Sociólogo, professor jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e director emérito do Centro de Estudos Sociais (CES) da mesma universidade.

Bem-vindos ao admirável mundo pandémico: violência, guerra fria e vacinas

Há três cenários em cima da mesa: o negacionismo, o gatopardismo e a alternativa civilizatória. Cada um oferece uma narrativa da pandemia que o faz ser o único possível e legítimo, e é apoiado social e politicamente pelas forças que mais beneficiarão com ele.

Ensaio
19 Julho 2021

Num livro recente sobre a pandemia, intitulado o Futuro começa agora: da pandemia à utopia (Edições 70), escrevi que à medida que a fase aguda da pandemia passasse nos iríamos deparar com três cenários possíveis, dos quais dependeria a qualidade futura da vida humana e não humana, a que vulgarmente chamamos natureza. Os três cenários são o negacionismo, o gatopardismo e a alternativa civilizatória.

O primeiro consiste em negar a gravidade excepcional desta pandemia e pretender que em breve tudo voltará ao normal mesmo que, entretanto, cerca de 4 milhões de pessoas tenham morrido, uma parte das quais, desnecessariamente. O segundo cenário reconhece que a pandemia foi (é) grave e que são necessários alguns ajustamentos nas políticas públicas, nomeadamente no sector da saúde, mas não são necessárias nenhumas mudanças estruturais. Muda o que for necessário para que nada mude no essencial.

O terceiro cenário parte da ideia que as medidas propostas no segundo cenário são importantes e urgentes, mas não são suficientes. Para além disso é necessário alterar os nossos modos de produção, de consumo e de vida em sociedade. Afinal, a vida humana é 0.01% da vida total do planeta mas comporta-se como se fosse dona do planeta, comprometendo os ciclos vitais deste sem saber que, com isso, está a comprometer a qualidade e até a possibilidade da vida humana no futuro mais ou menos longínquo.

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Cada cenário oferece uma narrativa da pandemia adequada a torná-lo o único possível e legítimo, e é apoiado social e politicamente pelas forças que mais beneficiarão com ele. Os três cenários representam os novos termos em que os conflitos sociais e políticos se travarão nas próximas décadas. O que vier a prevalecer terá um impacto importante na vida da sociedade, mas muito desigual nos diferentes países do mundo.

Os conflitos que cada cenário gerará não estão ainda mapeados e poderão surpreender-nos. Tão pouco é possível antecipar as consequências. Sabemos apenas que a oposição ao cenário que prevalecer será feita por referência a um dos outros possíveis cenários.  Neste momento pode afirmar-se que o primeiro cenário parece prevalecer globalmente. Este cenário tem várias manifestações muito diferentes e desigualmente distribuídas no mundo.

A violência repressiva do Estado

A primeira dessas manifestações é a violência repressiva do Estado perante a crise social que se agravou com a pandemia. Depois de 40 anos de concentração da riqueza e de ataque aos direitos económicos e sociais das classes populares, cada vez mais vulnerabilizadas pelas políticas neoliberais, já antes da pandemia tinham explodido em muitos países fortes protestos sociais contra a austeridade.

Com a pandemia, o abrandamento da actividade económica e os gastos emergenciais que, por mais insuficientes, tiveram de ser feitos, agravaram a situação financeira do Estado; a solução, típica do neoliberalismo, consistiu em fazer pagar o custo da crise a quem menos condições tinha para o fazer. E o povo está a dizer: Basta! Este cenário é já bem visível em alguns países de desenvolvimento intermédio que são governados por forças políticas de direita e que têm vindo a adoptar com mais fidelidade as políticas neoliberais. São os casos da Colômbia, do Brasil e da Índia.

A Índia é o retrato mais cruel do neoliberalismo. É a maior produtora de vacinas do mundo, mas não conseguiu vacinar a sua população, tem-na até desprotegido.

A Colômbia vive desde Abril um conflito social intenso, com uma greve nacional e o bloqueio de estradas protagonizado por organizações sociais indígenas, camponesas, sindicais e por movimentos espontâneos onde sobressaem os jovens “com fome e sem futuro”.

A repressão por parte do Estado tem sido violenta e desproporcionada, contando-se já com mais de 61 pessoas assassinadas pela polícia ou por actores armados ilegais em articulação com a polícia, 358 desaparecidos e 47 pessoas com lesões oculares. A cidade de Cali, a mais negra da Colômbia, e as regiões indígenas e camponeses do Cauca têm sido o epicentro. Um decreto presidencial de 28 de Maio, certamente inconstitucional, cria um verdadeiro estado de sítio que permite a “assistência militar” no uso da força e da violência contra a população civil e os protestos pacíficos.

O Brasil é hoje o laboratório mundial do negacionismo. Com cerca de 3% da população mundial, conta com 13% das mortes no mundo. A recusa militante das medidas sanitárias e da reserva de vacinas fez com que o vírus se propagasse descontroladamente atingindo as populações mais vulnerabilizadas, “pretas e pobres”, como se diz na gíria brasileira. Está em curso uma operação de darwinismo social, senão mesmo de uma política genocida, sobretudo no caso da população indígena.

Estão depositados no Congresso mais de cem pedidos de impeachment, foram apresentadas várias queixas por crimes contra a humanidade nos tribunais internacionais e foram interpostas várias acções judiciais para declarar a interdição por incapacidade mental do presidente. Entretanto, o país começou a despertar e a manifestar-se nas ruas contra esta política de morte. No passado dia 29 de Maio, cerca de 500 mil pessoas manifestaram-se em 213 cidades unidas pelo slogan “Fora Bolsonaro”.

A Índia é o retrato mais cruel do neoliberalismo. Sendo o maior produtor de vacinas do mundo, não conseguiu vacinar a sua população e, pelo contrário, desprotege-a activamente. O governo aproveitou a crise social para promulgar leis agrárias neoliberais que irão tornar ainda mais difíceis e precárias as condições de vida dos camponeses, a maioria da população. Converteu-se em caso exemplar de erro de cálculo por parte dos governantes. Pensando que a pandemia dificultaria os protestos sociais contra estas leis, o governo foi surpreendido por uma das maiores e mais duradouras mobilizações de camponeses das últimas décadas.

A nova guerra fria

A primeira geração da Guerra Fria terminou com a queda do Muro de Berlim. Mas como o capitalismo se alimenta de contradições que amiúde geram inimigos reais ou imaginados (guerra contra o comunismo, guerra contra as drogas, guerra contra o terrorismo, guerra contra a corrupção), não tardou a emergir uma nova guerra fria, desta vez tendo como inimigo principal a China, a que progressivamente se foi juntando a Rússia desovietizada.

Ainda que sempre disfarçada com terminologias idealistas (do tipo, democracia contra ditadura), do que sempre se trata é de controlar ou neutralizar reais ou potenciais concorrentes. Nesta nova geração da guerra fria a real contradição é entre o capitalismo de mercado, dominado pelo capital financeiro e pelas multinacionais norte-americanas, e o capitalismo de Estado dominado pela China, um império decadente contra um império ascendente.

A pandemia veio trazer uma nova agressividade à nova guerra fria. Por um lado, a China afirmou-se como a fábrica do mundo no que respeita aos produtos de protecção pessoal contra o vírus e teve um desempenho muito superior ao dos Estados Unidos na protecção dos cidadãos. Por outro lado, os avanços chineses na quarta revolução industrial (inteligência artificial) fizeram temer que a China se convertesse na primeira economia do mundo ainda antes de 2030, como inicialmente previsto nos estudos dos serviços secretos norte-americanos.

Perante este receio, a administração norte-americana intensificou a pressão sobre os aliados para travar o avanço da China. Este processo começou com o presidente Donald Trump e intensificou-se muito com o seu sucessor, Joe Biden. A origem do vírus é a mais recente arma da guerra fria.

Como aconteceu com epidemias anteriores, é sempre importante conhecer a origem do vírus, ainda que tal seja sempre difícil dada a impossibilidade de identificar o doente zero. O que é novo neste caso é a intensa politização da origem do vírus ao atribuí-la, sem provas, à China e ao converter a sua propagação num acidente laboratorial, senão mesmo num acto de guerra biológica. A teoria da conspiração do Laboratório Wuhan foi proposta logo em Janeiro de 2020 pela extrema-direita norte-americana de Steve Bannon em associação com um dissidente chinês para quem “o vírus tinha sido deliberadamente libertado pelo partido comunista chinês”.

Foi nisto que Trump se baseou para falar do “vírus chinês”. Depois da missão da Organização Mundial de Saúde (OMS) à China, esta teoria foi desacreditada, mesmo reconhecendo-se a quase impossibilidade de conhecer com precisão a origem do vírus. Mas como na guerra fria não se olha a meios para neutralizar o inimigo, a administração Biden voltou à carga e pressionou os seus aliados a promoverem as suspeitas. É bem possível que o período de pandemia intermitente em que possivelmente estamos a entrar crie novas oportunidades para a politização da pandemia em detrimento dos objectivos da OMS. É o caso da geopolítica das vacinas.

Capitalismo vacinal ou vacina popular

Como sabemos, a existência das vacinas é o único facto novo na protecção da vida em tempos de pandemia. As vacinas contra a COVID-19 foram criadas em tempo recorde e não é de espantar que, apesar de já estarem a ser produzidas em massa, haja ainda muitas incógnitas sobre a sua eficácia e potenciais efeitos secundários, e sobre se a população inoculada esteja a servir de cobaia.

Sabe-se, no entanto, que a efectiva protecção contra o vírus só terá lugar quando uma percentagem significativa da população do mundo estiver vacinada e que a protecção com as actuais vacinas será tanto mais eficaz quanto mais rapidamente isso ocorrer, pois só assim se impedirá que o vírus continue a propagar-se e a desenvolver novas variantes para as quais as vacinas não oferecem protecção. Apesar de todas as declarações e avisos da OMS neste sentido, é, por agora, evidente que o cenário do negacionismo está a prevalecer. Ou seja, a gravidade da pandemia não justifica nenhuma medida excepcional para a combater.

Assim, os direitos de propriedade intelectual (patentes) devem continuar a vigorar como em períodos normais, a produção e distribuição das vacinas deve estar exclusivamente a cargo das empresas farmacêuticas que as desenvolveram e as distribuirão com preços definidos pela lei da oferta e da procura. Esta posição é naturalmente defendida pelas próprias empresas farmacêuticas e pelos Estados mais desenvolvidos (e também pelo Brasil) e as instituições internacionais que subscrevem os interesses do capital multinacional.

A manutenção das patentes sobre a produção das vacinas vai atrasar perigosamente a vacinação da população mundial a tal ponto que a própria população vacinada acabará por ficar exposta ao vírus.

Esta posição significa um perigo para o mundo na medida em que vai atrasar a vacinação da população mundial. Acresce que há algo de moralmente detestável nesta posição quando assistimos à emergência de um verdadeiro apartheid vacinal entre a “euforia vacinal” dos países ricos (Israel com 59% da população totalmente vacinada) e o pesadelo vacinal da grande maioria da população mundial.

Os países menos desenvolvidos apenas receberam 0.3% das vacinas disponíveis até fim de Maio de 2021. Em países como o Brasil, Índia, Irão e Nepal, o vírus continua a propagar-se fora de controle, enquanto o Canadá encomendou vacinas para dez vezes a sua população e o Reino Unido para oito vezes.  Segundo a Vaccine Alliance, os países ricos terão comprado 1.5 mil milhões de doses em excesso.

Igualmente detestável é o que o New York Times de 29 de Maio designa por “turismo vacinal”. Trata-se da viagem a Miami dos membros das elites económicas e políticas da América Latina e de outras regiões do mundo para serem vacinados. Estas viagens incluem férias (o intervalo entre as doses) e custam milhares de dólares. E Miami não é o único paraíso vacinal do mundo. Que estas viagens possam ser veículos de propagação de novas variantes do vírus não ocorre nem a quem viaja nem a quem acolhe.

O capitalismo vacinal é o modo de acesso à vacina exclusivamente determinado pela solvência monetária, tanto própria como do Estado ou instituição que a adquire para distribuição interna. Se este modo de distribuição prevalecer, é muito provável que entremos num período de pandemia intermitente.

Não se trata, neste caso, da ocorrência de uma nova pandemia, mas da gestão prolongada da actual pandemia. Por exemplo, a manutenção das patentes sobre a produção das vacinas vai atrasar perigosamente a vacinação da população mundial, e a tal ponto que a própria população vacinada acabará por ficar exposta ao vírus. Não admira que muitas vozes se levantem contra o capitalismo vacinal e muitos grupos se organizem para promover alternativas de distribuição que sejam eticamente mais justas e materialmente mais eficazes para enfrentar a pandemia. As alternativas são diversas.

Algumas são informadas pelo cenário do gatopardismo (fazer mudanças para que o essencial não mude). É o caso da intensificação das doações de vacinas ou da promessa das empresas farmacêuticas de aumentarem as infraestruturas de produção. É esta a solução da Covax, a iniciativa que visa criar um fundo global de vacinas para distribuição mundial e que integra a OMS, a Gavi Vaccine Alliance e a CEPI (Coalition for Epidemic Preparedness Innovations).

O seu objectivo seria vacinar toda a população de risco e todo o pessoal de saúde até ao final de 2021, um quinto da população mundial. Seria um objectivo insuficiente, mas mesmo esse está comprometido pelo facto de cerca de 30 países mais ricos (a que se juntou o Brasil) terem abandonado a Covax.

A única alternativa eficaz ao capitalismo vacinal é a informada pelo cenário da alternativa civilizatória, que assume o carácter excepcional do tempo presente e a necessidade de inventar novas soluções que preparem a população mundial para evitar outras pandemias e se defender melhor das que ocorrerem. Entre essas soluções, estão a constituição de bens públicos universais como, por exemplo, a saúde e todos os medicamentos e vacinas considerados essenciais para a defender numa emergência sanitária.

No caso concreto das vacinas, têm vindo a circular no mundo várias petições para que a vacina contra a COVID-19 seja universalmente acessível. Os Presidentes da África do Sul e do Paquistão, entre mais de 140 figuras públicas de todo o mundo, pediram uma “vacina democrática”. Em Maio de 2021, a OXFAM lançou uma petição para uma vacina gratuita e acessível a todos. Segundo a OXFAM, custaria 25.000 milhões de dólares, o equivalente a menos de quatro meses de lucros das 10 maiores empresas farmacêuticas.

Também o grupo parlamentar GUE/NGL do Parlamento Europeu pediu (pela voz de Marisa Matias e Marc Botenga) uma vacina popular. Ricardo Petrella e a Ágora dos Habitantes da Terra lançaram uma campanha mundial por uma declaração da vacina como bem público livre e universal. Esta petição é parte de um movimento mais amplo por um sistema mundial comum e público de saúde e segurança da vida, livre de patentes, fora do mercado, baseado no direito universal à vida. Para atingir tal objectivo, no actual contexto de pandemia, bastaria que, com a justificação do investimento público aplicado na investigação da vacina, as universidades e os Estados em causa partilhassem todos os conhecimentos e todas as tecnologias disponíveis, depositando-os no Fundo de Acesso à Tecnologia da OMS.

A vacina popular é a única alternativa capaz de minimizar os custos sociais imensos que se projectam para os próximos tempos.

Estas ideias presidem à People’s Vaccine Alliance e contrapõem a cooperação à competição, a solidariedade ao lucro. Trata-se de uma vasta aliança mundial que considera as vacinas como um bem público universal e que, como tal, devem ser produzidas o mais rapidamente possível por todos laboratórios do mundo que tenham capacidade para isso e distribuídas a custo zero ou a preço acessível. Será esta a vacina popular.

Esta posição é defendida pela maioria dos países do Sul Global e por várias organizações e associações transnacionais de cidadania activa, de direitos humanos e de saúde pública. Desdobra-se em três propostas.

Primeiro, a suspensão das patentes sobre as vacinas e seus componentes e matérias-primas. A própria Fundação Bill e Melinda Gates, que foi inicialmente contrária à suspensão das patentes, veio a aderir a ela em 6 de Maio de 2021, já depois de os EUA se terem mostrado adeptos dessa solução. O lobby das empresas é considerado o mais poderoso do mundo e certamente está a mover-se para oferecer uma cerrada oposição.

Recordemos que quando há vinte anos o Brasil se propôs suspender as patentes dos retrovirais para combater eficazmente o HIV Sida, a reacção foi brutal, inclusivamente por parte dos EUA. Mas o Brasil prevaleceu e os resultados foram imediatos.

A segunda proposta é a da transferência de tecnologia para os países do Sul Global. A disponibilidade para a produção é total e a possibilidade efectiva é muito maior do que se pode imaginar. Quando a OMS anunciou a procura de produtores do mensageiro RNA (mRNA, o novo tipo de vacina) nos países do Sul Global foi inundada de propostas. O presidente Paul Kagame do Ruanda fez um apelo muito vigoroso nesse sentido na última assembleia da OMS, mostrando que a iniciativa Covax seria insuficiente porque limitada pelos interesses das multinacionais farmacêuticas. A terceira proposta consiste no apoio financeiro à própria produção no Sul Global.

A vacina popular é a única alternativa capaz de minimizar os custos sociais imensos que se projectam para os próximos tempos. Ela ocorre num tempo oportuno. Tem-se falado muito ultimamente da justiça histórica em relação ao mundo que sofreu a injustiça histórica do colonialismo e foi empobrecida pelo saque das suas riquezas e pela dependência económica a que ficou sujeito depois da independência política. Reside aqui uma oportunidade histórica de fazer justiça histórica.

O autor escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico