Licenciado e mestrando em Sociologia no ISCTE-IUL, onde investiga o fenómeno da gentrificação. Ex-investigador auxiliar do DINÂMIA'CET-ISCTE.

Como gentrificar um Estado

O problema da habitação em Portugal não nasceu agora, tem raízes históricas muito anteriores ao boom dos créditos bonificados e da construção imobiliária. O Estado português tem sido um instrumento para a financeirização do mercado de habitação e as suas políticas contribuído para a gentrificação.

Ensaio
24 Novembro 2022

Falar de gentrificação nunca é fácil no espaço político. Trata-se do processo no qual a produção e apropriação do espaço urbano passa a ser direcionado para classes médias e altas. Com a normalização do discurso fundamentalista de mercado, é fácil incorrer no erro de achar que a crise atual da habitação e os preços predatórios da última década se devem de alguma forma à carga fiscal. Não é assim. 

A verdade é que Lisboa foi a cidade europeia onde as rendas mais aumentaram entre 2013 e 2018. É a única onde os valores médios de renda duplicaram, o que não pode ser explicado pela taxa de IMI: esta desceu dos 0,7% para os 0,3% entre 2003 e 2021

Mesmo a alteração à lei do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) aplicada em 2019, chamada por alguns de “atentado ao imobiliário”, precede o período referente ao relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre o papel do arrendamento acessível na recuperação económica europeia. Este problema não é recente e uma análise coerente aponta as causas mais evidentes: o percurso das políticas públicas de habitação e as reformas ao regime de arrendamento, que surgiram como tentativa para remediar o problema criado nas décadas de 1980 e 1990.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Uma verdade incómoda para os poderes políticos em Portugal está precisamente no quão pouco o Estado português gastou e gasta na habitação pública em comparação com outros países europeus. Em Portugal, apenas 2% do parque habitacional é destinado a habitação social, ao passo que a média europeia se situa nos 7%. Mas vamos por partes.

O problema da habitação em Portugal remonta, no mínimo, à época da I República, fundada em 1910. Já então se propagavam pelos centros urbanos os chamados “bairros de lata”, o que foi alvo de várias disputas populares pelos sindicatos e comissões de moradores da época. Daí que tenham sido, ainda durante a I República, desenhados projectos para os bairros do Arco do Cego e da Ajuda, em Lisboa. Curiosamente, dada a realidade governativa, estes projectos foram elaborados durante o regime de Sidónio Pais, ainda que só tenham vindo a ser concluídos durante a ditadura de António de Oliveira Salazar em 1935 e 1934, respectivamente.

É certo que durante o Estado Novo houve alguns avanços nesta área, mas sempre com o pendor classista na selectividade do acesso a habitações construídas pelo Estado. Visavam essencialmente o mundo rural, uma das grandes bases de apoio do regime. Exemplo disso foi o programa das Colónias Agrícolas (1936-1960), em benefício dos funcionários públicos. 

Criou-se ainda o programa das “Casas Económicas” (1933). Um dos grandes avanços deu-se com  regime de propriedade resolúvel, que previa a venda progressiva da propriedade ao chefe de família dos habitantes. Mas, como era marca do controlo político-social que a ditadura pretendia exercer, estava previsto que este regime pudesse ser revogado devido a “mau comportamento moral ou social” de um membro do agregado familiar.


Em Portugal, apenas 2% do parque habitacional é destinado a habitação social, ao passo que a média europeia se situa nos 7%.

O problema da habitação foi sendo sistematicamente ignorado e nem mesmo as cheias de 1967, que causaram 700 mortes e a destruição de 20 mil casas, “acordaram” o regime autoritário. Salazar tudo fez para censurar a informação relativa ao desastre humanitário que se alastrou na Área Metropolitana de Lisboa. As cheias foram causadas pela falta de infraestrutura adequada.

Dois anos depois do desastre, e numa tentativa final de solução destes problemas, nasceu o Fundo de Fomento de Habitação (FFH) com o objetivo de resolver a questão dos bairros clandestinos. O grande sucesso deste programa passou pela centralização das competências relativas às políticas de habitação e urbanismo que até então estavam dispersas entre vários ministérios. 

O FFH foi depois transportado para o pós-25 de Abril de 1974, sendo os seus moldes de financiamento essencialmente os mesmos, divididos entre programas de promoção directa e indirecta. Ou seja, programas em que o Estado agia diretamente construindo habitações para as populações e desenvolvendo programas onde financiava o sector privado e, mais tarde, comissões de moradores.

A Madrugada de Abril e a Tarde de Novembro

Entre 1972 e 2012 a despesa média do Estado em habitação não ultrapassou os 1,5% da despesa pública total. O grande período de excepção, além do Programa Especial de Realojamento (PER) dos anos 1990, é precisamente o período imediatamente a seguir ao 25 de Abril de 1974. Foi um momento de excepção na atitude da autoridade governamental portuguesa.

É certo que o período revolucionário foi de excepção noutra componente: uma onda de movimentos espontâneos criados nas bases populares sob a forma de comissões de moradores, ocupações de prédios devolutos, ocupações de empresas, etc. O exemplo mais inspirador terá sido provavelmente o caso do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), um organismo estatal descentralizado que operava num regime de proximidade com as comissões de moradores. Tinha como intuito a construção de novas habitações para estas populações. E para isso juntou as populações às camadas intelectuais de áreas como a arquitectura (em que estiveram envolvidos Nuno Portas e Nuno Teotónio Pereira, por exemplo) e o urbanismo, tão negligenciados pela ditadura. Ainda assim, o ano onde o valor gasto pelo Estado na habitação atingiu recordes face à totalidade da despesa pública foi em 1977, quando representou 7%.

Ainda assim, uma vez iniciada a contra-revolução do 25 de Novembro de 1975, as forças centristas e de direita rapidamente atacaram a democracia de base (a pouca) que se tinha criado durante o processo revolucionário, sendo o SAAL extinto ainda em 1976. Foi também nesse ano que se criou o agora célebre regime de créditos bonificados (RCB), concedido aos cidadãos tendo em vista a aquisição de casa própria. 

O problema da habitação foi sendo sistematicamente ignorado e nem mesmo as cheias de 1967, que causaram 700 mortes e a destruição de 20 mil casas, “acordaram” o regime autoritário do Estado Novo.

Estavam reunidas as condições para o início da ofensiva neoliberal sobre a égide de “responsabilidade fiscal” das autarquias. Um dos golpes mais duros nesse sentido foi a transferência, em 1983, das competências de habitação pública do Estado para as autarquias. Esta questão não foi bem recebida, já que as autoridades locais não dispunham de fundos ou sequer recursos humanos adequados para a tarefa. Esta situação gerou uma espécie de limbo burocrático durante cerca de uma década, onde disputas entre autarquias e a Administração Central criaram uma inércia relativamente à habitação social. Esta inércia só foi “resolvida” – de forma extremamente incompetente e insuficiente, diga-se – em 1993 com a criação do PER.

Também na década de 1980 foi criada a Comissão Liquidatária do FFH. Tinha o objectivo de liquidar dívidas contraídas pelo Estado nos seus empréstimos às autarquias e comissões de moradores, entre outros. Fazia parte do seu pelouro atribuir igualmente novos empréstimos, tendo em vista o estímulo do sector privado, assim como a gestão do parque habitacional público herdado do tempo do Estado Novo e os construídos já em democracia, entre 1974 e 1977.

Após o falhanço total desta comissão, a entidade acabou extinta e criou-se o Fundo de Apoio ao Investimento Habitacional (1983), que passou a estar incorporado no Ministério das Finanças e que se limitou a agir como financiador de projetos de construção de habitações. O Estado deixou de os promover diretamente. O neoliberalismo nas lógicas de governação na habitação portuguesa tinha chegado, e para ficar. 

Começou também o processo de financeirização da economia portuguesa, processo descrito de forma sublime por João Rodrigues, Ana Cordeiro Santos e Nuno Teles no seu livro de 2016, A financeirização do capitalismo em Portugal. Depois veio a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), antecessora da União Europeia, e, mais tarde, ao Euro.

De resto, entre 1987 e 2011, o Estado português gastou 9,6 mil milhões de euros em políticas de habitação. Uns meros 14,1% foram direccionados para programas de realojamento, 2% para programas de promoção directa do Estado que não entraram na categoria de realojamento e 73,3% para bonificações de juros no crédito à habitação - o equivalente a sete mil milhões de euros. 

Pelo meio tivemos o maior empreendimento público de construção de habitação pública através do Programa Especial de Realojamento (PER), um fracasso por várias razões. Não obstante, melhorou substancialmente as condições de vida de milhares de pessoas ao desenhar a construção de 34 mil fogos.

Os fundos de investimento imobiliários passaram da detenção de activos correspondentes a 2 mil milhões de euros em 1997 para 12 mil milhões de euros em 2013.

O contexto de incompetência e negligência na criação e implementação do PER ainda é mais notório quando percebemos que foi necessária uma viagem de Mário Soares, então Presidente da República, aos bairros clandestinos na zona de Lisboa para a opinião pública despertar para o flagelo. Estava-se em 1993 e estes bairros ditos clandestinos existiam desde a década de 1960. Ainda assim, o PER teve uma lógica demasiado territorial, pelo que faltou em vários momentos uma real coordenação entre os vários municípios. Daí que alguns bairros tenham ficado num limbo burocrático, divididos por linhas divisórias de conselhos.

É também neste período que o acesso ao crédito dispara, e que o processo de financeirização da economia entra no seu estágio final. Devido a uma série de fatores internacionais e internos, o acesso ao crédito fica particularmente barato e multiplicam-se as suas concessões. Basta vermos que em 2013 os empréstimos à habitação representavam 80% do valor total da dívida pública portuguesa. Ou que a dívida geral das famílias portuguesas passou de 39% do seu rendimento médio em 1995 para 120% em 2006. O processo de financeirização da economia portuguesa na esfera da habitação teve a mão do Estado português através das suas políticas públicas de estímulo à aquisição de casa própria, com recurso a crédito.

Em 2002, durante o governo do PSD de José Manuel Durão Barroso, com Manuela Ferreira Leite à frente da pasta das Finanças, o regime de crédito bonificado foi extinto. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), foram construídos mais de 1,6 milhões de fogos em Portugal entre 1974 e 2002, sendo que uns estimados 207 mil tiveram financiamento público – não estão incluídos os fogos que receberam financiamento através dos créditos bonificados –, representando 12,5% do número total de fogos.

Segundo um relatório da Secretaria de Estado da Habitação, entre 1992 e 2002 o Ministério das Finanças gastou: 811 milhões de euros no apoio ao parque público para arrendamento; 412 milhões no apoio ao arrendamento jovem; 336 milhões  na reabilitação; 3 mil milhões  de euros em bonificações de juros e 2, 8 mil milhões em deduções fiscais, totalizando 7,5 mil milhões de euros. É possível ainda concluir que os principais beneficiários deste período (1974-2002) foram as classes médias, sendo que em “2001, 50% das famílias portuguesas tinham um rendimento anual inferior a 10 000 euros, o que na prática lhes impossibilitava o acesso ao mercado imobiliário”.

O resultado foi mais um agravamento na aceleração do processo de gentrificação crescente, sendo que o RCB encorajava o sobre investimento das famílias na habitação, aumentando exponencialmente os preços das casas, uma vez que subsidiava a especulação imobiliária. Nota-se ainda um efeito redistributivo negativo.

Além das classes médias e médias altas, o principal beneficiário destas políticas de concessão de créditos foi precisamente o sector bancário português. Ainda assim, os benefícios da banca não se limitaram ao crescente endividamento das famílias portuguesas, beneficiou também dos empréstimos concedidos ao sector imobiliário e de construção: foi uma área predileta de investimento por parte da banca nacional, principalmente devido ao contexto internacional. 

Os fundos de investimento imobiliários passaram da detenção de activos correspondentes a 2 mil milhões de euros em 1997 para 12 mil milhões de euros em 2013. Em 2002 foi criado o regime fiscal especial destes fundos, dando-lhes uma série de isenções fiscais. A título de exemplo, só em 2004 a totalidade destas isenções representaram 33% dos retornos deste sector. Mais uma vez, é evidente o papel do Estado na criação de novos instrumentos de financeirização do mercado de habitação português. O valor capitalizado destes fundos não foi particularmente afectado pela crise de 2008-09, tendo havido desde esse momento um crescimento do peso da habitação. 

De notar que os fundos destinados ao arrendamento são residuais. Este aumento pode ser explicado por dois factores: 1) o preço da habitação parece ter resistido melhor à crise generalizada, apresentando-se como activo seguro; 2) a íntima relação destes fundos com a banca parece ter servido para escoar ativos imobiliários que começou a acumular por causa da crise. Os maiores fundos imobiliários e com maiores quotas de mercado pertenciam em 2021 a alguns dos maiores bancos portugueses: Square Asset Management (Crédito Agrícola, 11,8%), Interfundos (BCP, 11,7%) Caixa Gestão de activos (CGD, 9,1%), BPI Gestão de Activos (6,1%), GNB Real Estate (6,1%).

Esta hipótese é sustentada quando analisadas as discrepâncias entre o valor do mercado e os valores contabilísticos destes fundos. Não sendo geral a todos os centros urbanos, os valores contabilizados em 2015 em Lisboa, Porto e Sintra estão claramente acima do valor de mercado: 8%, 27% e 12%, respectivamente. Eram claros instrumentos de especulação imobiliária.

Resolver um problema com outro ainda maior

A partir da década de 1960, o mercado de arrendamento perdeu progressivamente preponderância perante o mercado imobiliário de casa própria. 

Os incentivos de aquisição de casa própria impediram uma real liberalização, já que os valores médios mensais de aquisição de casa própria estavam nos 400 euros, enquanto o valor médio dos novos contratos de arrendamento rondavam os 650 euros, mesmo com as alterações do Regime de Arrendamento Urbano de 1990. Portanto, mesmo nas pretensas reformas ao mercado de arrendamento, havia um incentivo estrutural ao endividamento das famílias.

Reconhecida esta realidade, rapidamente se procederam a grandes alterações estruturais ao mercado de arrendamento. Três pacotes legislativos revelam-se essenciais para se compreender o estado actual do mercado de arrendamento nos centros metropolitanos portugueses: 

- O Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados (RJOPA), criado em 2006 (DL nº 157/2006) e rectificado em 2009, 2012, 2014, 2017 e 2019;

- O Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), criado em 2006 (DL 6/2006) e rectificado em 2009, 2012, 2014, 2017 e 2019;

- O Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU) criado em 2009 (DL 307/2009) e rectificado em 2012, 2014, 2017 e 2019.

​​A grande intenção do RJOPA era combater a degradação do edificado urbano que se veio a agravar ao longo do século XX, especialmente nos centros históricos. Não deixa de ser engraçado ler os preâmbulos deste conjunto de leis, onde podemos encontrar afirmações como esta: “Possibilitar a recuperação dos centros históricos, reabilitando em lugar de construir de novo, é objectivo a prosseguir com empenho, devendo o direito de aquisição do locado que este decreto-lei regula ser visto a esta luz, e não somente como um modo de composição do conflito entre as partes(!)”. Estas palavras ecoam o preâmbulo do Regime de Arrendamento Urbano (RAU) de 1990, aprovado pelo governo de Cavaco Silva.

O Decreto-lei nº 157/2006 aprovava o regime jurídico aplicável à “denúncia e suspensão do contrato de arrendamento para demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos” e à “realização de obras coercivas pelos municípios”. 

A grande prescrição foi a criação de um mecanismo que permitisse ao senhorio rescindir o contrato de arrendamento ao realizar qualquer tipo de obras que obrigassem à desocupação da habitação. Ao invés, ficaria obrigado a indemnizar o inquilino com um valor nunca inferior a dois anos de renda ou a garantir em alternativa o realojamento do inquilino durante cinco anos no mesmo concelho e em condições análogas. Ficava ainda previsto que na falta de acordo entre as partes se aplicaria a indemnização.

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Tanta gente sem casa

Os casos protegidos deste pretexto limitavam-se a agregados familiares com um Rendimento Anual Bruto Corrigido (RABC) inferior a cinco Retribuições Mínimas Nacionais Anuais (RMNA), a idosos com mais de 65 anos e a pessoas com incapacidade motora superior a 60%. Em último lugar, coloca este tipo de obras ao abrigo do regime de actualização de rendas do NRAU.

As duas primeiras grandes alterações surgiram em 2012 e 2014: a primeira reduziu a indemnização para um valor correspondente a um ano de renda e reduziu a alternativa de realojamento de cinco para dois anos; a segunda alterou o tipo de obras, tornando-se agora pretexto para rescindir contrato quaisquer “obras de alteração, ampliação ou reconstrução”, o que faz com que praticamente qualquer tipo de obra seja pretexto para rescisão.

Peço agora uma atenção especial à cronologia: o governo do Partido Socialista de 2015-2017 não achou por bem alterar o que quer que fosse neste regime legal. As primeiras alterações surgiram a 14 de Junho de 2017, nos Decretos-Lei nº 42 e 43/2017. O primeiro limitou-se a criar um regime de protecção a lojas com um comprovado “alto património cultural” referente a casos de denúncia de contrato e actualização de rendas. O segundo limita-se a alterar a indemnização que o senhorio deve ao arrendatário repondo o valor de duas rendas anuais, acrescentando agora que esse valor não pode ser inferior a 1/15 do valor tributário patrimonial do locado ao mesmo tempo que aumenta o período da opção de realojamento de dois anos para três anos.

A última alteração a este regime até à data surgiu no Decreto-Lei nº 13/2019, o qual altera de forma particularmente incompreensível o regime, dado o contexto do documento “Para uma Nova Geração de Políticas de Habitação” de 2017. No artigo referente à indemnização ou garantia de realojamento por parte do senhorio, afirma-se agora que na falta de acordo entre as partes num prazo de 60 dias após a denúncia, já não se aplica a indemnização e passa a haver realojamento durante três anos. A única excepção criada nestes casos é somente a do arrendamento para fins não habitacionais, no qual se aplica a indemnização na falta de acordo entre as partes.

Passemos agora para o RJRU, criado pelo Decreto-Lei nº 307/2009. Este regime jurídico aplica-se então a obras em “áreas de reabilitação urbana” que são definidas enquanto tal pelos municípios, podendo essa delimitação ser proposta por uma entidade gestora e aprovada pelo município. Entre os objectivos da reabilitação urbana menciona-se o de “afirmar os valores patrimoniais, materiais e simbólicos como factores de identidade, diferenciação e competitividade urbana”. As operações de reabilitação urbana podem ser coordenadas por um município ou por uma empresa do sector empresarial local.

O artigo 12.º cria, discutivelmente, um preceito legal para o processo de turistificação constituir em si um pretexto para a reabilitação urbana. É que o documento refere os objectos das áreas de reabilitação urbana de centros históricos, com património cultural classificado ou em vias de classificação. Recordo que estávamos em 2009, antes do boom turístico. Como o bom gosto neoliberal manda, fica previsto no artigo 77º a possibilidade legal da entidade gestora poder participar em fundos de investimento imobiliários. E a sua única alteração de relevo mudou por completo o sentido jurídico deste regime: em 2012, definiu-se que este regime já não se limitava a vigorar em áreas de reabilitação urbana, mas sim a qualquer prédio que tenha sido construído há mais de 30 anos.

Por fim, teremos de olhar para o inevitável NRAU aprovado em 2006 pelo Decreto-Lei nº 06/2006. Os contratos de arrendamento urbano eram, antes deste decreto-lei, automaticamente renováveis, salvo quando uma das partes denunciava o contrato. A partir desse decreto-lei, ficou prevista a possibilidade de qualquer das partes se opor à renovação de livre vontade e sem qualquer tipo de pretexto legal. Antes, os contratos eram renovados nos mesmos termos do contrato em vigor, passando agora o prazo de renovação a ser sempre igual a um ano. O contrato passou a ter de ser efectuado por escrito apenas quando o seu período for superior a seis meses.

A possibilidade da actualização das rendas ficou prevista nos contratos de arrendamento. No caso de não ficar, a renda passou a poder ser actualizada anualmente, com a primeira actualização a poder ser exigida após um ano de contrato, comunicado pelo senhorio com uma antecedência de 30 dias no mínimo. A única forma de se opor a esta actualização é o arrendatário ter o RABC do agregado familiar inferior a 5 RMNA, idade superior a 65 anos ou incapacidade motora superior a 60%, sendo que aí fica sujeito a uma actualização faseada ao longo de dez anos. O senhorio pode rescindir o contrato de arrendamento quando o arrendatário violar as regras de “higiene, sossego e boa vizinhança”, utilização contrária aos “bons costumes” e também em caso de dívida superior a três meses de renda por parte do inquilino.

Lisboa tem atualmente 48 mil casas desocupadas.

Em 2012, a Lei Cristas mudava de forma ainda mais predatória este decreto-lei. O senhorio passou a poder rescindir contrato quando o inquilino tiver dois meses de renda em atraso ou se “constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato”. Proíbem-se os contratos a termo indefinido, sendo que na ausência da estipulação do prazo do contrato é considerado válido durante dois anos. Os contratos de arrendamento urbano deixam de ter um prazo mínimo legal, passando de cinco anos para a ausência dessa norma. Tentou-se criar uma norma onde o silêncio do arrendatário quanto à actualização de renda significaria o seu consentimento, entretanto declarada inconstitucional. Por fim, reduziu-se o prazo de faseamento na actualização de rendas nos casos protegidos por lei de dez anos para cinco anos.

Tal como no caso do RJOPE, o Governo do Partido Socialista só realizou alterações a este regime em 2017, através do Decreto-Lei nº 43/2017 que não fez grandes alterações, diga-se. Aumentou a protecção dos casos protegidos na actualização de rendas, aumentando o período de faseamento de cinco anos para oito anos e, no artigo 1083º do Código Civil, alterou-se a dívida sobre a qual o senhorio pode rescindir contrato de dois meses de renda para três.

As restantes alterações deram-se em 2019 e 2020: os decretos-lei 12/2019 proibiu o bullying imobiliário e o 13/2019 proibiu a discriminação no acesso ao arrendamento e repôs os prazos mínimos, sendo agora esse prazo de um ano. Já o decreto-lei 2/2020 voltou a aumentar o período de faseamento, repondo os dez anos iniciais (oito anos depois da alteração da Lei Cristas).

Onde está o problema?

É certo que as conclusões retiradas da análise a este histórico das políticas públicas dos sucessivos governos em Portugal dependerão em parte da ideologia perfilada por cada pessoa. Afinal, encontraremos pessoas que certamente olharão para casos como a lei do NRAU e dirão que isto estabelece um “equilíbrio de forças” entre senhorios e inquilinos. É o caso de uma considerável porção da nossa classe jurídica totalmente imbuída na ideologia “não-ideológica” da paz social, leia-se, colaboracionismo de classes.

Antes de avançar para um diagnóstico, gostaria de realçar um conjunto de questões. Nas últimas décadas tem vindo a aumentar a carência ao acesso à habitação em toda a Europa, mas com particular ênfase no caso português. Além do descontentamento, que pode ser mais ou menos real tendo em conta as percepções dos cidadãos, a verdade factual é que a carência habitacional em Portugal se encontra num momento histórico bastante idiossincrático. A dificuldade no acesso ao mercado de habitação extrapola as classes mais desfavorecidas, faz-se também sentir particularmente nas classes médias portuguesas nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. 

É de importância maior realçar que não se trata de uma carência de habitações em si, mas sim de carência no acesso às mesmas. Portugal apresentava em 2011 um rácio de 1,47 fogos por família, sendo que em 1981 este valor era de 1,16 (PORDATA, INE), portanto não se trata de um problema novo, mas sim de um que foi sendo agravado por uma multiplicidade de factores. Utilizando os números provisórios dos Censos de 2021, o rácio mantém-se.

Devia-se criar um rácio de parque habitacional, reduzido obviamente, que ditaria a quantidade de habitações que poderiam ser propriedade de fundos de investimento imobiliários, expropriando-se as que excedessem este número.

Lisboa encontra-se actualmente com 48 mil casas desocupadas. Olhando para os números relativos, existe uma correlação entre o número de Alojamentos Locais e o número de casas vazias por freguesia. A Câmara Municipal de Lisboa é proprietária de cerca de 2000 fogos devolutos, sendo que nos últimos anos se tem entretido a construir novos prédios para as chamadas “rendas acessíveis”. Como chegou a CML ao cúmulo de “sortear” vagas aos seus cidadãos, para terem acesso a arrendamento acessível nas suas cidades de origem? Seria certamente necessário um esforço intelectual considerável para explicar a alguém que não vivesse nesta distopia. 

Tentarei agora elencar um conjunto de soluções, cujo teor radical será progressivamente aumentado. Pretendo começar por prognósticos o mais consensuais possível, sabendo ainda assim que impossível numa sociedade como a portuguesa.

1.º — Se aceitarmos a premissa de que o mercado livre “funciona” – mesmo que não se qualifique o que significa “funcionar” - está neste momento claro que o Estado não dispõe de suficientes habitações para colocar no mercado a preços acessíveis. Em Lisboa, no mandato de Fernando Medina foram atribuídas cerca de 1000 habitações do tipo. É preciso um esforço redobrado para contrariar a tendência de Portugal nos últimos anos. Ao passo que países como a Áustria, Holanda ou Alemanha têm habitação social, propriedade do Estado e com rendas controladas, que chega aos dois dígitos em percentagem do parque habitacional total, em Portugal esse número não ultrapassa os 2%;

2.º — Na mesma linha de argumento, se aceitarmos a premissa de que o mercado livre é a melhor solução, o Estado terá de reforçar as parcerias público-privadas que tem vindo a desenvolver nos últimos quatro anos. Bastará lembrar, entre outros exemplos, que o antigo Hospital Militar da Estrela dará lugar a 84 fogos de habitação colocados no mercado a preços acessíveis.

3.º — Agora, abandonemos a premissa de que o mercado livre funciona. Infelizmente, como foi o propósito estabelecido, terei de pedir aos leitores alguma paciência para este discurso infestado pela realpolitik. Seria necessária uma alteração legislativa, começando em primeiro lugar pelo RJOPA. É certo que, num contexto capitalista de mercado, durante largos anos o Estado não só não quis solucionar o problema da degradação urbanística, como criou condições insustentáveis para os senhorios que o queriam fazer disporem de meios suficientes para tal. Mas o que aconteceu desde 2006 foi a inversão desta relação que protegia, discutivelmente lá está, em demasia os inquilinos face aos senhorios. Vejamos bem, até se poderia argumentar que este decreto-lei se aplica de forma minimamente equitativa se tivermos em conta um senhorio que dispõe de uma habitação extra, que lhe foi deixada por um descendente. O problema verifica-se, porém, quando temos em conta que este regime também se aplica a fundos de investimento imobiliários que não terão grandes problemas em sustentar indemnizações equivalentes a dois anos de renda aos inquilinos. 

Para começar com uma maior restrição ao tipo de obras que permitem aos senhorios rescindir contratos, poder-se-ia limitar a possibilidade de rescisões de contratos de arrendamento a casos que sejam especificamente de reabilitação urbana e apenas mediante a garantia de que o prédio ou fogo, após a obra de reabilitação, seja efectivamente disposto para arrendamento. Outra solução pode passar pelo ajuste da indemnização ao valor pós-obras.

4.º — Em relação ao NRAU, uma das questões que teria de ser imediatamente revista é a questão da duração mínima dos novos contratos ser de apenas um ano. Muitas outras alterações poderiam ser propostas mas esta norma é um dos principais motores da especulação imobiliária desenfreada.

5.º — Agora vamos sair da realpolitik. Uma das soluções, que não seria de todo radical na minha opinião, seria a de pôr em prática um sistema onde as indemnizações que os senhorios teriam de dar aos inquilinos depois da rescisão de contrato seriam ajustadas ao capital do qual o senhorio dispõe.

6.º — Outra solução seria a proibição imediata de novas licenças de Alojamento Local.

7.º — A criação de um rácio de parque habitacional, reduzido obviamente, que ditaria a quantidade de habitações que poderiam ser propriedade de fundos de investimento imobiliários, expropriando-se as que excedessem este número.

8.º — Expropriação imediata de prédios e fogos devolutos há mais de dois anos por parte do Estado central, não das autarquias, já que estas não disporiam de fundos para os reabilitar. Escusado será dizer que estas expropriações teriam de ter como propósito expresso a criação de fogos de arrendamento acessível e controlado.

Independentemente da opinião em relação a este tipo de soluções, é preciso ter em conta factos basilares. Os senhorios passaram, a partir de 2006, a poder não renovar o contrato de arrendamento sem qualquer tipo de motivo para além de não quererem renovar. A actualização do valor da renda passou a ser exigível durante a vigência do contrato, ao fim de um ano. Entre 2012 e 2019 não houve qualquer tipo de prazo mínimo para contratos de arrendamento urbano. 

Além disso, entre 2012 e 2017 os senhorios puderam legalmente rescindir contrato quando a dívida do arrendatário fosse igual a 2 meses de renda. A partir de 2012, a ausência de estipulação de um prazo no contrato escrito, estipulava o contrato durante dois anos e a partir de 2017 durante cinco anos. Entre 2012 e 2017, ao abrigo do RJOPA, os senhorios puderam rescindir contrato alegando a realização de qualquer obra que obrigasse à desocupação do locado mediante uma indemnização equivalente a apenas um ano de renda, sendo reposto o valor de dois anos de renda a partir de 2017. A partir de 2019, na ausência de acordo entre as partes neste tipo de rescisão, vigora o realojamento alternativo durante um período de três anos. 

Mesmo a suposta tentativa de mitigar a proliferação dos estabelecimentos de Alojamento Local por parte da Câmara Municipal de Lisboa, através do Aviso 17706-D/2019, onde se definem excepções para a atribuição de novas licenças que são na prática incentivos para a especulação imobiliária. Uma das excepções, a título de exemplo, aplica-se a prédios que estejam devolutos  há mais de três anos.

Tentar separar estes factos da realidade do estado actual do mercado de habitação português só pode vir de um esforço cínico ou ignorante.