Analista de dados na Common Wealth, um think rank sediado em Londres, no Reino Unido.

Acolher refugiados ucranianos significa combater a exploração dos migrantes

Portugal tem sido elogiado pelas suas políticas de acolhimento de refugiados, mas terão os refugiados ucranianos que fugiram da guerra trocado uma situação violenta por outra?

Ensaio
14 Abril 2022

Um grande número de refugiados ucranianos cruzou nos últimos dois meses as fronteiras do seu país para escapar aos horrores da guerra. Mas, como as coisas estão, podem estar simplesmente a trocar uma situação violenta por outra: exploração e abuso por patrões sem escrúpulos e exigentes políticas de imigração.

Numa demonstração de esperança e solidariedade, muitos países europeus responderam à responsabilidade de acolher um cada vez maior número de pessoas que fogem da Ucrânia. A Polónia, onde mais de 2,5 milhões de refugiados atravessaram a fronteira, viu milhares das suas famílias acolherem refugiados nas suas casas. A Alemanha começou a abrir centros de acolhimento e a garantir de imediato o direito ao trabalho a adultos e o acesso à educação às crianças. E França, Espanha e Itália esperam receber centenas de milhares de refugiados nas próximas semanas.

Em Portugal, o primeiro-ministro, António Costa, garantiu aos ucranianos que procurem refúgio no país residência e integração na sociedade portuguesa, através de medidas de proteção temporárias que garantem o direito ao trabalho e o acesso a serviços sociais. Não é algo sem precedentes. Portugal foi recentemente louvado por instituições como o Alto Comissariado para os Refugiados das Nações Unidas (ACNUR) e pela Comissão Europeia pelas suas “políticas exemplares para os refugiados ao longo dos últimos anos” e por “liderar no acolhimento de refugiados”.

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Foi, aliás, enaltecido internacionalmente por em 2020, durante a pandemia de covid-19, ter regularizado temporariamente grandes números de requerentes de asilo e migrantes não documentados, para melhorar o seu acesso ao serviço nacional de saúde, serviços sociais e trabalho. Em resposta à crise de refugiados ucranianos, Costa afirmou o seu compromisso em acolher refugiados em Portugal com “condições dignas e oportunidades concretas de trabalho”, chegando mesmo a lançar uma plataforma do governo para os empregadores portugueses poderem contratar cidadãos ucranianos.

No entanto, as experiências dos ucranianos, e de outros migrantes, em Portugal têm levantado questões sobre a validade desta imagem cor-de-rosa, pintada pelo governo português e por instituições internacionais.

Os ucranianos que chegarem a Portugal não serão pioneiros. O país tem já uma significativa comunidade ucraniana, estabelecida nas últimas duas décadas, com números que atingiram o seu máximo no final da década de 2000, quando a comunidade se tornou a segunda maior. Nessa altura, os imigrantes ucranianos apenas eram ultrapassados pelos residentes brasileiros.

No seguimento da invasão russa no final de fevereiro, Costa salientou uma “experiência muito positiva da extraordinária comunidade ucraniana que vive no país há quase 20 anos” como a razão principal para oferecer um forte apoio aos refugiados. As novas chegadas terão uma comunidade já pronta e redes de apoio, e em alguns casos será possível reunir famílias separadas pela imigração que antecedeu a guerra, bem como pelo atual conflito.

Muitos ucranianos instalaram-se confortavelmente em Portugal nos últimos anos e têm desenvolvido fortes redes de amizade, o que se refletiu na criação de várias escolas suplementares ucranianas e na formação de associações que organizam, de Braga a Faro, grupos de danças folclóricas e outras atividades culturais. Em termos de trabalho e empregabilidade, os ucranianos em Portugal trabalham normalmente na construção e no sector de serviços domésticos, descritos como “trabalho intensivo e socialmente subvalorizado com rendimentos relativamente baixos”.

Abusos e exploração

Têm surgido inúmeros casos de abuso, exploração e tráfico de trabalhadores ucranianos em Portugal desde a viragem do século. Além disso, estes trabalhadores têm experienciado fracas condições de trabalho, semelhantes às de outros grupos minoritários no país, incluindo chineses, brasileiros, africanos e ciganos, sem esquecer outros cidadãos da Europa de Leste. As realidades preocupantes do trabalho migrante em Portugal foram noticiadas nos média estrangeiros, como aconteceu com a peça do The Guardian ao apresentar as condições de exploração e agressão policial enfrentadas por nepaleses e outros migrantes do sul da Ásia que trabalham como trabalhadores agrícolas.

Muitos ucranianos encontram a sua entrada no mercado laboral português através dos sectores agrícola e fabril. Os recém-chegados vão provavelmente viver nas condições relatadas por outros trabalhadores agrícolas migrantes: casas sobrelotadas e decrépitas, a que se acrescenta a violência de Estado.

O mau tratamento dos migrantes ucranianos em Portugal foi denunciado em 2020, depois da morte de Ilhor Homeniuk, cidadão ucraniano pontapeado, espancado e deixado a asfixiar por agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras num centro de detenção de migrantes no Aeroporto de Lisboa. A morte de Ilhor Homeniuk e o quadro mais alargado do uso da violência de Estado em Portugal foi incluído num relatório anual publicado pela Amnistia Internacional sobre a situação dos direitos humanos como exemplo de “falhanços na proteção de pessoas durante procedimentos fronteiriços”.

Um ambiente propício à exploração e à precariedade tem marcado a experiência dos ucranianos em Portugal. Apoiar políticas que protejam todos os trabalhadores protegerá os refugiados desta guerra contra os erros do passado.

Além disso, têm-se registado vários casos de abuso, exploração e tráfico de trabalhadores ucranianos no mercado laboral português. O crescimento da imigração laboral em Portugal criou um fluxo constante de trabalhadores que se tornaram exploráveis e precários por causa das suas identidades nacionais e étnicas. Estes trabalhadores desempenham um papel cada vez mais importante na economia nacional ao terem a esperança de um dia serem recompensados com um passaporte com o carimbo de um Estado-membro da União Europeia.

Os ucranianos assumiram este valioso e perigoso papel no mercado laboral português nas últimas duas décadas e o país passou a depender significativamente do capital que eles produzem. Ainda mais preocupante, têm sido relatados sinais de aparente tráfico humano entre os refugiados ucranianos que chegaram a Portugal no último mês, refletindo o tratamento desumano de migrantes vulneráveis à exploração no seguimento da invasão russa.

Enquanto países como Portugal devem ser elogiados por assumirem uma postura acolhedora e proativa na aceitação e integração dos refugiados na sociedade, as condições a que os migrantes são submetidos nos seus países de acolhimento devem ser aprofundadas. Neste caso, um ambiente propício à exploração, ao abuso laboral e à precariedade tem marcado nas últimas décadas a experiência dos ucranianos em Portugal. Apoiar políticas que protejam e reafirmem os direitos humanos e laborais de todos os trabalhadores garante que os migrantes não fugiram de uma situação violenta para entrarem noutra.

Uma primeira versão deste texto foi publicada na OpenDemocracy.