Professora de Política na Universidade de Bath. Autora de Beyond Pro-Life and Pro-Choice: The Changing Politics of Abortion in Britain.

Professor de Política na Universidade de Bath. Coautor do livro Reactionary Democracy: How Racism and the Populist Far Right Became Mainstream.

Como o pânico moral transfóbico alimenta políticas autoritárias

No Reino Unido, os pânicos morais sobre a “ameaça” trans são muitas vezes difundidos por pessoas que se dizem liberais. Mas a sua transfobia difunde as mesmas mensagens reacionárias usadas há muito para demonizar outras minorias.

Ensaio
25 Maio 2023

O terrível assassinato de Brianna Ghey, em fevereiro, pôs uma vez mais a transfobia nas manchetes dos jornais britânicos. A polícia está a investigar a sua morte como potencial crime de ódio. Brianna, 16 anos, fatalmente esfaqueada por dois adolescentes num parque em Warrington, no condado de Cheshire, tornou-se conhecida no TikTok, onde falava sobre o bullying que sofria por ser trans. O seu assassinato moveu milhares de pessoas que participaram em mais de 50 vigílias por todo o país.

A violência contra pessoas trans, no Reino Unido, não é, infelizmente, uma coisa rara. Em 2022, a Vice noticiou que “o número de crimes de ódio de cariz homofóbico duplicou nos últimos cinco anos, enquanto o número de crimes de ódio de cariz transfóbico denunciados às autoridades triplicou”.

É essencial ver estes actos extremistas como parte de um ambiente discursivo mais amplo, que junta actores convencionais e quotidianos, com outros da direita radical e da extrema-direita. O foco desproporcional e negativo estabelecido contra as pessoas trans em todos os meios de comunicação está bem documentado.

Num relatório de 2020, a Independent Press Strandards Organization [regulador independente de imprensa periódica do Reino Unido] constatou que houve um aumento de 400% no número de peças sobre “questões trans” entre 2014 e 2019. Muitas figuras do mainstream mediático têm usado as suas enormes plataformas para empurrar narrativas anti-trans para as discussões quotidianas, impulsionando ativistas de extrema-direita.

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Isto não quer dizer que todas essas figuras partilhem necessariamente um projeto político mais alargado. Ainda que tenham existido exemplos claros de alianças com movimentos reacionários, muitos dos que trazem a transfobia para o debate público alegam estar a opor-se a outras articulações mais iliberais.

Mas não são só as intenções individuais que contam. O discurso anti-trans que apoiam está inserido num movimento reacionário global. Assim, acabam por reforçar noções de extrema-direita e legitimam convencionalmente qualquer forma de exclusão. Explicaremos algumas facetas chave desta concertação e como a tranfobia convencional, liberal, é um perigo não só para as pessoas trans, mas também para qualquer comunidade ameaçada pela ampla ressurgência dos discursos reacionários.

É importante clarificar o que queremos dizer com “transfobia”. O termo refere-se à produção de políticas e de um discurso essencialista em relação a pessoas trans, de forma a torná-las num grupo homogéneo incompatível com a sociedade “normal”. De facto, no atual pânico moral, as pessoas trans são tidas como uma ameaça a essa dita sociedade, à qual supostamente não pertencem.

Escolhemos o termo “transfobia” porque outros, como TERF [“trans-exclusionary radical feminist”; feminista radical trans-excludente] ou “gender critical”, poderiam dar, inadvertidamente, alguma legitimidade a esses movimentos e ideias. A retórica transfóbica pode usar articulações mais ou menos liberais, como apresentamos abaixo. Mas também falaremos de uma transfobia “organizada”, porque esta retórica não se expressa através de acontecimentos isolados e aleatórios. Pelo contrário, hoje em dia está a ser gerada e promovida por um movimento social altamente organizado.

Pânicos morais e epifanias transfóbicas

Nos anos 1970, Stuart Hall, Charles Critcher, Tony Jefferson, John Clarke e Brian Roberts publicaram o trabalho Policing the Crisis, no qual caracterizam o pânico moral sobre assaltos, no Reino Unido, nos seguintes termos:

“Quando a reação oficial a uma pessoa, a um grupo de pessoas, ou uma série de eventos é completamente desproporcional à ameaça real apresentada, quando 'especialistas', na forma de chefes de polícia, juízes, políticos, e editores entendem a ameaça em termos idênticos, e parecem falar 'a uma só voz' de índices, diagnósticos, prognósticos e soluções, quando as representações mediáticas enfatizam universalmente aumentos súbitos e dramáticos (de números ou eventos) e 'novidades', acima e além daquilo que uma avaliação sóbria e realista poderia sustentar, então acreditamos que é apropriado falar do início de um pânico moral.”

Esta citação, de há quase meio século, é extremamente presciente quando falamos do pânico trans. Como Shon Faye observa em The Transgender Issue, o pânico moral anti-trans tem-se sustentado no paradoxo de que “os direitos de uma pequena minoria da população que tem muito pouco poder institucional são, de alguma maneira, um perigo para a maioria”. Um recente texto de opinião no Guardian é particularmente ilustrativo disto, sugerindo que os homens do partido Trabalhista (homens gay, muitas vezes) que defendem os direitos das pessoas trans são uma ameaça maior que o infame e violento misógino Andrew Tate.

Isso também se relaciona com a natureza memética da maneira como a ameaça da “ideologia trans” e de um “contágio social” se discute na política e nos círculos mediáticos. É comum, por exemplo, vermos histórias dramáticas sobre um aumento de 3000%, ou mesmo 4000%, de entradas em serviços de identidade de género para jovens, quando estes números se referem a um aumento de poucas dúzias de entradas por ano até à estabilização no número médio esperado, se as estimativas que temos sobre o tamanho da população trans estiverem corretas.

O discurso anti-trans que os liberais apoiam está inserido num movimento reacionário global. Assim, acabam por reforçar noções de extrema-direita e legitimam convencionalmente qualquer forma de exclusão.

Há também o constante martelar da ideia de que a existência trans é perigosa e nova, apesar dos inúmeros casos documentados de incongruência de género nos últimos milénios e de décadas de cirurgias de confirmação e afirmação de género e uso de tratamentos hormonais para transição médica — incluindo em crianças. Finalmente, há muita desinformação plasmada em manchetes sobre destransições, ignorando que o seu número é muito baixo em comparação com outros procedimentos de saúde e que muitos desses casos brotam de pressões sociais e de um clima generalizado de transfobia.

Para Hall et al., um elemento chave dos pânicos morais é a noção de “limite ultrapasado” — a ideia de que o grupo “problemático” irá inevitavelmente transgredir um limite legal ou de violência. Os limites cruzados também são fulcrais no pânico trans. A transfobia organizada trabalha muito com imagens de pessoas trans que, alegadamente, violam os limites da violência permitida — muitas vezes ditos como os limites da violência contra as mulheres. Esses limite são poderosos o suficiente para serem invocados, coadunem-se ou não com a realidade. 

Por exemplo, apesar de o acesso de pessoas trans a espaços públicos divididos por género ser guiado legalmente pelo Equality Act de 2010, e não por legislação de reconhecimento de género, o medo de que mulheres trans ataquem mulheres cis nesses espaços gerou apoio suficiente para que o governo do Reino Unido tenha acabado por bloquear uma reforma significativa para o reconhecimento legal da identidade de género, a primeira dentro da sua jurisdição, então proposta pelo Parlamento escocês.

Os limites ultrapassados formam também outra parte da tradição do movimento organizado de transfobia, especificamente as próprias narrativas dos seus membros sobre a sua conversão à transfobia. Os participantes são encorajados a partilhar os seus momentos de “cúmulo trans”, ou seja, os eventos que alegam terem sido fulcrais na sua transformação de pessoas compreensivas para com as questões trans em cruzados anti-trans. Normalmente, afirmam que isso aconteceu depois de descobrirem que uma pessoa trans, ou “ativistas trans”, foram “demasiado longe”, ultrapassaram um limite.

A noção de “cúmulo trans” tem parecenças com as narrativas de conversão encontradas em círculos de extrema-direita, particularmente com as narrativas “red pill” [comprimido vermelho] das comunidades misóginas online (a “manosphere”). Tomar o comprimido vermelho significa ter uma epifania sobre os malefícios do feminismo ou sobre a naturalidade da dominação masculina, e sobre como “todas as mulheres são asssim” [“all women are like that”] — não é surpreendente que tais ideias apareçam ligadas a apologia ao racismo e à supremacia branca. Para Alexandra Minna Stern, esse ritual de passagem é catártico: torna “tomar o comprimido vermelho numa experiência comunal e ajuda a construir uma linguagem partilhada de transformação social”. Cremos que a partilha de momentos de “cúmulo trans” serve a mesma função para a transfobia organizada e leva à intensificação de processos de alterização e exclusão.

Um poderoso Outro?

Como acontece com os pânicos morais, os processos de alterização têm sido extensivamente estudados, desde o trabalho seminal de Simone de Beauvoir que observou como a mulher é construída como o Outro do homem, até à obra Orientalismo, de Edward Saïd. Tal como os pânicos morais, aplicam-se muito bem à transfobia organizada.

Para entender o processo de alterização, é fundamental perceber a sua natureza externa: como o Outro é definido pelo agente que pratica a alterização. A alterização é, portanto, um processo, através do qual representações hegemónicas são criadas e para o qual o poder é chave: como notaram Emily Harmer e Karen Lumsden, “ao definir-se contra o Outro, o grupo dominante silencia e desligitimiza o Outro”.

Como nos processos de racialização, por exemplo, aqueles que produzem, absorvem e reproduzem discursos anti-trans aplicam características quasi-imutáveis a comunidades diversas cujos membros partilham apenas a sua identidade trans. A transfobia não é sobre a pessoa trans ou a sua identidade, mas sobre como o transfóbico imprime uma identidade e características essencializadas a alguém que entendem como “outro”. Assim, não é incomum vermos mulheres cisgénero que não se enquadram no “ideal feminino” do transfóbico serem vítimas de abuso e assédio quando entram em espaços só para mulheres. Vemos isso, também, na difamação da atleta Caster Semenya enquanto mulher com níveis de testosterona naturalmente altos.

Há muita desinformação plasmada em manchetes sobre destransições, ignorando que o seu número é muito baixo em comparação com outros procedimentos de saúde e que muitos desses casos brotam de pressões sociais e de um clima generalizado de transfobia.

Portanto, é essencial olhar além das articulações mais extremas e iliberais de transfobia e prestar atenção especial àquelas aparentemente liberais. Quando falamos de transfobia, é comum ver as ações da extrema direita ou dos ultraconservadores serem denunciadas por vozes mais liberais, cujos ataques permanecem discursivos e veiculados em argumentos pseudoliberais e até mesmo progressistas. É comum, por exemplo, ver argumentos de má-fé semelhantes ao que Eduardo Bonilla-Silva chama a abordagem de “liberalismo abstrato” do racismo daltónico (“não vejo cor”), em que transfóbicos citam documentos legais para sugerir que pessoas trans já são iguais perante a lei e que, portanto, qualquer tentativa de garantir direitos iguais ou justiça as beneficiaria à custa dos outros.

Alguns também formulam os seus ataques numa defesa pseudo-progressista dos direitos das mulheres e da comunidade lésbica, gay e bissexual. Embora tendam a ser adotadas por figuras convencionais, e pelos centristas reacionários em particular, essas estratégias não são novas em círculos reacionários mais amplos. Por exemplo, Christine Delphy e Sara Farris deixaram clara que a exploração dos direitos das mulheres pela retórica política islamofóbica dominante dividiu o movimento feminista, enquanto Jasbir Puar destacou o uso do homonacionalismo para ajudar a justificar a “guerra ao terrorismo”.

Esta reviravolta aparentemente progressista está ligada a tentativas de criar uma aparência de apoio popular às articulações liberais da transfobia, semelhante à estratégia “populista” da extrema-direita mais reconstruída. Isso tornou-se a chave para disseminar e normalizar o discurso reacionário, uma vez que confere a ideias minoritárias e excludentes uma pátina de legitimidade democrática. De forma tipicamente reacionária, as pessoas trans, apesar de serem geralmente impedidas de aceder ao discurso público e amplamente discriminadas em toda a sociedade, são retratadas como grupo poderoso e homogéneo com acesso privilegiado ao poder.

Em aliança com outras elites, afirma-se que um “lóbi trans” conspira contra “o povo”, neste caso geralmente incorporado por uma compreensão generalizada e essencializada das “mulheres” (que é então alargada às formas tradicionais do patriarcado branco, hetero e cis pela extrema-direita). Numa abordagem que lembra discursos antissemitas e islamofóbicos, as fantasias reacionárias retratam as pessoas trans como minoria conspiratória com intenção nefasta de minar a saúde da sociedade de uma forma quase patológica. Novamente, portanto, não é surpresa que essas teorias da conspiração tenham eco em círculos antissemitas, e às vezes até se unam.

Como observa Sara Ahmed, os “feminismos conservadores do género fazem parte do não tão novo senso comum conservador, que reorganizou a 'realidade' como uma 'guerra contra os wokes', isto é, como um esforço para restaurar a identidade racial e de género e hierarquias demonizando aqueles que as questionam”. Tal como acontece com outras articulações da política reacionária, o poder da transfobia liberal dominante vem do que Ruth Pearce, Sonja Erikainen e Ben Vincent descreveram como um “feminismo 'respeitável' de classe média” — credenciais que exploram narrativas de progresso e, portanto, não poderiam de maneira alguma estar do lado reacionário.

Num golpe de magia, não é a transfobia que ameaça os direitos da comunidade trans, mas sim aqueles que se opõem à transfobia que ameaçam as mulheres (entendidas como um grupo monolítico, do qual só importam as experiências e expectativas das mulheres brancas de classe média). Como destaca Ahmed, “não se trata apenas de os termos 'sexo' e 'género' estarem a ser usados para deslegitimar pessoas trans; o projeto de inclusão trans pode ser enquadrado como exclusão feminista, como se pessoas trans estivessem a substituir-nos, substituindo os nossos termos pelos delas”.

Deriva autoritária

Para Hall e os seus coautores, o pânico moral é “uma das principais formas de consciência ideológica por meio da qual uma 'maioria silenciosa' é levada a apoiar de medidas cada vez mais coercivas por parte do Estado, e empresta a sua legitimidade a um exercício de controlo ‘maior do que o normal’”.

Ironicamente, o atual pânico moral em relação às pessoas trans é expressado em nome das mulheres, como se fossem ativistas trans e os seus aliados os opressores, da mesma forma que as mulheres foram acusadas quando lutavam pelos direitos das mulheres. Isto não é surpreendente: como observa Ahmed, “qualquer pessoa envolvida em tentar desafiar normas e convenções para fazer com que estas sejam mais complacentes, saberemos com que rapidez será julgado como se quisesse impor restrições à liberdade dos outros… Não é somente uma amarga ironia que táticas tão frequentemente usadas contra feministas estejam a ser usadas contra pessoas trans por feministas ‘gender critical’.”

Deve ser claro, para quem quer que esteja a prestar atenção, que a transfobia liberal mainstream procura mobilizar pessoas para servir de apoio a medidas coercivas, não as pessoas trans que exigem proteção e direitos iguais. Essas medidas coercivas podem ser testemunhadas em diversas áreas onde se procura regular e restringir as vidas de pessoas trans, principalmente na educação, na saúde, no reconhecimento da sua identidade pelo Estado e no desporto.

O atual pânico moral em relação às pessoas trans é expressado em nome das mulheres, como se fossem ativistas trans e os seus aliados os opressores, da mesma forma que as mulheres foram acusadas quando lutavam pelos direitos das mulheres.

Ninguém deve, portanto, ficar surpreendido com os crescentes vínculos entre transfóbicos convencionais e grupos de ultra e extrema-direita, a sua partilha de certas teorias da conspiração, ou em vê-los participar nas mesmas manifestações. Não é um bug, é uma característica. O apoio da extrema-direita à transfobia liberal dominante é um passo lógico, pois não se baseia apenas nos mesmos métodos de exclusão que advogam, mas também legitima muitos dos próprios temas de discussão da direita e abre alas a novos processos de exclusão, incluindo à eugenia.

Críticas como a nossa costumam ser caracterizadas como “silenciadoras”. Mas esse é um poder que não temos – e grande parte dos media aceitou a desinformação transfóbica, independentemente de todas as evidências. Também não negam a experiência individual e pessoal — na maioria das vezes, é a experiência trans que tem o seu espaço fechado pela transfobia dominante. Da mesma forma, o nosso objetivo não é falar em nome de pessoas trans, mas desenvolver a nossa investigação para deixar claros os perigos de discursos essencializantes e excludentes – não apenas para pessoas trans, mas para todas as comunidades ameaçadas pelo crescente movimento reacionário.

Como investigações recentes mostraram, os avanços em relação à aceitação das comunidades LGBTQIA+ permanecem frágeis e os ataques a algumas delas, justificados por agentes poderosos no discurso público, correm o risco de precipitar ameaças sobre todas. Como Shon Faye argumenta poderosamente, “a justiça trans é justiça para todos” – e, por extensão, a exclusão de um deve ser sentida e combatida como a exclusão de todos.

Artigo originalmente publicado na Jacobin Magazine.