Historiadora e professora titular da Howard University, em Washington DC, nos Estados Unidos. Autora e editora de mais de treze livros sobre a história e a memória da escravatura no mundo atlântico. Membro da comissão científica do Projeto da UNESCO Rota das pessoas escravizadas (antigo Projeto Rota do Escravo).

Desmantelar a escravatura e o colonialismo: é possível reparar o passado no espaço público?

Em maio e junho de 2020, no auge do período de confinamento da pandemia de covid-19 e depois do assassinato do afro-americano George Floyd por um polícia branco, as exigências por reparações (simbólicas ou não) em relação ao colonialismo e à escravatura explodiram no espaço público de forma nunca antes vista. Que balanço se pode fazer?

Ensaio
3 Novembro 2022

Há pelo menos três décadas que os debates sobre o passado escravocrata e colonial dos impérios europeus teimam em ressurgir. O comércio atlântico de africanos escravizados e a conquista e colonização do continente africano são feridas que ainda se fazem sentir. Assim o é que homens e mulheres historicamente racializados, como negros e negras, têm ocupado praças, ruas, pontes, jardins, parques, prédios, cemitérios e cais do Rio de Janeiro, de Pretória, de Amsterdão, de Nova Iorque ou mesmo de Lisboa. 

Reclamando esses lugares públicos, esses atores sociais cujos ancestrais foram escravizados e colonizados reivindicam a remoção de monumentos e outros marcadores físicos que comemoram os seus algozes desde a era da escravatura e do colonialismo. Esses homens e mulheres também exigem que governos e autoridades públicas reconheçam publicamente esse passado doloroso. 

Mas reivindicam mais que isso: que essa história seja escrita nos manuais escolares e exposta nos museus e que os seus antepassados, vítimas do tráfico atlântico de africanos escravizados, lutadores pelo fim da escravatura e do colonialismo europeus, sejam homenageados com feriados e construção de monumentos no espaço público das suas cidades e países. 

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Também nos últimos anos, governantes, artistas e outros atores sociais africanos, muitas vezes através das suas organizações, têm sido ativos na formulação de pedidos para se repatriar o património material africano, espoliado nas guerras de conquista e nos regimes coloniais em África.

Em maio e junho de 2020, no auge do período de confinamento da pandemia de covid-19 e depois do assassinato do afro-americano George Floyd por um polícia branco, essas exigências explodiram no espaço público de forma nunca antes vista. Se no passado os protestos eram parcialmente confinados às esferas nacionais de cada país, as manifestações públicas no verão de 2020, muitas vezes lideradas pelo movimento Black Lives Matter, expuseram ainda mais os elos internacionais que unem os membros da diáspora africana na Europa e nas Américas, assim como no próprio continente africano.

Que balanço se pode fazer dos pedidos de reparações simbólicas pela escravatura e o colonialismo com o derrube ou construção de monumentos nos espaços públicos? 

Os protestos de 2020 deixaram claro que o derrube dos monumentos esclavagistas e coloniais está intimamente ligado à luta antirracista e demonstraram a centralidade dos pedidos de reparação pela era da escravatura e do colonialismo. Embora a maioria dos pedidos de reparação pareça continuar a ser de natureza simbólica, a pandemia também expôs a urgência das reparações financeiras e materiais, pois o confinamento, o desemprego e a mortalidade atingiram muito intensamente as comunidades afrodescendentes das Américas, principalmente nos Estados Unidos. 

Apesar da baixa mortalidade em África, como salienta o historiador Toby Green, os países africanos foram duramente atingidos pela imposição de restrições que impediram adultos e jovens, que dependiam da economia informal, de ter acesso ao ganha-pão diário e as crianças a terem acesso às escolas.

Dois anos depois dessas manifestações, que intensificaram um movimento que começou nos anos 1990, cabe perguntar: que balanço se pode fazer dos pedidos de reparações simbólicas pela escravatura e colonialismo com o derrube ou construção de monumentos no espaço público das cidades europeias e americanas? 

Uma longa memória

As memórias individuais e coletivas da escravatura nas Américas permaneceram vivas por muito tempo entre indivíduos e grupos, principalmente no âmbito privado. Em regiões africanas devastadas pelo comércio de carne humana, as lembranças das guerras, das razias, das capturas, das mortes e dos deslocamentos forçados também se mantiveram vivas na memória coletiva. Ditados, danças, canções, imagens, rituais religiosos ou histórias passadas de pais para filhos foram os instrumentos encontrados para se transmitir a memória.

Essas memórias passaram, especialmente depois da emancipação, nos séculos XIX e XX, a ocupar o espaço público e acabaram por moldar a memória pública e oficial da escravatura e do tráfico atlântico de escravizados. É que, ao contrário da maioria das outras regiões das Américas, na segunda metade do século XVIII os libertos nos Estados Unidos começaram a publicar as suas narrativas, que logo se transformaram num genuíno género literário.

Em 1935, durante a Grande Depressão e como parte do New Deal, o presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, lançou o Federal Writers’ Project (Projeto federal para autores). Foi uma iniciativa destinada a financiar obras escritas e apoiar escritores americanos e, entre 1936 e 1938, homens e mulheres empregados neste projeto foram designados para entrevistar libertos em 17 estados do sul dos Estados Unidos.

Apesar dos preconceitos dos entrevistadores, essa iniciativa ambiciosa e inédita produziu a mais completa coleção de depoimentos de libertos das Américas. Ofereceu pistas para se compreender a memória coletiva da escravatura nos Estados Unidos. Aliás, é importante lembrar que não houve iniciativa semelhante no Brasil ou noutros países da América Latina e do Caribe. Apesar dessas lacunas, a escravatura tornou-se, às vésperas da II Guerra Mundial, objeto de representações também na cultura popular norte-americana.

Incorporando elementos da memória coletiva da escravatura realizada por descendentes brancos de proprietários de escravos, romances e filmes como E tudo o vento levou (1939) transmitiram uma imagem nostálgica do antigo Sul esclavagista dos Estados Unidos. Reforçando as representações de homens e mulheres escravizados como sujeitos submissos, os Estados Unidos exportaram essas representações da escravatura para outras antigas sociedades esclavagistas, como o Brasil.

Mas com a ascensão do Movimento dos Direitos Civis na década de 1950, ativistas, escritores, artistas e outros atores sociais afro-americanos desafiaram as representações brancas de escravizados passivos. Um dos exemplos mais bem-sucedidos dessa transformação foi o romance Raízes: A saga de uma família americana (1976), de Alex Haley, e a sua adaptação para a televisão em 1977. Tanto o livro quanto a série de televisão promoveram, enfatizando a resistência e a resiliência, novas representações afro-americanas de homens e mulheres escravizados.

Até à primeira metade do século XX, a maioria dos monumentos transmitia representações submissas das pessoas escravizadas. A partir da década de 1960 surgiu uma memória que favoreceu a comemoração da rebeldia e resistência.

A descolonização de África e do Caribe também transformou o processo de memorialização da escravatura. Se a maioria dos monumentos públicos existentes nas Américas até à primeira metade do século XX transmitia representações submissas, muitas vezes retratando corpos agachados e curvados de homens, mulheres e crianças escravizados, a partir da década de 1960 surgiu uma memória pública emergente da escravatura. Uma memória que favoreceu a comemoração de escravizados rebeldes e resistentes.

Foi o caso, por exemplo, do Caribe, onde se ergueram vários monumentos que representaram indivíduos que resistiram e lutaram contra a escravatura. Representando escravizados em posições corporais que demonstram resistência (com os braços levantados e quebrando correntes), muitas novas estátuas homenagearam rebeldes como Gaspar Yanga no México, Benkos Bioho na Colômbia, Carlota em Cuba, Bussa em Barbados e Zumbi dos Palmares no Brasil. 

Apesar dessas iniciativas de homenagem, a presença e o trabalho diário de homens e mulheres escravizados foram apagados dos locais históricos dos antigos engenhos ou ambientes urbanos onde existia escravatura. Seja no Brasil, na Colômbia ou nos Estados Unidos, o papel crucial da força de trabalho escravizada e a sua importância numérica nas sociedades esclavagistas raramente foram reconhecidos.

O mesmo processo ocorreu nos países europeus, como Portugal, França e Inglaterra, que ativamente participaram no comércio esclavagista. Nos séculos XIX e XX, cidades como Lisboa, Lagos, Nantes, Bordeaux, Bristol e Liverpool ocultaram gradualmente prédios, mercados, cemitérios e cais associados ao comércio de pessoas escravizadas e à presença de homens e mulheres escravizados nessas cidades portuárias.

Mas, nas últimas três décadas, o passado escravocrata dessas sociedades tornou-se mais visível. O fim da Guerra Fria (1947-1991) favoreceu a visibilidade de grupos historicamente excluídos, afirmando as suas identidades. Esse quadro geral também impulsionou os intercâmbios internacionais, impulsionando as conexões globais entre organizações negras e populações afrodescendentes.

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Em comemoração ao Dia da Consciência Negra, grupos fazem homenagens junto ao Monumento a Zumbi dos Palmares, na região central do Rio de Janeiro (Tânia Rêgo/Agência Brasil) [CC BY 2.0]
Em comemoração ao Dia da Consciência Negra, grupos fazem homenagens junto ao Monumento a Zumbi dos Palmares, na região central do Rio de Janeiro, Brasil | Tânia Rêgo/Agência Brasil [CC BY 2.0]

Atores sociais e ativistas negros começaram a ocupar cada vez mais o espaço público para reivindicar a história de homens e mulheres que resistiram à escravatura. Historiadores passaram a prestar mais atenção às trajetórias individuais de homens e mulheres escravizados que enfrentaram as dificuldades da escravatura autoemancipando-se através de fugas individuais ou coletivas ou negociando melhores condições de trabalho e de vida. Baseando-se numa miríade de narrativas e testemunhos em primeira mão de pessoas escravizadas, especialmente nos Estados Unidos, esses estudiosos começaram a dar um lugar central às experiências vividas dos cativos.

Esse fenómeno não aconteceu de forma isolada. Antes do fim da II Guerra Mundial, iniciativas similares de memorialização do Holocausto surgiram por meio da publicação de depoimentos de sobreviventes. Estas histórias individuais foram também retratadas em filmes, romances, documentários, exposições e memoriais, pondo em evidência homens e mulheres que resistiram ao regime nazi.

Nos anos 1990, antigas plantações de tabaco, trigo e algodão abertas para visitas ao público, nos Estados Unidos, também passaram a dar mais visibilidade à instituição da escravatura, uma dimensão outrora totalmente omissa desses espaços destinados a relembrar a vida luxuosa das elites esclavagistas. Nas visitas das casas-grandes, os guias ressaltavam os móveis em acaju, os utensílios de prata ou os papéis de parede, omitindo que quem fazia todo o trabalho dentro dessas grandes mansões eram homens e mulheres escravizados. Como observado por vários estudiosos, nas visitas guiadas dessas fazendas os docentes muitas vezes faziam referências à escravatura usando a voz passiva, um dos vários dispositivos concebidos para aniquilar simbolicamente a presença física e o trabalho prestado pelos escravizados.

Ainda assim, apesar das tentativas tímidas e dos esforços robustos mais recentes para pôr o passado esclavagista em evidência nas antigas plantações, homens e mulheres escravizados continuaram a ser retratados como indivíduos sem nome. Nos Estados Unidos, ainda hoje os visitantes das plantações mais ricas se opõem ao facto desses locais continuarem a branquear e apagar as suas histórias de atrocidades. É o caso, por exemplo, da plantação Monticello, antiga plantação e residência do presidente dos EUA Thomas Jefferson, mesmo que nas últimas duas décadas tenha feito esforços consideráveis para reinterpretar a escravatura. 

Em maior ou menor grau, mesmo os locais históricos que trouxeram à luz o papel da escravatura continuam a perpetuar a desumanização e a invisibilidade de homens e mulheres escravizados. Noutras palavras, a memória pública da escravatura e do comércio de escravos é realizada por homens e mulheres cujas histórias estão, de uma forma ou de outra, associadas a essas atrocidades passadas mas que continuam a ecoar no presente.

Durante a escravatura e imediatamente depois da sua abolição, escravizados e libertos reuniam-se para comemorar datas específicas, especialmente a da emancipação, a 1 de janeiro de 1963. À medida que as várias gerações de libertos foram morrendo nas diferentes sociedades das Américas, homens e mulheres que se identificavam como descendentes de escravizados (racializados como negros ou afrodescendentes) continuaram a preservar uma memória coletiva das experiências vividas pelos seus ancestrais.

Atores sociais afro-americanos sempre protestaram contra a existência de monumentos esclavagistas no espaço público. A partir dos anos 1990 surgiu nos Estados Unidos um verdadeiro movimento pela derrubada das estátuas confederadas.

Explico melhor: a escravatura e o comércio atlântico de africanos funcionam como uma moldura através da qual os membros de um grupo e de vários grupos se situam em relação a outros grupos em suas sociedades. Assim sendo, as reivindicações que esses indivíduos e grupos transmitem nos dias de hoje na esfera pública podem ser muito diferentes, dependendo das diferentes posições que ocupam nessas mesmas sociedades. Com séculos de escravatura e colonialismo europeu em África, passou a associar-se pessoas brancas com aqueles que eram proprietários e mercadores de escravos, lucrando, e as pessoas negras às vítimas dessas atrocidades. 

Um exemplo claro de como essas estruturas passadas operam no presente foi a criação dos monumentos homenageando os líderes confederados que se insurgiram contra o governo federal em 1861, com o objetivo de manter a escravatura nos estados do sul dos Estados Unidos. A ação dos esclavagistas deu origem a uma guerra civil que durante quatro anos fraturou os Estados Unidos. Apesar de terem perdido a guerra e de a escravatura ter sido abolida em 1865, os vencidos construíram, ao longo das décadas que seguiram ao final da guerra, dezenas de monumentos homenageando os líderes que a defendiam.

Atores sociais afro-americanos sempre protestaram contra a existência desses monumentos esclavagistas no espaço público. A partir dos anos 1990 (e principalmente a partir de 2013, com o surgimento do movimento Black Lives Matter) surgiu nos Estados Unidos um verdadeiro movimento pela derrubada das estátuas confederadas. 

Em março de 2015, estudantes sul-africanos lançaram uma campanha bem-sucedida para derrubar uma estátua do colonizador Cecil Rhodes do campus da Universidade da Cidade do Cabo. Esse movimento ganhou atenção em todo o mundo e levou mais universidades na África do Sul e no Reino Unido a juntarem-se a protestos exigindo a queda de outras estátuas representando Rhodes e outros monumentos simbolizando o colonialismo e o Apartheid.

Nos Estados Unidos, os debates e manifestações em torno de marcadores confederados são exemplos úteis das batalhas em andamento em torno da memória pública da escravatura. Estes batalhas estão relacionadas com o poder contínuo da supremacia branca que marginaliza sujeitos negros em ambientes urbanos, ao mesmo tempo que promove as representações de homens brancos que apoiaram a escravatura como figuras dignas de homenagem. Cabe também lembrar que essas estátuas e memoriais, símbolos típicos da supremacia branca, foram na maioria das vezes erguidos durante a era Jim Crow, quando os afro-americanos eram vítimas constantes de ódio racial e tinham os seus direitos civis negados.

Em resposta, ativistas negros, cidadãos comuns e os seus aliados brancos apelaram para a remoção desses monumentos que homenageavam os homens que pegaram em armas para defender a escravatura. Mas, à medida que essas lutas se intensificaram, os atores sociais brancos que reivindicam a herança confederada esclavagista também foram para a rua defender os símbolos confederados. 

Por exemplo, entre 11 e 12 de agosto de 2017, o comício da Unite the Right (União da Direita) teve lugar em Charlottesville, na Virgínia, reunindo algumas dezenas de neonazistas, neoconfederados e membros da Ku Klux Klan. O suposto motivo da reunião foi a decisão do município de remover a estátua de Robert E. Lee, proprietário de escravos e general que comandou o Exército Confederado durante a Guerra Civil Americana.

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Estátua equestre do general Robert E. Lee, em Charlottesville, Virgínia (EUA) | Fotografia da autora

Na noite de 11 de agosto, impedidos de se reunir no agora Parque da Emancipação, onde a estátua de Lee tinha sido coberta enquanto se aguardava por uma decisão do conselho municipal sobre a sua remoção, centenas de extremistas marcharam pelo campus da Universidade da Virgínia. Carregando tochas, o grupo caminhou livremente pela rotunda da universidade e reuniu-se em torno da estátua de Jefferson cantando slogans antissemitas e racistas, como “sangue e solo” e “os judeus não nos substituirão”.

No dia seguinte, os participantes de extrema-direita, armados com armas de assalto, escudos e bastões ,foram recebidos por contra-manifestantes. Um terrorista branco conduziu o seu carro em alta velocidade contra os contramanifestantes, matando Heather D. Heyer, uma jovem de 32 anos de Charlottesville, e deixando dezenas de feridos.

Nos dois dias seguintes a essa tragédia, o movimento para derrubar os monumentos confederados ganhou nova força. Nalgumas cidades, como em Durham, na Carolina do Norte, cidadãos derrubaram uma estátua que representava um soldado confederado. Seguindo esse exemplo, várias cidades decidiram remover os seus monumentos confederados, às vezes durante a noite, para evitar tumultos. Ainda assim, em 2019 quase 1500 símbolos públicos confederados permaneciam de pé nos Estados Unidos, incluindo aproximadamente 780 monumentos. Depois da morte de George Floyd, em 2020, mais “símbolos de ódio” foram removidos do espaço público em comparação com os quatro anos anteriores combinados.

Apesar de diferentes contextos, muitas décadas após o fim do tráfico de escravos e da escravatura, os antigos portos esclavagistas continuaram a promover ativamente a memória de mercadores de escravos, senhores de escravos e atores sociais que apoiaram a escravatura como sendo benfeitores e filantropos, mantendo monumentos em sua homenagem. Mas essa perspetiva hegemónica sempre foi contestada.

A disputa da memória

Tomemos o exemplo da Grã-Bretanha. A nação transportou o segundo maior número de africanos escravizados para as Américas, depois de Portugal e Brasil. A Grã-Bretanha também foi a maior potência colonial europeia com tentáculos em África, Ásia e Américas.

Durante a era do comércio atlântico de escravizados, a cidade de Bristol foi o segundo maior porto esclavagista britânico. Quase dois mil navios negreiros partiram de Bristol para o continente africano, trazendo de volta para as Américas mais de meio milhão de africanos. Como outros portos esclavagistas, a riqueza de Bristol foi construída à custa de africanos escravizados trazidos para as colônias britânicas no Caribe, onde as elites de Bristol possuíam plantações de açúcar e milhares de homens, mulheres e crianças escravizadas.

Os vestígios desse passado de riqueza gerada pelo tráfico de escravos são visíveis em casas suntuosas, como a de John Pinney, dono de várias fazendas e escravizados em Nevis, uma ilha caribenha. Ora, como nas Américas e noutras cidades europeias, a luta para reconhecer o passado esclavagista de Bristol está ligada às desigualdades raciais e ao persistente racismo antinegro, que teimam em persistir no Reino Unido e na cidade de Bristol. A violência policial contra cidadãos racializados também fez parte desse contexto.

Em 1980, a polícia invadiu um café cujos clientes eram na sua maioria moradores negros de ascendência caribenha. O ataque provocou uma revolta que deixou vários moradores negros feridos. Desde então, cidadãos, ativistas negros e académicos começaram a debater as ligações entre o passado esclavagista de Bristol, a escravatura caribenha e a persistência do racismo. E, na década de 1990, houve esforços para tornar visível no espaço público o passado desconfortável e doloroso de Bristol.

Graças a cidadãos e ativistas negros que organizaram reuniões e pressionaram as autoridades locais, surgiram várias iniciativas destacando o passado de tráfico de escravos de Bristol. No entanto, por toda a cidade, edifícios, ruas e escolas levavam o nome de Edward Colston. Nascido em Bristol no século XVII, Colston tornou-se membro da corte de assistentes da Royal African Company (Companhia Real Africana) responsável pelo transporte de mais de meio milhão de cativos africanos para as Américas.

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Estátua de Edward Colston, mercador, comerciante de pessoas escravizadas e deputado do parlamento inglês | Fotografia da autora

Ao ser rico, Colston contribuiu para várias causas de caridade na cidade, passando a ser considerado o pai de Bristol. Uma estátua de bronze em sua homenagem foi inaugurada em Bristol em 1895, mais de um século após a sua morte. Apesar das evidências do seu envolvimento com o infame comércio e das inúmeras campanhas para remover o monumento em sua homenagem (ou de o contextualizar com a adição de uma placa), nenhum movimento ou grupo alcançou um resultado concreto.

Em junho de 2020, depois do assassinato de George Floyd e na senda dos protestos antirracistas, ativistas britânicos finalmente conseguiram derrubar o monumento deitando-o a um canal do rio Avon. Alguns dias depois do derrube, a estátua foi retirada do rio. O município de Bristol preservou a estátua e os grafites pintados no monumento e decidiu que seria exposto num dos museus da cidade. Recomendou também que obras de arte temporárias fossem colocadas no pedestal da antiga estátua. 

Os protestos contra o racismo antinegro aceleraram o processo de reconhecimento do passado doloroso associado ao tráfico atlântico de escravos, escravatura e colonialismo das cidades europeias e americanas. Temendo mais protestos contra estátuas que promovem a supremacia branca, vários municípios apressaram-se a remover monumentos contenciosos antes que os manifestantes os derrubassem. 

Por exemplo, em 1813, uma estátua de Robert Milligan, um comerciante de escravos britânico, fazendeiro e proprietário de cerca de 500 indivíduos escravizados, foi colocada em frente de um antigo armazém de açúcar das West India Docks, em Canary Wharf, onde é hoje o Museu das Docas de Londres. Apesar de todas as atividades comemorativas do bicentenário da abolição do tráfico britânico de escravizados em 2007, o museu e o município nunca puseram uma placa no pedestal desse monumento para informar aos visitantes que Milligan era um comerciante de escravos. 

Mas quando os protestos evoluíram e os ativistas pintaram a estátua de Milligan, a cidade de Londres agiu rápido: reconhecendo que as estátuas em homenagem aos traficantes de escravos deveriam ser removidas do espaço público da cidade, o prefeito, Sadiq Khan, ordenou finalmente a remoção da estátua de Milligan. 

Em França, assim como no Reino Unido, as exigências pela memória da escravatura na arena pública também têm sido associadas à luta contra o racismo, especialmente à violência imposta a homens e mulheres negros que se associam à história da escravatura e do colonialismo frannceses. Entre várias reivindicações, cidadãos negros têm exigido o reconhecimento oficial do papel central da escravatura e do tráfico atlântico de escravos na construção de França.

A comemoração da escravatura em França destacava até à década de 1990 a abolição da escravatura (em 1848) e, principalmente, o papel desempenhado por Victor Schoelcher, abolicionista, político e jornalista francês. Mas os atores sociais negros organizados em várias associações, especialmente em Paris, Bordeaux e Nantes, apresentaram cada vez mais exigências para que se lembrasse a escravatura no espaço público e nos museus.

Esses esforços levaram à promulgação da Lei Taubira em 2001, reconhecendo a escravatura e o comércio de escravos como crimes contra a humanidade. Nas duas décadas que se seguiram à promulgação da lei, seguiram-se outras medidas: a criação de uma comissão nacional para a memória da escravatura, um dia nacional de comemoração e, mais recentemente, a formalização de uma fundação para a memória da escravatura. Outras medidas incluíram a criação de memoriais, exposições em museus e monumentos.

Lisboa aguarda a inauguração do seu memorial em homenagem às pessoas escravizadas. Essas lutas persistentes falam mais do presente do que do passado.

Em 2012, a cidade de Nantes (que acolheu o maior porto de comércio de escravos francês) inaugurou um memorial à abolição da escravatura, oficializando o reconhecimento da participação francesa no comércio atlântico de escravos e na escravatura. Pouco depois, o Museu da Aquitânia, em Bordeaux (o segundo maior porto negreiro francês) inaugurou exposições permanentes abordando a história da escravatura e o envolvimento da cidade no tráfico atlântico de escravos. Hoje, como resultado das pressões de organizações negras francesas, um memorial às vítimas da escravatura, incluindo uma parede de nomes, está a ser planeada para o Jardin des Tuileries, em Paris.

Assim como no Reino Unido, a onda de protestos antirracistas do verão de 2020 também chegou a França. Em Paris, os manifestantes fizeram algumas intervenções em monumentos públicos, como na estátua de Jean-Baptiste Colbert, autor do Code Noir. E, embora nenhuma estátua representando indivíduos pró-escravatura tenha sido desmantelada na França metropolitana, a estátua de Victor Schoelcher, na Martinica,foi derrubada em maio de 2020. Seguiu-se o derrube das estátuas de Marie Josephine de Beauharnais (decapitada desde 1991) e de Pierre Belain d'Esnambuc (o “Colombo” da Martinica).

Ativistas negros e outros grupos de homens e mulheres historicamente excluídos das sociedades inglesas e francesas, juntamente com aliados brancos, lideraram ações para se oporem à memória pública de atores históricos pró-escravatura. Individualmente representados ou organizados em associações e coligações sociais, esses cidadãos têm usado uma variedade de estratégias (manifestações, performances e obras de arte) para trazer à luz a história do comércio atlântico de escravos e da escravatura.

Ao contestar a memória pública de mercadores de escravos, proprietários de escravos e supremacistas brancos, esses atores sociais denunciam as estruturas persistentes que mantêm os indivíduos negros e outras minorias excluídos economica e socialmente em antigas sociedades esclavagistas. 

A luta desses atores sociais também encontra eco em Portugal, onde movimentos semelhantes têm emergido. Lisboa aguarda a inauguração do seu memorial em homenagem às pessoas escravizadas. Essas lutas persistentes falam mais do presente do que do passado. Mostram que enquanto o racismo e a supremacia branca permanecerem vivos, o passado doloroso da escravatura está fadado a ecoar no presente, fazendo com que as batalhas da memória pública da escravatura perdurem nos próximos anos.

Esse ensaio baseia-se no livro Slavery in the Age of Memory: Engaging the Past (Bloomsbury Academic, 2020), de Ana Lucia Araujo, sem edição em português. É publicado em antecipação à conferência Descentrar o império, reparar o futuro, primeira sessão do ciclo Impérios, que terá lugar na Culturgest, no dia 4 de novembro.