Ainda antes da cimeira começar, já os meios de comunicação e a opinião pública anunciavam a enorme desilusão que tudo aquilo seria. Na verdade, foi fácil ter razão. O Pacto Climático de Glasgow não podia ser pior: é uma morte anunciada a carvão. Mas nem tudo foi mau na COP26. Esta é a minha leitura.
Na altura em que lançou o primeiro volume das suas memórias, em novembro de 2020, Barack Obama relatou uma evidência que desarmava qualquer leitor, e que resume bem o contexto em que decorreram as negociações da COP26: a “dinâmica humana é surpreendentemente constante”, e toda a pequenez, brutalização, estupidez ou nonsense a que assistimos no liceu repete-se pela vida fora, até mesmo num congresso ou num encontro de uma convenção do G20. Todas as expectativas que se criam sobre uma realidade mais sofisticada, refletida e rigorosa da alta esfera política, madura e intelectual, desabam. As falhas e as vulnerabilidades repetem-se.
Depois de muitos discursos e muita narrativa oficial, o cenário foi aquele que de outras COP: de rascunho na mão, vão-se alterando palavras e vírgulas para tornar o compromisso cada vez mais vago e abrir portas para mais exploração de combustíveis fósseis.
Quando olhamos para as últimas imagens da COP26, com os líderes das 197 partes e os membros da presidência do evento agarrados a rascunhos daquele que é o documento oficial da cimeira, parece-nos assistir a um trabalho de grupo no liceu que está a correr mal. De tal maneira que o aluno que modera o trabalho, Alok Sharma, se agarrou à cabeça e quase verteu umas lágrimas, desesperado com a teimosia dos outros.
Depois de quinze dias de encontros à porta fechada e sessões abertas muito esclarecedoras na COP26, o último dia mostrou aquilo que a maioria já esperava: o Acordo de Paris não se vai cumprir e alguns países vão aumentar as emissões, principalmente através do carvão.
Feitas as contas, prevê-se que o objectivo de não ultrapassar o aumento de temperatura no máximo até 1,5 ºC (acima dos valores pré-industriais) não será alcançado, e que o mais provável é até ao final do século já estarmos a bater nos 2,4 ºC. Em vez de se baixar as emissões globais em 50% até 2030, acontecerá apenas na ordem dos 20%. Isto se formos muito conservadores nas contas. A maior parte dos analistas diz que o aumento será maior, e que em algumas partes do planeta a vida vai tornar-se insuportável por causa do calor.
Este foi o primeiro ano em que as diferentes partes entregaram os NDC (nationally determined contributions), planos nacionais que já deviam incluir as metas de cada um para a diminuição de exploração de combustíveis fósseis. Alguns planos foram entregues com atraso e vinham com lacunas nos objetivos, como foi o caso da China, da Austrália e da Rússia. A Índia disse que, por um lado, aumentava as energias renováveis e, por outro, aumentava a produção de carvão - fê-lo numa mensagem transmitida por papel e pessoalmente pelo presidente do país, num discurso desmoralizante no início da cimeira.
A base das negociações ao longo de quinze dias foram os NDC, enquanto decorriam sessões atrás de sessões, com mais de 40 mil delegados de 200 países e centenas de pessoas a falar em palestras, muitas delas contra o status quo. No final, após muitos discursos e muita narrativa oficial, o cenário foi aquele que já aconteceu nas outras COP: de rascunho na mão, vão-se alterando palavras e vírgulas, tudo para tornar o compromisso cada vez mais vago e abrir portas para mais exploração de combustíveis fósseis. A falácia aumenta quando começa a ser óbvio que os relatórios de emissões de cada país estão muitas vezes incompletos. Alguns países, como a Líbia, nem sequer entregam.
A facada final no dia 13 veio da Índia, que à última da hora quis mudar a frase de “eliminação progressiva do carvão” para “redução progressiva do carvão”. Fica assim aberta a legitimidade para aquele país continuar a explorar o combustível fóssil que mais contribui para o aquecimento global. A China juntou-se a este argumento, porque também vai aumentar a produção de carvão.
A COP26 optou pela mitigação e adaptação às alterações climáticas. Nem uma nem outra serão suficientes para apoiar verdadeiramente quem mais sofre com a mudança do clima.
Além disso, o conceito de “fim dos subsídios para de combustíveis fósseis” passou para “fim dos subsídios ineficientes” - tão abstracto que permite todas as leituras e mais algumas. Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA), é necessário fechar 40% das 8500 explorações de carvão até 2030 para ficarmos no limite dos 1,5 ºC.
Perante a indignação das outras partes (não só das pobres, mas também das ricas, como a Suiça), o presidente da COP26, Alok Sharma, aceitou as alterações do documento, para que o acordo não caísse por inteiro: “Peço desculpa pela forma como este processo se desenrolou. Sinto profundamente. Eu também entendo a profunda decepção. Mas, como vocês observaram, acho que é vital protegermos este pacote”.
Talvez esta tenha sido a última oportunidade de uma COP ser uma COP. Para o ano, a cimeira vai acontecer no Egipto, um país governado por um déspota, cujos interesses serão muitos, mas não serão de certeza baixar emissões de gases com efeito de estufa. Não haverá, muito provavelmente, espaço para uma Cimeira dos Povos, convenção paralela à COP26, nem manifestações pacíficas com mais de 150 mil pessoas.
No ano seguinte será nos Emirados Árabes Unidos. Para muitos dos analistas desta cimeira anual, e especialmente depois de se criarem expectativas com o Acordo de Paris, assinado em 2015, este era o momento crucial, o único em que seria possível chegar a um acordo. Daí as lágrimas ingénuas de Alok Sharma.
A COP é uma cimeira que deve continuar, só não contem muito com mudanças do sistema e uma súbita boa vontade dos grandes emissores. Estamos a ser engolidos por uma ilusão.
Da COP esperava-se também um maior compromisso por parte dos países ricos no apoio de 100 mil milhões de dólares para mitigação e adaptação (incluindo o ítem perdas e danos) aos países mais desfavorecidos. São estes que sofrem mais com o impacto das alterações climáticas. A ocorrência de fenómenos extremos já é visível em várias partes do planeta, mas as desigualdades sociais, carências e vulnerabilidades são sobretudo no hemisfério sul. De acordo com os planos das Nações Unidas, conseguir que este montante seja angariado e chegue ao destino tornou-se uma obrigação dos países ricos. No início da cimeira falava-se que esse montante seria reunido em 2022. No fim da cimeira apontava-se para 2025.
Para alguns dos oradores e líderes de diferentes países, essa compensação devia chegar com retroativos, porque temos para trás muitos anos de exploração de combustíveis fósseis, mas isso foi um assunto gradualmente afastado da mesa de negociações. Muitos dos discursos, como o de Mia Mottley, primeira-ministra dos Barbados, transpareceram essa desilusão. Nem a mitigação nem a adaptação serão suficientes para um verdadeiro apoio a quem precisa.
O Pacto Climático de Glasgow não foi exigente nesse compromisso dos países mais ricos. No entanto, faz parte dos planos de trabalho para os próximos tempos, através de um grupo que vai acompanhar os processos necessários de observação e intervenção nas perdas e danos causados pelo impacto das alterações climáticas. A União Europeia deu 27 mil milhões dos 80 mil milhões reunidos em 2020. Frans Timmermans, vice-presidente da Comissão Europeia, foi um dos que exigiu mais esforço das outras partes.
Também o Artigo 6 do Livro de Regras de Paris parecia ter uma evolução positiva, porque se trata da definição do mercado de carbono realizada através da UNFCCC. Pretende-se que seja mais eficiente e compense os países mais desfavorecidos. Mas isso não significa necessariamente que as intenções - as receitas serem canalizadas para a adaptação - se venham a concretizar, porque o documento continua vago. Na verdade, não cria novas regras, tudo depende das ações de cada país. Tratar a emissão de dióxido de carbono como um produto com valor nas transações de mercado financeiro é, à partida, uma incongruência.
A assinatura da Declaração das Florestas e Uso do Solo pode ser o grande passo desta COP. Decretado no segundo dia da cimeira, foi um dos assuntos mais debatidos dentro e fora de portas, porque surpreendeu a maior parte dos participantes. O que está escrito no documento, subscrito por 100 países, será benéfico se não significar mais dívidas para os países em desenvolvimento, e se a monitorização e a fiscalização permitirem que os valores subsidiados sejam implementados em projetos que beneficiem as comunidades, e não em “apostas na tecnologia” ou mais greenwashing.
Nos países onde se encontram as maiores florestas do mundo - Brasil, Colômbia e Congo, por exemplo - esses montantes têm de representar um apoio significativo às populações indígenas. São aquelas que, segundo todos os participantes da cimeira, detêm mais conhecimento sobre o significado de proteção da Natureza. Se esta declaração tiver um rumo acertado entre todas as partes e um compromisso de todos os países, pode ser o único lado positivo desta COP. Caso contrário, vai servir apenas para alguns Estados receberem um bónus para não desmatar.
Além disso, há mais a retirar desta cimeira. Tudo o que se passou naqueles dias foi um momento único de troca de informação e partilha de conhecimento sobre alterações climáticas, algo que não acontece em mais nenhuma ocasião. É dado o mesmo tempo de antena a países pequenos e aos Estados que representam o grande poder económico. Todos têm igual oportunidade de falar.
É caso para dizer que é uma cimeira que deve continuar, só não contem muito com mudanças do sistema e uma súbita boa vontade dos grandes emissores. Eles vão continuar a marcar posição, a falar de transição energética (“but not so fast”), a receber financiamentos bancários e aprovações dos governos, a patrocinar cimeiras como a COP e eventos “verdes”. Estamos a ser engolidos por uma ilusão. Agora é aprender a lidar com isso, e dar novos passos à margem das COP.
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