Doutoranda em História. Investigadora do Instituto de História Contemporânea e do IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território (FCSH-NOVA).
 

 

Carta a Jaime Serra

Jaime, eras o camarada que tinha “o dom de transformar coisas difíceis em fáceis”. E foi a dureza a que foste submetido que te tornou um dos piores inimigos do regime que tantos anos te oprimiu.

Ensaio
28 Abril 2022

Jaime, nasceste a 22 de Janeiro de 1921. Eras um bebé quando os teus futuros camaradas decidiram fundar o teu partido, o Partido Comunista Português (PCP). Ironias da história, mas assim é por vezes, a feliz coincidência de teres nascido nesse ano e de teres vivido cem anos, para celebrar o teu centenário com o centenário da reunião contínua à qual dedicaste a tua vida, como diz o poema Ao encontro do Encontro, do poeta Manuel Gusmão. 

Não tive a oportunidade de conversar contigo em vida. Faço-o agora, por esta via, dentro da minha cabeça, para te recordar.

Em 1997 escreveste um livro, em resposta a uma carta do teu filho José, a que deste o sugestivo título de Eles têm o direito de saber. Sabias também, creio, que não eram apenas os teus filhos que te ficariam gratos por decidires responder à sua vontade de conhecer a tua vida, as tuas motivações, para os ajudar a “distinguir o essencial e encontrar o equilíbrio”.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Resulta clara a influência do teu pai naquilo que cedo te tornaste, bem como do contexto de dificuldades que te produziu e onde foste despertar a tua consciência social e política. Depois de o perderes para um acidente que muito impactou a tua família, começaste a trabalhar aos 12 anos na construção civil, o que te obrigou a sair de casa e a dormir numa banheira com palha a fazer as vezes de colchão. 

Mas mesmo antes disso não se pode dizer que tenhas tido uma infância como aquela que todas as crianças merecem. Fome, pobreza, pés descalços (excepto quando ias à escola), trabalhos duros na ajuda possível às despesas da família, coisas a que muitas outras crianças como tu foram sujeitas, mas que hoje parece quase um pesadelo inverosímil (e tantas há, pelo mundo, que ainda se vêem privadas da infância). 

No entanto, foi esse o contexto que, somado à tua curiosidade, te levou à leitura e ao estudo. Dizias que tinhas orgulho da classe em que nasceste, mas tal como tinhas consciência de que o teu trabalho criava riqueza, também achavas que tinhas o direito de conhecer o melhor do mundo.

Olhavas com atenção o que estava a acontecer à tua volta: num lado as injustiças, noutro as desigualdades, mais além a coragem daqueles que se organizavam para resistir.

Nessa altura não poderias imaginar que o teu engajamento te levaria a conhecer outros povos em luta e as suas culturas, várias repúblicas da União Soviética, bem como a China, em finais de 1957 e inícios de 1958. E, mais tarde, em 1973, o Vietname ao integrares a primeira comitiva de um partido comunista ocidental a visitar o país depois do fim da guerra contra a agressão norte-americana.

Em pequeno, olhavas com atenção o que estava a acontecer à tua volta: num lado as injustiças, noutro as desigualdades, mais além a coragem daqueles que se organizavam para resistir.

Chamaste “baptismo de fogo” à repressão levada a cabo pelo regime do Estado Novo na sequência das acções do 18 de Janeiro de 1934, junto dos trabalhadores da CP do Barreiro, onde começaste a ler o Avante! e tiveste a primeira ligação ao Partido.

Em 1937, quase a fazer 16 anos, és preso pela primeira vez por teres na tua posse um desses jornais que ajudavas a distribuir. Passaste esse aniversário na cadeia. Serias preso mais três vezes mas, ao contrário de muitos outros comunistas, “só” passaste quatro anos na prisão pela tua capacidade de fugir delas. Porque, como dizias, nunca te “conformaste à ideia de que houvesse alguma prisão absolutamente invulnerável”. Além disso, a principal tarefa de um comunista preso era evadir-se para continuar a luta. Em 1950, fugiste de Peniche com Francisco Miguel; em 1956, de Caxias, e, em 1960, de novo de Peniche, numa fuga que seria um duro golpe para o regime fascista, por te acompanharem mais nove que iam voltar a ocupar os seus lugares na clandestinidade, entre eles Álvaro Cunhal. 

Jaime, eras o camarada que tinha “o dom de transformar coisas difíceis em fáceis”, como escreveu Domingos Abrantes por ocasião do teu centenário. E assim parece quando lemos os teus relatos: como fazias entrar os materiais e instrumentos necessários, como estudavas os movimentos dos carcereiros, como se conseguiam estabelecer contactos e marcar reuniões para consolidar o plano. O engenho, a inteligência, a paciência e a persistência foram elementos decisivos para que essas fugas fossem bem sucedidas. E foi a dureza a que foste submetido que te tornou num dos piores inimigos do regime que tantos anos te oprimiu.

Falas de vários acontecimentos que confirmaram as tuas escolhas e te incentivaram a continuar a luta, entre eles o assassinato de Augusto Martins, em 1937, um jovem operário de 24 anos, espancado fatalmente por se recusar a falar na polícia. Mas também o assassinato de Alfredo Diniz (Alex) em 1945, com 28 anos, morto a tiro pela polícia numa estrada em Bucelas, a caminho de um encontro clandestino.

Ao longo destes anos tiveste quatro filhos e por várias vezes — e longos períodos — te separaste deles (a tua terceira filha nasceu estavas preso em Caxias, e só a vieste a conhecer seis meses depois, quando dali fugiste). Tu e a Laura fizeram o maior sacrifício que consigo imaginar para serem a esperança que não fica à espera, como escreveu Manuel Gusmão, e doarem os vossos melhores anos a ajudar os trabalhadores a resistir ao obscurantismo que tomou conta do país durante quase meio século. 

Mas não são apenas os portugueses que te devem muito. Em pelo menos dois importantes momentos a tua vida entrelaçou-se com aquela dos povos submetidos ao colonialismo português e a sua luta. Apresentaste ao V Congresso, em 1957, a posição do PCP pela imediata independência nacional das colónias portuguesas, evocando a conferência de Bandung, em 1955, na Indonésia, como momento de viragem e assumindo o internacionalismo e anti-colonialismo como princípios fundamentais da acção colectiva. 

Depois, e assumindo um importante risco, o aparelho clandestino do partido irá apoiar directamente a acção dos movimentos de libertação nacional, nomeadamente através da fuga de Agostinho Neto e Vasco Cabral em 1962. Coordenaste a operação e conseguiste levar de Lisboa a Marrocos estes dirigentes africanos. Fizeste-o de barco. És ainda quem dirige as acções armadas com vista a fragilizar o aparelho militar do regime, com a implementação da ARA (Acção Revolucionária Armada), tarefa que desempenhaste com “audácia” mas sem “aventureirismo”, já que para ti era claro que a luta dos trabalhadores era “o verdadeiro motor da revolução”. 

Jaime, tudo valeu a pena, reafirmaste-o várias vezes. Estiveste 27 anos na clandestinidade e dedicaste a vida à construção de um outro mundo. Não o chegaste a ver, mas deixaste a convicção de que é certo que lá chegaremos.

Sabias que a morte de civis em nada contribuiria para a queda do regime fascista, optaste pela sabotagem da máquina de guerra. E as acções que desenvolveste de ataque a comunicações e equipamentos militares, no contexto da guerra colonial e da cumplicidade da NATO com o regime fascista português, tiveram um impacto substancial. 

Os jovens não queriam morrer numa guerra em que não viam sentido e os comunistas compreendiam-no, ainda que considerassem que os seus militantes deveriam ir para onde eram destacados e aí fazer o trabalho subversivo de ganhar outros para a luta pela paz. Mas com as acções da ARA não restavam dúvidas quanto ao internacionalismo que te movia e ao teu partido, apontando aos equipamentos destinados à guerra colonial. 

Com um risco acrescido por causa dos meios rudimentares de que dispunham, imobilizaram um navio, destruíram dez aeronaves, danificaram outras 14 e cortaram comunicações a uma reunião da NATO que se realizava em Portugal em plena guerra colonial. Enfraqueceram e enraiveceram o regime.

Faço o exercício impossível de tentar imaginar o que pode ter sido assistir ao 25 de Abril de 1974, ver “espingardas ornadas de cravos” e “canhões dos tanques ornados de cachos humanos”, no que constituiu para ti “a mais bonita Revolução da nossa história”. A Revolução que consagrou a liberdade pela qual lutaste toda a tua vida. 

Jaime, tudo valeu a pena, reafirmaste-o várias vezes. Todos os sacrifícios foram pagos em dignidade. Fizeste parte da delegação do PCP no primeiro encontro com a Junta de Salvação Nacional, onde ouviste o marechal António Spínola sugerir que o PCP não publicasse o Avante! com a foice e o martelo. Imagino o quanto se devem ter rido todos da proposta de, agora em liberdade, o passarem a esconder. Conheceram a prisão e a tortura por não abdicarem do vosso ideal, não seria agora que o fariam.

E cá estiveste para fazer tudo o que podias pelo tanto que faltava. Primeiro na Assembleia Constituinte, onde ajudaste a escrever uma das  constituições mais progressistas da Europa. E depois na Assembleia da República, onde terá sido tão difícil (ainda mais difícil, talvez?) enfrentar aqueles que esperavam com falsidade o momento de recuperar tudo o que pudessem e de ajustar contas com a ousadia de fazer da justiça lei.

Jaime, a opção de seres comunista, e de dedicares a vida à construção de um outro mundo, teve profundas consequências. Só depois da revolução conseguiste reunir à tua volta os teus quatro filhos. Uma escolha que fizeste muito jovem, mas que mantiveste até ao fim, fazendo parecer fácil tomar a verticalidade e a coerência como bússolas da vida. Estiveste 27 anos na clandestinidade, longas separações, rigorosas prisões e extraordinárias fugas, pelo direito a viver num país onde se pudessem propor outras soluções para os problemas dos homens e das mulheres, e discuti-las com franqueza, sem se ser agredido por quem vê os seus interesses ameaçados. 

Essa tua sugestão, esse mundo possível, não o chegaste a ver. Mas deixaste a convicção de que, se hoje se vive melhor do que há 100 anos, é certo que lá chegaremos. Hoje, com a vantagem de usufruirmos do teu património de luta, não ficaremos à espera sentados.

Sofia Lisboa escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.