre cidadãos em eleições democráticas”.

Este é o derradeiro argumento que vos deixo. A desinformação, ou a utilização das generalizadas e universais redes sociais para operações de “persuasão e influência” sobre cidadãos, eleitores, comunidades, não é o que sempre foi. É diferente, mais poderosa, ubíqua e perigosa. 

Temer a censura que a regulação obrigatoriamente impõe ao livre discurso nas redes sociais é uma preocupação séria. Mas, com isso, evitar o debate sobre a regulação não só não nos protege da censura (que já existe), como ainda nos deixa mais vulneráveis às nascentes “ferramentas de propaganda” que ameaçam a nossa democracia.

O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.