Politóloga, constitucionalista, autora, não-conformista. MSC Fellow na Universidade de Cambridge. Debruça-se sobre corrupção sistémica, instituições antioligárquicas e populismo.

Chile: entre a esperança e o medo

A eleição de Gabriel Borić como presidente do Chile veio pôr um travão, para já, ao avanço dos neofascistas e nostálgicos do regime ditatorial de Pinochet. Mas a mensagem de esperança do novo presidente, apostada em "construir pontes" e manter a "coesão social", pode não bastar para afastar o Chile da ordem neoliberal decadente e do perigo de uma remontada de extrema-direita.

Ensaio
14 Janeiro 2022

Com a vitória de Gabriel Borić parámos de suster a respiração. O avanço do pinochetista, xenófobo e ultra-conservador neofascista José Antonio Kast foi, por enquanto, travado nas urnas. Após os resultados da primeira volta indicarem que Kast poderia ganhar por 100 mil  votos se o número de eleitores se mantivesse, a campanha de Borić voltou-se para o trabalho de campo porta-a-porta e para as redes sociais e seus memes para convencer mais de 1,270 milhões de  pessoas que se abstiveram de votar na primeira volta. 

O temor do que um governo liderado por um apologista do ditador Augusto Pinochet poderia significar em termos de contratempos e perseguição de minorias espalhou-se como fogo selvagem entre dissidentes sexuais, jovens feministas e ativistas de esquerda. Estes novos eleitores não são necessariamente partidários da coligação vencedora (Apruebo Dignidad), mas os seus votos foram impulsionados pelo pavor ao fascismo. Votos marcados, a contragosto, para evitar um mal maior. Foi o medo visceral do regresso ao poder do pinochetismo de linha dura que venceu as eleições.

A ascensão de Kast começou em 2017 quando, como candidato presidencial independente à direita do atual presidente Sebastián Piñera, ficou em quarto lugar com meio milhão de votos (quase 8%). Desta vez, na primeira volta das eleições presidenciais, conseguiu triplicar o seu apoio, capitalizando sobre a base eleitoral de 1,6 milhões de pessoas que votaram "rejeição" no plebiscito constitucional de Outubro de 2020 (22% do eleitorado). Kast conseguiu,  durante a campanha, elevar o seu perfil ao aparecer constantemente em talk shows, onde propôs cavar valas na fronteira para afastar os imigrantes e formar uma aliança com os evangélicos contra a "ideologia de género".

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A política neofascista de Kast é uma tradição familiar. O seu pai, Michael Kast, foi um soldado nazi que conseguiu escapar para o Chile após a II Guerra Mundial com documentos falsos da Cruz Vermelha, enquanto o seu irmão mais velho, Miguel, foi um dos Chicago Boys que trabalhou para Pinochet, servindo como chefe da Oficina de Planificação Nacional (ODEPLAN) no final dos anos 1970. Miguel supervisionou o plano de ajustamento neoliberal e foi depois, em 1980, Ministro do Trabalho, até se tornar em 1982 presidente do Banco Central.  

Por sua vez, o candidato presidencial de extrema-direita estudou direito e está na política desde 1996, primeiro como conselheiro numa área rural do centro do país e depois como representante na Câmara dos Deputados durante quatro mandatos consecutivos. Foi membro de longa data da UDI, partido fundado em 1983 pelo jurista e conselheiro de Pinochet, Jaime Guzmán, até se demitir em 2016 para organizar as elites que queriam reavivar o legado do antigo ditador. 

Em colaboração com a Aliança Global em Defesa da Liberdade (ADF), organização fundada por Alan Sears que reuniu representantes católicos e evangélicos para proteger a família tradicional, José Antonio Kast organizou uma cimeira internacional de políticos ultra-conservadores para discutir o futuro do Chile. Em 2019 fundou o Partido Republicano, que entrou em coligação com a direita evangélica no Congresso.

O programa presidencial de Kast para 2021, que prometia "restaurar a ordem" e recuperar o Chile de uma suposta insurreição comunista, incluía propostas para reduzir os impostos sobre as empresas e eliminar o imposto sucessório; conceder imunidade legal às forças armadas e financiar a defesa legal dos agentes da polícia acusados de uso excessivo da força; dar ao presidente amplos poderes para suprimir a dissidência; estabelecer uma Coligação Internacional Anti- Esquerda Radical para "identificar, prender e processar os opositores radicalizados"; encerrar o Instituto dos Direitos Humanos; deixar as Nações Unidas; revogar a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os Povos Indígenas; e eliminar o Ministério dos Assuntos da Mulher, oferecer incentivos económicos para casamentos heterossexuais e apagar a "ideologia de género" do currículo educacional.

Quando os resultados da primeira volta deram Kast como candidato mais votado, o centro-esquerda entrou em pânico, e com boas razões, pois tudo indicava que a extrema-direita tinha uma hipótese real de chegar a La Moneda. Como os candidatos da direita "renovada" e da antiga “Concertación”, que governou o Chile na maior parte dos últimos trinta anos, obtiveram 24% dos votos, Borić saiu para conquistar estes eleitores centristas à extrema-direita e procurar novos votantes entre os 53% que optaram por se abster na primeira volta, a maioria das quais provenientes das classes trabalhadoras historicamente marginalizadas ou negligenciadas por partidos de todo o espectro político.

A afluência dos eleitores às urnas tem vindo a diminuir constantemente desde a transição do Chile para a democracia em 1990. A euforia inicial de eleições livres após a ditadura foi rapidamente substituída pela apatia, graças à indiferença dos sucessivos governos de centro-esquerda. A Frente Amplio, uma coligação enraizada nos movimentos estudantis de 2011 aos quais Borić estava associado, pareceu inicialmente oferecer uma alternativa, mas também deixou o seu carácter disruptivo resvalar para um tipo de políticas mais 'maduras’ e 'responsáveis’. 

Os críticos de esquerda há muito que descrevem Borić como "amarelo" devido à sua tendência para evitar confrontos e adotar posições subservientes e moderadas. Não foi, portanto, surpreendente que, uma vez iniciada a campanha, ele tenha decidido atender principalmente os eleitores do centro, que estavam mais preocupados com a destruição de bens e desordem na sequência da revolta de Outubro de 2019 do que com a criminalização de manifestações e as violações dos direitos humanos associadas à sua repressão.

Enquanto campanhas com mensagens antifascistas preenchiam todos os espaços informais, entrando fortemente nos sectores populares, a campanha oficial de Borić apenas abordou tangencialmente a ameaça existencial de ter um líder de extrema-direita no poder. Concentrou-se, em vez disso, na esperança de um futuro melhor, simbolizada pela imagem do novo líder no topo de uma árvore de braços abertos, de frente para o mundo.

Borić foi descrito como "amarelo" pelos críticos à sua esquerda: apelou aos eleitores de centro, mais preocupados com a desordem, e falou pouco da ameaça da extrema-direita. Esteve mais preocupado com uma política de diálogo para a "coesão social".

Esta dupla estratégia de declarar formalmente a esperança e incutir informalmente o medo foi eficaz em termos do número de abstencionistas que conseguiu trazer às urnas, mas também suficientemente plástica para permitir ao presidente eleito continuar a sua política de diálogo, que procura "construir pontes" com o adversário da extrema-direita, a fim de alcançar a "harmonia" e a "coesão social".

Embora a união pelo medo tenha elevado Borić à posição de líder de uma aliança antifascista, que incorporou os partidos que administraram o modelo neoliberal nas últimas três décadas, a esperança posta no seu governo, em termos de transformações estruturais e melhorias materiais imediatas, elevou-o à categoria de representante das aspirações da nação chilena. Embora o triunfo de Borić tenha sido lido como a vitória da esperança sobre o medo, não é irracional pensar que quem realmente triunfou nesse domingo de 19 de Dezembro não foi tanto a esperança, mas esse medo do regresso da direita ultra-conservadora ao poder.

O medo e a esperança são emoções fundamentais na política. As decisões tomadas sobre a vida em comum não se baseiam apenas em critérios técnicos de eficiência, são sobretudo decisões ético-políticas ligadas inextricavelmente a esses dois tipos de sentimentos. Cada nova decisão política exige uma reconciliação entre os princípios e a realidade, implicando uma contínua reflexão sobre o fosso inevitável entre teoria e prática, o que reativa estas emoções existenciais no debate político. 

Para o filósofo democrata radical Baruch Spinoza, “a esperança é o prazer que surge da ideia de algo no futuro, cujo resultado é incerto”. A esperança, portanto, traz dentro de si um elemento de medo. Quando estamos esperançosos, sentimos prazer em imaginar que alcançaremos o desejado, contudo também tememos a possibilidade de ver o nosso desejo frustrado. 

A principal diferença é enquanto a esperança é positiva e produtiva, porque gera confiança para a ação ao remover a incerteza do futuro, o medo é negativo e paralisante, porque conduz ao desespero e à passividade ao invés de renovar as nossas forças; quanto mais temerosa é uma pessoa, menos poder possui.

Embora o medo estimule os seres humanos a procurar ajuda e a cooperar, para que um pacto social produza liberdade e não dominação, deve ser a força produtiva da esperança a principal impulsionadora das diferentes associações políticas. Embora possamos racionalmente preferir um mal menor no presente para chegar a um futuro melhor ou para evitar um futuro pior, só a esperança leva a uma associação política de pessoas livres. 

O medo força os indivíduos à submissão e constrói uma sociedade baseada na dominação, na qual a dor (a sua memória ou ameaça) é usada para impor silêncio e ordem. O medo da maior maldade restringe a deliberação e o julgamento crítico, limitando a liberdade política de discordar. Neste sentido, a estratégia de entrelaçar indiretamente esperança e medo acaba por estrangular a criatividade e a energia necessárias para alcançar o projeto desejado, especialmente se existir uma desconexão entre as aspirações do povo e a vontade política das elites. 

Ao atrasar a aprovação de reformas socioeconómicas transformadores, o perigo da presidência de Borić será o de repetir o padrão em que a democracia só avança até onde as elites governantes consideram possível.

A mensagem de esperança transformadora de Borić está em desacordo com a estabilidade débil e o movimento "responsável" e de ”pequenos passos" em frente que o novo líder apregoa.

Em 1990, o medo de perder uma democracia frágil levou o povo a curvar a cabeça e a permitir a consolidação do modelo neoliberal na democracia. Hoje não é só o medo do fascismo que ameaça neutralizar as reivindicações populares e paralisar a ação; há também o poder político que a coligação de direita (Chile Vamos) detém, capaz de sabotar o primeiro governo de transição para a nova ordem constitucional. 

Dado que os partidos de direita conseguiram capturar metade dos lugares nas duas câmaras do Congresso, o governo de Borić terá de negociar com a oposição conservadora - o que significará moderar as suas propostas até a lâmina que cortaria a camisa de forças imposta pelo modelo atual ser removida - ou contentar-se com o inevitável impasse legislativo. Uma vez que a nova Constituição está prevista para ser ratificada em Setembro de 2022, Borić será obrigado a começar a implementá-la por decreto ou a adiar a sua materialização até a aritmética do Congresso ser alterada. Se escolher a segunda opção, provocará raiva e frustração entre as classes trabalhadoras. O descontentamento social que emergirá da paralisia tornará a narrativa da esperança mais difícil e inflamará ainda mais a retórica do medo.

Com um presidente social-democrata centrado no diálogo e na negociação parlamentar, para quem o Congresso é mais "equilibrado" do que dividido, as perspetivas de transição para uma nova ordem sociopolítica parecem sombrias. Resta saber se este "governo de articulação" entre a democracia neoliberal e a nova ordem, apoiado por uma aliança "contra o fascismo" que reuniu os partidos da antiga “Concertación” com os do “Apruebo Dignidad”, será capaz de reconfigurar as forças do status quo e estabelecer um novo centro no qual possam ser possíveis "transformações responsáveis". E mesmo que algumas reformas estruturais sejam alcançadas, o perigo continua a ser o de repetir o padrão em que a democracia só avança até onde as elites governantes consideram possível (ou seja, não muito longe). 

Dado o seu apego ao diálogo e à negociação, é pouco provável que Borić esteja disposto a governar por decreto se o impasse legislativo persistir. Por medo de ser marcado como tirano, as reformas estruturais serão arquivadas, pondo assim a panela de pressão de novo ao lume, à espera de outra explosão. Para que a esperança possa superar o medo e a paralisia no primeiro ano de governo, serão então necessários novos mecanismos políticos para resistir ao domínio das forças reacionárias. 

Nos últimos meses, a Convenção Constitucional tem ouvido testemunhos de organizações de base que exigem poder de decisão local e procedimentos democráticos diretos para descentralizar o poder, proteger o ambiente e combater a corrupção. Dar aos cidadãos o direito de iniciar e revogar leis, cancelar projetos extrativistas e chamar representantes não só permitiria transformações estruturais urgentes, tais como a revogação do sistema de pensões como fixaria um ritmo mais apropriado para elas.

A passagem de um modelo neoliberal para um modelo social-democrata requer um intenso trabalho jurídico e político que deve ser levado a cabo, dadas as circunstâncias, pelo Presidente, mandatado pelas comunidades que habitam o território. Atrasar a aprovação de reformas socioeconómicas transformadoras, que certamente ficarão atoladas no Congresso, não só não permitirá ao Chile afastar-se da decadente ordem neoliberal, como porá em perigo a frágil estabilidade da ordem nascente, deixando terreno fértil para uma nova investida do fascismo e do seu medo.