Doutoranda em Ciência Política na Universidade do Sul da Dinamarca, onde é também professora de Economia Política e Políticas Urbanas. Faz investigação sobre relações intergrupais em bairros sociais da cidade do Porto. É também romancista, tendo vários livros publicados.

Cidades: um teste ao preconceito e uma lição de bondade

As cidades são, por excelência, espaços heterogéneos onde somos frequentemente confrontados com a diferença. Os encontros multiculturais do dia a dia tanto podem fomentar o preconceito ou a tolerância e as características espácio-temporais desempenham um papel determinante.

Ensaio
7 Abril 2022

A fábula “O rato do campo e o rato da cidade”, de Esopo, conta a história de um rato que, um dia, decide visitar o primo na cidade. A cidade começa por ser apresentada como um espaço dinâmico e emocionante, mas, ao deparar-se com os perigos citadinos, o rato do campo muda imediatamente de opinião e decide regressar à sua vida “feliz e tranquila”.

Tradicionalmente, a cidade e o campo são descritos como espaços opostos, associados a estilos de vida e relacionamentos diferentes, diferenças estas que, desde sempre, inspiraram escritores, artistas plásticos e cientistas sociais. 

Historicamente, as cidades foram retratadas como espaços de vandalismo, violência e delinquência, onde os vícios sociais se multiplicam e os laços familiares e comunitários se afrouxam. Embora os sentimentos anti-urbanos sejam milenares, até 1800 apenas uma ínfima parte da população mundial vivia em cidades (cerca de 3%), um cenário que se alterou radicalmente após as revoluções industriais. 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

No espaço de pouco mais de um século, as cidades multiplicaram-se e cresceram, tanto em tamanho como em densidade populacional, uma tendência que se estima que continue a crescer. Atualmente, a cidade conseguiu conquistar uma imagem significativamente mais amistosa do que os históricos retratos sombrios de paisagens citadinas (de que são exemplo as populares obras Mrs. Dalloway de Virginia Woolf e Waste Land de T.S. Eliot). 

Obras cinematográficas recentes, como New York, I love you’ (2008) ou Para Roma com amor (2012), são claros exemplos desta mudança de perspetiva. Embora continuem a ser geralmente associadas a um espírito comunitário mais fraco, à poluição, ruído e violência, são também associadas a um maior dinamismo cultural, progressismo e heterogeneidade.

Por outro lado, a intensificação dos movimentos migratórios e globalização do último século levou a que a composição social das cidades se alterasse. Embora sempre tenham sido marcadas por maiores diferenças socioeconómicas do que os espaços rurais, os centros urbanos são agora mais diversos do que nunca.

Este fenómeno levou a que cientistas sociais criassem o conceito de super-diversidade, o qual pretende capturar a complexidade humana dos novos espaços urbanos. As cidades super-diversas, como é o caso por exemplo de Lisboa ou do Porto, são cidades em que as maiorias populacionais se diluem. Uma multiplicação de diferentes etnias, línguas, habilitações académicas, estatutos legais, idades e géneros (para dar alguns exemplos) transforma a paisagem destes centros urbanos.

Além de espaços diversos, as cidades constituem também espaços de interação social, o que se deve sobretudo aos altos níveis de densidade populacional. Nos espaços urbanos, as pessoas sentam-se lado a lado com pessoas que desconhecem em transportes públicos, bancos de jardim, esplanadas ou templos religiosos.

Alguns fatores urbanísticos, como a dinamização de espaços públicos ou as redes de transportes, podem aumentar ou restringir esses pequenos encontros, aos quais geralmente atribuímos pouca importância. Contudo, independentemente destas diferenças e nuances, as cidades são no geral espaços de encontro e visibilidade e, sendo também espaços cada vez mais diversos, transformam-se em lugares onde somos expostos e confrontados com a diferença. Como tal, as cidades testam, mais do que qualquer outro espaço, os limites da nossa tolerância.

Cidades: espaços de preconceito e tolerância

O preconceito (seja ele racismo, xenofobia, homofobia ou classismo) nasce do confronto com a diferença. Como tal, as cidades estão particularmente expostas à intolerância. No entanto, dados estatísticos (de resultados eleitorais a inquéritos de opinião pública) demonstram precisamente o oposto: que os maiores centros urbanos destacam-se por serem comparativamente mais tolerantes e liberais.

A tolerância citadina pode ser explicada por vários motivos, desde o perfil sociodemográfico ao bem-estar económico, sendo os fugazes encontros multiculturais identificados como uma possível explicação. 

Em 1954, o psicólogo social Gordon Allport desenvolveu a chamada Hipótese do Contacto. Esta teoria estipula que, mediante certas condições, o contacto entre diversos grupos fomenta a tolerância. No entanto, para que o contacto produza este efeito ter-se-ia que desenvolver mediante certas condições, nomeadamente ter que surgir no âmbito de objetivos e interesses comuns, em moldes igualitários e com o apoio das instituições (lista que foi sendo alterada e alargada ao longo dos anos).

O contacto com a diferença não garante a desconstrução do preconceito, estando o seu efeito muito dependente do contexto.

Inicialmente, a teoria do contacto foi usada para estudar as relações entre negros e brancos no contexto da segregação norte-americana. Mais tarde começou a ser também utilizada para estudar o contacto entre outros grupos e contextos. Uma questão que continua a intrigar os cientistas das ciências sociais prende-se com o porquê do contacto (por vezes muito fugaz) criar tolerância. A explicação mais amplamente aceite prende-se com a aprendizagem mútua, que contribui para a desconstrução dos estereótipos.

No entanto, estudos recentes demonstram que o contacto intergrupal pode ter exatamente o efeito oposto, contribuindo para a criação de clivagens sociais, ou pode ainda, simplesmente, não produzir qualquer efeito. Qual o motivo para resultados tão diferentes? No geral, o que estes estudos apontam é que o contacto só por si não garante a desconstrução do preconceito, estando o seu efeito muito dependente do contexto.

Encontros com a diferença: o tempo e o espaço

Embora as cidades sejam por excelência o espaço onde pequenos encontros com a diferença se propiciam, estes não são um dado adquirido. Muitas cidades primam exatamente pelo oposto, isto é, pela segregação dos grupos que acabam por viver lado a lado sem interagirem de modo algum. Muitas zonas periféricas das cidades portuguesas, particularmente zonas com um elevado número de bairros sociais, são caracterizadas por este tipo de fisionomia social. 

Nestes espaços, minorias étnicas vivem, muitas vezes, em comunidades fechadas. Esta segregação é continuada nos espaços públicos e semipúblicos que as rodeiam. Por exemplo, durante o trabalho de campo que desenvolvi em vários bairros sociais, várias residentes de etnia cigana revelaram que no seu dia-a-dia tendem a frequentar espaços exteriores exclusivamente frequentados por outros ciganos e que as escolas onde matriculam os filhos são também caracterizadas por esta segregação étnica.

Este tipo de segregação residencial não é apenas um problema das periferias ou dos grupos vulneráveis. Pelo contrário, a proliferação de condomínios fechados contribui igualmente para a formação de “cidades de muros”, nos quais os grupos mais abastados se isolam. 

Por outro lado, cidades que propiciem o uso do automóvel contribuem também para uma separação populacional, onde diversos grupos vivem em proximidade sem necessariamente se encontrarem. O desenvolvimento tecnológico tem também servido para limitar os encontros fugazes entre estranhos, por exemplo ao substituir o comércio local pelo comércio eletrónico ou ao automatizar empregos que no passado exigiam interação humana. 

Entre outros factores que contribuem para a inexistência de encontros multiculturais encontram-se a falta de dinamização do espaço público, a insegurança ou até mesmo hábitos culturais. 

O apelo à bondade espácio-temporal deve ser ouvido nas políticas urbanas do futuro, para que a inevitabilidade da super-diversidade se possa revelar como uma oportunidade e não um rastilho para o conflito entre os grupos. 

Os encontros com a diferença são um fenómeno espácio-temporal em dois sentidos. Primeiro, estes encontros são efetivamente situados num espaço (podendo inclusivamente ser um espaço virtual) e no tempo. Por outras palavras, o encontro desenrola-se num determinado sítio e num determinado momento. Segundo, sendo esta interação situada num espaço-tempo é também ela influenciada e moldada pelas características desse contexto. 

Por exemplo, um encontro numa biblioteca pública terá certamente um cariz diferente de um encontro num parque infantil, por vários motivos. Estes espaços apresentam um conjunto de regras (algumas explícitas, outras tacitamente acordadas). A título de exemplo, em muitas bibliotecas é proibido conversar e, mesmo quando não o é, há geralmente um maior cuidado em manter o silêncio. Este mesmo cuidado seria difícil de imaginar num parque infantil.

Por outro lado, os espaços reúnem pessoas com um determinado propósito - a biblioteca sendo muitas vezes um local de trabalho, e o parque infantil um espaço de lazer - e como tal as “intromissões” de estranhos podem ser melhor ou pior recebidas consoante o espaço onde o encontro se desenrola. 

Na literatura sobre encontros multiculturais, o espaço público ganha especial atenção, por ser o local onde a diversidade é maximizada. Embora teoricamente o acesso ao espaço público seja universal, na realidade a facilidade de acesso diverge mediante a idade, o género e a etnia. Um dos motivos é a sua territorialização, isto é, a apropriação informal do espaço por um determinado grupo populacional. Esta territorialização é também muito comum em espaços semi públicos, como cafés, restaurantes, cinemas e centros comerciais.

Por exemplo, os bares gay não proíbem normalmente o acesso a heterossexuais, no entanto, são maioritariamente frequentados pela comunidade LGBT. A apropriação de um espaço por um determinado grupo restringe a possibilidade do encontro entre grupos e influencia o tipo de interação, caso esta ocorra. O facto do encontro entre um heterossexual e um homossexual se desenrolar num bar gay pode alterar a natureza do próprio encontro, pois sinaliza abertura e tolerância antes de a interação se iniciar. 

O contacto com a diversidade em espaços públicos é também determinado pela própria localização geográfica e pela configuração do tecido urbano. Por exemplo, uma vasta distribuição de serviços e espaços de lazer podem desmotivar a deslocação das populações para locais comuns, quando os residentes têm a possibilidade de satisfazer todas as suas necessidades perto de casa. Por fim, a própria qualidade e materialidade do espaço altera o seu uso e ocupação, sendo que espaços mais confortáveis e dinâmicos conseguem atrair uma maior diversidade de pessoas. 

Aspetos temporais são igualmente determinantes para o encontro multicultural. Em particular, a hora do dia pode alterar radicalmente a atitude dos indivíduos perante o contacto. Por exemplo, encontros entre grupos de etnias diferentes durante a noite induzem muitas vezes o medo e a insegurança, sentimentos esses que podem levar à formação de preconceitos e conflitos. Por outro lado, a nossa predisposição para interagir com estranhos é potencialmente muito diferente no final de um dia de trabalho intenso em comparação a uma relaxada tarde de fim de semana. 

Estes são apenas alguns exemplos de fatores contextuais que podem realmente modificar a forma como nos relacionamos com os outros no nosso dia a dia. É sobretudo nas cidades que estes contextos mais importam, simplesmente porque o número de interações espontâneas e fugazes com estranhos é maior. Estes são encontros que tendem a ser menosprezados e considerados irrelevantes.

Qual é realmente a importância de haver pessoas de etnias diferentes à nossa frente na fila do supermercado? Mudamos realmente as nossas atitudes por ouvirmos estrangeiros a falar inglês dentro do autocarro? Sem nos apercebermos, estes encontros fugazes podem ter um efeito determinante na maneira como perspectivamos o mundo e ter repercussões significativas na forma como votamos.

Image
sustainlis
Programação do ciclo de seminários Sustainlis.

Em 2005, o geógrafo Nigel Thrift escreveu: “(...) a bondade tem de ser construída nos espaços urbanos. Pelo que, as cidades devem ser desenhadas como se as coisas importassem, como se as cidades pudessem ser, também elas, bondosas”. Este apelo à bondade espácio-temporal deve ser ouvido nas políticas urbanas do futuro, para que a inevitabilidade da super-diversidade se possa revelar como uma oportunidade e não um rastilho para o conflito entre os grupos. 

É desta forma generosa que especialistas de vários países (Alemanha, Dinamarca e Portugal) se vão reunir na tarde do dia 7 de abril, entre as 14:30 e 16:30, no Auditório do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, para partilharem a sua experiência e apresentarem alguns casos práticos de como as políticas urbanas e de habitação podem ser desenhadas para ser inclusivas, contrariando tendências de segregação espácio-temporal. 

A sessão, intitulada “Imigração e populações vulneráveis”, é o primeiro de um ciclo de quatro seminários presenciais, gratuitas e abertas a todos.