Doutoranda em Antropologia, com um projeto na cidade do Barreiro em torno das sociabilidades entre migrantes e não migrantes apanhadores de amêijoa. Gosta de poesia.

Breves notas sobre o fim do mundo

O fim do mundo não será um evento apocalíptico, mas um processo lento de degradação que já está em marcha, visível nos fenómenos de violência e exploração entre humanos, na extinção de animais e na destruição de ecossistemas. E obriga-nos a repensar as promessas capitalistas.

Ensaio
10 Março 2022

O que estamos actualmente vivendo e sofrendo não é apenas uma borbulhagem fugaz, destinada a passar como tantas coisas passam, sem deixar sinal; é, muito pelo contrário, uma época de transição, uma ponte de passagem entre aquilo que desaparece e o que vai surgir 

Bento de Jesus Caraça 

 

 

O fim do mundo não é apenas um fenómeno repentino ou apocalíptico. Já está a acontecer, é lento e, muitas vezes, impercetível. Por mais que nos impressionem os filmes distópicos que antecipam o colapso fugaz de um mundo, o fim vem antes paulatina e silenciosamente.

A ideia de fim do mundo traz para o centro de discussão o desmantelamento das promessas de desenvolvimento de uma sociedade capitalista global. Inevitavelmente, também nos mostra o que parte dessa sociedade faz desaparecer: animais, florestas, rios. Como processo de degradação, o fim do mundo existe na extinção de várias espécies pela mão humana, ou nas práticas de extração que perturbam economias locais. É percecionado ainda nas formas de violência para com os corpos dos outros, como nos fenómenos estruturais do racismo.

Um dos exemplos desses fenómenos é o racismo institucional. Por exemplo, a construção do “muro da vergonha” que isolou a população cigana no bairro das Pedreiras, em Beja, ou a ciganofobia presente no Barreiro, em particular no Barreiro antigo, direciona-nos para a forma como o racismo reproduz desigualdades sociais.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

O futuro (ou a sua falta) torna-se aqui uma reflexão importante para pensar sobre a forma como nos relacionamos uns com os outros dentro de um fim que é agora. Entendemos a ideia do fim do mundo como retrato de um sistema capitalista global atual que extrai muito mais do que retribui.

Este fim do mundo é também reflexo de uma visão instrumental, fruto de um tempo ainda presente de afirmação do excecionalismo humano. O livro editado pela antropóloga Deborah Bird Rose sobre espécies extintas ou em vias de extinção é elucidativo deste fracasso da humanidade. Ao descrever a violência infligida aos morcegos-raposa da Austrália, Bird Rose mostra-nos um dos lados deste excecionalismo aparente: o homem como sendo o único capaz de torturar outros seres vivos e rir-se disso.

Ao mesmo tempo, a autora descreve-nos o trabalho dos cuidadores das crias destes animais em vias de extinção para nos mostrar como o cuidar pode mitigar os efeitos da violência que os humanos perpetuam, e contribuir para manter formas de existência que estão a desaparecer. É da vida que se trata, e é agora – num contexto acelerado de extinção – que os seres humanos se devem empenhar na luta por um futuro que sirva a todos nós.

A arrogância inerente a este excecionalismo é própria de uma visão que entende o mundo – animais e pessoas – como recurso e que está assente, sobretudo, nas formas de dominação e exploração do homem pelo homem e na violência contra outras espécies. Encontramos uma dessas formas no racismo, este reproduzido pela divisão racial do trabalho.

Como nos relembra o sociólogo Nuno Dias, há um carácter explorador na reprodução do poder nas relações de trabalho que repete a condição de vida dos escravos e perpetua a alteridade subalterna. Frantz Fanon mostra que ser "black" é mais do que um sentimento de inferioridade, antes fomenta um sentimento de não-existência: há um processo de negação do outro no racismo. Não se nasce "black" – relembra Fanon – aprende-se a sê-lo a partir da interpretação que o outro faz.

A dialética entre corpo e “blackness” caracteriza-se pela imposição da aparência física do corpo no homem, por uma classificação que é imposta pelo outro. Fanon mostra-nos, assim, que o racismo é um sistema, e não um evento, e a cor da pele a manifestação mais óbvia de diferenciação social. 

O racismo marca, por isso, um modo de desencontro com o próprio corpo, mas também com o outro. Moldados por processos económicos, históricos, sociais e culturais que separam o eu de um outro, os fenómenos de racismo negam ao outro ser vivo a sua própria dignidade.

A ideia de fim do mundo permite-nos olhar para um passado que desapareceu, mas também para um futuro em que o capitalismo tornará irremediável esse fim.

Esta classificação imposta sugere uma hierarquização do homem a partir dos seus atributos físicos, evidenciando uma negação das próprias características ontológicas de se ser pessoa. A ligação do preconceito de raça com outras condições definidoras de uma identidade social como a classe parece-nos evidente. "The king stay the king" – já nos diria D’Angelo na série The Wire.

Mas a ideia de fim do mundo põe em evidência uma tendência mais alargada de dominação, que vai além dos processos de racialização. Permite-nos olhar para um passado que desapareceu – a extinção de espécies pela humanidade – mas também para um futuro que nos mostra que o capitalismo e as suas práticas extrativistas tornarão irremediável esse mesmo fim.

Parece-nos alarmante a normalização de ideias como “integração”, “costumes”, “os nossos modos de vida”, “identidade nacional” - visíveis por exemplo, nos debates políticos em Portugal, como mais recentemente aconteceu nas legislativas de 2022. Esta normalização, assente no segregacionismo e no indivíduo sobre a coletividade, torna urgente recordar a força na capacidade humana de progresso, cooperação e solidariedade.

O fim do Mundo: debates sobre o futuro

A ideia de fim do mundo obriga-nos a pensar numa época que é a nossa, mas que vai para além da nossa existência individual, e terminará ao mesmo tempo que nós, quando desaparecermos enquanto espécie. Este fim arrasta-nos ao mesmo tempo para um passado – recordar o que já existiu (mas que não nos traz de volta a presença do Outro que já desapareceu) –  e para um futuro – que nos coloca a questão da inexistência, de um tempo no futuro que ainda não existe, mas que se posiciona temporalmente antes do fim.

O que resta quando as perspetivas de futuro se dissipam em contextos de crises que duram e o presente se torna permanente? François Hartog mostra-nos como o presente é a única categoria disponível para pensar as transformações da nossa relação com o tempo (e, inevitavelmente, com os outros) na modernidade tardia. Porque o futuro, argumenta, já não representa um fim em aberto, mas, pelo contrário, é contraído, fechado.

Representa a irreversibilidade das nossas ações no presente acelerado perante um futuro ainda longínquo, “que já nada representa à escala de uma vida humana”. Para Hartog, “chegámos ao limite da supressão do tempo” com a valorização da instantaneidade, da simultaneidade, dos ciclos de consumo imediatos.

Hartog aponta-nos para uma autodestruição, por um lado, e uma autoexploração, por outro. A primeira, refere-se ao impacto dos seres humanos nas alterações de um tempo bem mais longínquo do que o seu. Isto é, através das repercussões das suas ações individuais e coletivas no presente a longo prazo.

Os debates sobre o futuro obrigam-nos a uma análise aos processos de destruição capitalista e às possibilidades da entreajuda humana e não-humana como única forma possível de sobreviver num mundo inevitavelmente comum.

Ao mesmo tempo, a provocação de uma aceleração que o autor considera como “aceleração presentista”, ou seja, a aceleração que o ser humano inflige em si próprio como finalidade em si mesma, “como o hamster que faz girar a roda da sua gaiola, mas sem se deslocar um centímetro que seja”. Esta metáfora aproxima-nos do Mito de Sísifo, mas ao contrário.

Quando Camus escreve “é preciso imaginar Sísifo feliz”, uma das interpretações que fazemos aponta-nos para um Sísifo que nega o suicídio e aceita a não correspondência do mundo aos apelos dos homens.

Esta aceitação - que podemos entender como uma forma de emancipação – é oposta à (auto)-alienação de Hartog: representativa da corrida de cada um à inovação e o “imperativo social da urgência” como facto social total, a “aceleração da aceleração” do capitalismo financeiro e da exploração dos recursos, das crises permanentes.

Este presente em urgência permanente configura-se como a aceleração que se vira contra si própria, onde o pensamento, a “pesquisa fundamental, demasiado lenta, demasiado pesada, demasiado incerta”, dá lugar à investigação dos concursos, aos financiamentos dos programas de inovação. 

O presentismo de Hartog faz ver uma reflexão crítica sobre este mundo que, de tão acelerado, provoca uma estagnação na vida de muitos: eis o homem que vive com medo de não ser bem-sucedido. Ao mesmo tempo, este é um presente sem ponto de vista, no sentido em que é redundante quando pensamos que a privação do futuro já começou. Quaisquer que sejam as nossas ações no presente - coletiva ou individualmente - estas terão consequências num futuro distante que a esperança média de vida de cada um de nós não permite ver.

Os debates sobre o futuro obrigam-nos a fazer simultaneamente uma análise aos processos de destruição capitalista, e às possibilidades da entreajuda humana e não-humana como única forma possível de sobreviver num mundo inevitavelmente comum.

O mundo como recurso – extração

"A Queda do Céu”, um livro de relatos e apelos do xamã e líder político indígena Davi Kopenawa, mostra-nos a arrogância do Ocidente na forma como olha o mundo e as suas espécies, direcionando-nos para uma dupla extinção do mundo. Por um lado, a extinção de um mundo que não existe para os brancos: a floresta como agente pensante, e a importância da proteção dos xamãs; por outro, a antecipação da queda do céu na terra e que enquadra este livro dentro de um momento longo que projeta a destruição da floresta e o desaparecimento dos seus habitantes.

No livro parece-nos evidente a dicotomia entre os habitantes da floresta e os outros – os brancos – que carregam consigo as doenças e que lucram com o que conseguem desviar do rio e da floresta. Aquilo que podemos identificar como uma fatalidade humana a todos semelhante – a morte – é sobretudo uma antecipação do xamã das destruições causadas pelos brancos, que trarão a “escuridão do mundo subterrâneo”.

Kopenawa parece assim direcionar-nos para uma indiferença que cresce quando os desejos de poder, crescimento e riqueza se tornam aparentemente inabaláveis. Um aspeto interessante deste livro é a ideia de que o mundo é partilhado por uma quantidade enorme de seres vivos e pelos seus guardiões espirituais, os xapiri.

Ser humano não é um atributo, mas um ponto de vista.

Não sabemos ao certo a forma destes guardiões, mas sabemos que são entidades vivas do mundo a que os brancos chamam Natureza – em yanomami, hutukara. O autor mostra-nos, assim, as formas de esquecimento dessa gente “outra” – dos que comem a terra – de que partilhamos um céu comum e que devemos cuidar dele.

O sentido de cuidar e de partilha intrínseco no texto de Kopenawa obriga-nos a olhar também para a ideia de “perspetivismo ameríndio” de Eduardo Viveiros de Castro que vai propor um modelo relacional de humanidade partilhada, onde a perceção do humano/animal/natureza depende da matéria objetiva que a compõe: os animais vêem-se a si próprios como humanos e os humanos são percecionados como presas.

A ideia de perspetivismo ameríndio é particularmente importante na obra de Kopenawa porque nos permite compreender a crítica do xamã aos brancos: a sua incapacidade de ver que humanos e não-humanos estão entrelaçados, e que partilham um céu comum.

Mas e quando o predador julga que nunca é a presa? Kopenawa reage assim aos brancos, “com suas peles de imagens, suas máquinas e suas mercadorias”, para quem hutukara não tem um valor intrínseco, mas instrumental. Esta perspetiva abre caminho para possibilidades conceptuais que ao mesmo tempo – paradoxalmente – desvalorizam a ideia de excepcionalismo humano: ser humano não é um atributo, mas um ponto de vista.

O futuro num contexto de fim

Será ainda possível identificar uma capacidade humana para construir formas de cuidado, entreajuda e solidariedade? Não é o futuro representativo não só do que poderemos antecipar (projetos, expectativas), mas também do que já desapareceu? Vinciane Despret escreve-nos sobre a extinção dos pássaros-passageiros na América do Norte: o último pássaro em ambiente selvagem morre em 1899, e a última fêmea – já em cativeiro – em 1914.

A descrição de Despret sobre a morte deste pássaro fêmea evoca uma despedida, como se de uma extinção voluntária se tratasse: porquê continuar a pôr ovos quando nos vemos impossibilitados de voar em liberdade? Quando perdemos alguma espécie, perdemos também uma parte do que mantém o mundo vivo.

A forma como o mundo vai desaparecendo com cada perda – perda não só das espécies, mas também das sensações e pontos de vista que cada uma dessas espécies possibilitava com a sua presença - é demonstrativa da forma como humanos e mais-do-que-humanos estão entrelaçados.

A forma extrativista de pecepcionar o mundo prejudica não só a sobrevivência humanas, mas todos os modos de existência.

A arrogância inerente à ideia de que o homem é o único ser vivo capaz de sentir alegria, de comunicar, brincar, ter interesses e desejos (como o desejo de cuidar e proteger os filhos), parece esquecer este facto. Sabemos que a forma extrativista de percecionar o mundo e os outros prejudica não só diversas sobrevivências humanas locais, como também outros modos de existência que ultrapassam as relações humanas, mas que delas também dependem.

A capacidade humana para saturar os recursos aponta-nos para uma visão instrumental do mundo. Esta forma de olhar para o mundo é reflexo de uma incompatibilidade entre homem e a natureza, que nos relembra a destruição humana e ambiental que esta incompatibilidade causa.

Olhemos para as implicações de uma lógica extrativista nos próprios modos como nos relacionamos uns com os outros: porque nós somos parte da natureza, e por isso, somos também um recurso dentro desta lógica.