O jovem cabo-verdiano de 21 anos morreu há dois anos e o julgamento dos alegados responsáveis ainda decorre. A defesa argumenta que a sua morte foi consequência de uma queda, a família não duvida que a causa foi uma agressão. Surgiu uma prova que poderá ser crucial: a última mensagem de Luis Giovani enviada a uma amiga na qual diz que levou uma pancada na cabeça.
Há dois anos que um oceano os separava. Joaquim Rodrigues soube da morte do filho quando estava em Cabo Verde, enquanto a mulher, Matilde Rodrigues, estava emigrada nos Estados Unidos. A pandemia de covid-19 interpôs-se e só recentemente se conseguiram voltar a abraçar, e a fazer juntos o luto por Luis Giovani.
“É a primeira vez que eu e a minha esposa nos vemos desde o falecimento do Giovani”, disse Joaquim Rodrigues ao Setenta e Quatro por videochamada. Fala devagar, em tom baixo e as frases tendem a ser curtas. "Estes dois anos de espera à distância foram muito difíceis”, acrescenta com pesar, referindo que tinha intenções de se reencontrar com Matilde há mais tempo.
Joaquim ainda tem o momento do reencontro claro na sua cabeça. “Foi muito forte, como se estivéssemos a reviver tudo. Agora sinto-me um pouco melhor, mas continuamos ansiosos. Continuamos à espera do desfecho do julgamento que, pronto, acho que está a demorar um pouco, já lá vão praticamente dois anos e ainda continuamos à espera.”
Depois de ter sido surpreendido, com mais três amigos, numa emboscada organizada por um grupo de portugueses, Giovani foi encontrado sozinho e inconsciente, caído na Avenida Sá Carneiro, na madrugada de 21 de dezembro de 2019. O local estava a mais de meio quilómetro e alguns minutos a pé do bar Lagoa Azul, em Bragança, onde terá começado um alegado desacato no seu interior.
O relatório da autópsia aponta como causa da morte "um traumatismo craniano que resultou de um choque violento com algo contundente”. A defesa tem tentado defender a tese de que a morte de Giovani não se deveu ao ataque dos arguidos, mas a uma queda nas escadas. Os pais de Giovani não têm dúvidas que o processo confirma em vários momentos que a morte se deve às agressões.
Joaquim Rodrigues diz ter razões para se sentir esperançoso com o desfecho do julgamento, confessa ao Setenta e Quatro. Uma amiga próxima de Giovani, com quem o jovem terá trocado mensagens na aplicação Viber a noite toda, enviou a Matilde uma captura de ecrã daquela que terá sido a última mensagem que trocou com o estudante cabo-verdiano antes deste ficar inconsciente.
“Falaram a noite toda e depois daquela [mensagem] não houve mais resposta”, conta ao Setenta e Quatro. “Desde o início que sabíamos que o Giovani morreu pelas agressões que sofreu. Eu cheguei a ver com os meus próprios olhos a cabeça do meu filho, teria de ser uma queda de um terceiro piso. Uma pessoa não pega uma pancada daquelas a cair com a força do corpo, impossível”, garante.
O pai de Giovani foi surpreendido com a estratégia dos advogados de defesa e foi a sua esposa que deixou de imediato claro que não fazia sentido por mais voltas que dessem: “Como é que estão a dizer que o Giovani poderá ter caído e batido com a cabeça na escada, se eu tenho uma foto de uma mensagem que ele próprio diz que levou uma pancada na cabeça?”. A mensagem foi enviada às 3h30 da madrugada de 21 de dezembro de 2019.
“Estava escrito em crioulo mas há uma palavra que tanto em crioulo como em português tem o mesmo significado que é 'pancada'. ‘Levei uma pancada na cabeça’ é uma prova muito forte”, conta Joaquim. Apesar das dificuldades financeiras e dos entraves da pandemia, o pai de Giovani, que vive em Cabo Verde, conseguiu viajar até Portugal para prestar declarações sobre a mensagem.
Por sua vez, a amiga de Giovani, que entretanto também enviou mais material da conversa dessa noite, acabou por prestar declarações por videochamada. Depois de dizer que levou a pancada, a amiga perguntou-lhe “a sério?” E ele respondeu “ya”. A seguir, só silêncio.
Luis Giovani dos Santos Rodrigues tinha 21 anos e chegara a Portugal há menos de dois meses para estudar em Bragança. Frequentava o curso de Design de Jogos Digitais no Instituto Politécnico de Bragança, no campus de Mirandela. Nasceu em Mosteiros, na ilha do Fogo, em Cabo-Verde, era apaixonado por música e tocava piano na igreja desde criança.
Giovani acabou por não resistir a um traumatismo cranioencefálico. Eram cerca das três da manhã do dia 31 de dezembro quando o coração de Giovani parou de bater. O jovem esteve em coma durante dez dias no Hospital de Santo António, no Porto, após transferência do hospital de Bragança. A família terá sido informada por volta das nove da manhã do mesmo dia.
“Foi uma notícia terrível, estava em Cabo Verde quando ouvi que o Giovani foi agredido. Uma pessoa que nunca esteve envolvida em conflito algum é sempre algo surpreendente para toda a família. Depois veio o culminar da morte dele, mais grave de tudo”, relembra Joaquim ao Setenta e Quatro.
No dia de Natal, dias antes de Giovani morrer, o seu pai conseguiu viajar de Cabo Verde para Portugal. A mãe, emigrada nos Estados Unidos, não teve a mesma possibilidade. “[Foi a] Primeira vez que teve um problema, que nem sequer era dele, era com um amigo. Estava no seu cantinho, vem alguém e atira com um pau que levou à sua morte. É uma situação que deixa toda a gente apavorada, todos esperamos que a justiça seja feita. Não podem continuar a ficar livres. Têm de ser condenados”, relembra Joaquim.
O funeral realizou-se a 18 de janeiro na cidade dos Mosteiros, Ilha do Fogo, onde centenas de pessoas acompanharam o cortejo fúnebre. As imagens deixaram "emocionado" o antigo primeiro-ministro de Cabo-Verde, José Maria Pereira Neves, que, numa mensagem publicada na sua página de Facebook, descreveu o momento como “sublime”.
A morte de Luis Giovani levou milhares de pessoas às ruas em protestos e vigílias em Lisboa, Bragança, Coimbra, Porto, Covilhã, Guarda, Praia (Cabo Verde), Londres, Paris e no Luxemburgo. Joaquim diz que jamais se esquecerá da solidariedade mostrada por cabo-verdianos e portugueses. Só em Lisboa cerca de três mil pessoas juntaram-se no Terreiro do Paço para 20 minutos de silêncio, seguidas de uma caminhada que cortou o trânsito até ao Marquês de Pombal. Exigiu-se o fim do racismo e justiça.
“Desde o início que sabíamos que o Giovani morreu pelas agressões que sofreu. Eu cheguei a ver com os meus próprios olhos a cabeça do meu filho", conta a mãe de Giovani.
Apesar de a Polícia Judiciária ter descartado a hipótese de se tratar de um crime racial poucos dias depois de ficar responsável pelo caso, no início de janeiro, foram várias as personalidades públicas, entre as quais Joacine Katar-Moreira (Livre), José Soeiro (BE), Isabel Moreira (PS), que apontaram o racismo como hipótese de origem da tragédia.
O governo português lamentou a "bárbara agressão" que resultou na morte de um estudante cabo-verdiano em Bragança, deixando garantias de que os responsáveis seriam identificados e levados à justiça, segundo escreveu o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal na rede social Twitter. O ministro dos Negócios Estrangeiros e Comunidades de Cabo Verde, Luís Filipe Tavares, também mostrou o seu “choque” e pediu “celeridade” no “esclarecimento cabal” pelas autoridades portuguesas.
A primeira pessoa a relatar o que se terá passado na madrugada de 21 de dezembro de 2020 foi Reinaldo Rodrigues, contacto oficial entre as autoridades e o hospital, designado pela embaixada de Cabo Verde por ser o familiar mais próximo de Giovani em Portugal. “Conseguiu unir os primos todos aqui. E eu nem cheguei a vê-lo”, desabafava o primo Reinaldo ao Contacto no início de janeiro, enquanto recebia em casa os nove primos que não se encontravam há “mais de doze anos”. Também se foram juntando amigos de Giovani.
Reinaldo foi também o primeiro elo de ligação aos três jovens que estavam com Giovani na noite em que tudo aconteceu, e relatou a versão que lhe contaram. “Ele veio para cá e estava num fervor para conhecer, descobrir. A 20 de dezembro havia uma festa no bar Lagoa Azul, em Bragança, e eles quiseram muito ir”, narrou. Juntou-se um outro amigo mais velho a viver em Portugal há mais tempo e a noite terá corrido bem para os quatro jovens da ilha do Fogo, até que chegou a hora de se irem embora.
Reinaldo descreveu que “estavam na fila, à saída, para poder pagar. O Giovani estava a conversar com o amigo mais velho, no movimento de dar um passo para a frente, um passo para trás, um deles esbarrou numa menina”. Terá sido nesse momento que o “suposto namorado” da rapariga lhes terá dado um empurrão. Quando os três jovens falaram pela primeira vez à comunicação social, confirmaram esta versão.
“Foi no momento em que tentaram socorrer-me que o Giovani foi brutalmente espancado na cabeça”, conta um dos jovens agredidos.
Segundo estes relatos, “no calor da agitação, terá sido o DJ local, juntamente com o segurança, a acalmarem os intervenientes, tendo avisado os jovens cabo-verdianos que conheciam o tipo de situação e as pessoas em causa e que ‘era melhor não alimentar aquilo´ porque podia dar-lhes problemas”. As pessoas foram saindo e, continua Reinaldo, os quatro “foram aconselhados a esperar dentro do estabelecimento alguns minutos depois de fecharem, para ser evitada mais confusão à porta”. Uma das testemunhas presentes no bar, que pediu para não ser identificada, confirmou que Giovani não fez parte deste confronto no interior do bar, escreveu o Contacto.
Os quatro amigos cabo-verdianos terão esperado “cerca de 20 minutos dentro do bar Lagoa Azul”, já depois do estabelecimento fechar, segundo a primeira versão dos factos. “Foi esse o tempo que os agressores tiveram para reunir o grupo e as armas. Quando eles [Giovani e os amigos] saíram da discoteca, uns 300 metros à frente estavam cerca de 15 rapazes em três grupos armados com cintos, ferros e paus”, contou o familiar mais próximo de Giovani em Portugal.
No bar, porém, a versão dos acontecimentos foi um pouco diferente, segundo o comunicado publicado na página de Facebook a 4 de janeiro de 2020. "Não é verdade que tenha sido dito por alguém do Lagoa Azul que podia haver problemas. E também não é verdade que o grupo do Giovani tenha ficado 20 minutos dentro do bar à espera", lê-se no comunicado.
O que sucedeu, segundo esta outra versão dos acontecimentos, é que dois clientes entraram em confronto porque um queria furar a fila de pagamento. “Nessa altercação não participou em nada o Luís Giovani, que nem sequer estaria junto das pessoas em causa - facto que, de acordo com esta fonte do Diário de Notícias, as imagens de videovigilância comprovam -, mas a pessoa que estava a tentar furar faria parte do seu grupo”, continua a declaração da gerência do bar.
Essa pessoa terá sido levada para uma zona reservada, argumenta."Um funcionário do estabelecimento, quando se apercebeu do desentendimento, pediu a um dos intervenientes no conflito que o acompanhasse até uma área de acesso restrito no bar, neste caso para a cabina de som do DJ. Aqui foi pedido à pessoa que se acalmasse, o que aconteceu. Após alguns minutos, este cliente, aparentemente calmo, pediu para sair, que estaria tudo bem e que não se confrontaria com mais ninguém”, conta a gerência. “No interior do bar e nas áreas de acesso não aconteceu qualquer tipo de envolvimento físico entre os dois intervenientes, como está confirmado pelas imagens de videovigilância do bar e que foram solicitadas e já entregues pelas [sic] autoridades.”
Mas os relatos das pessoas ligadas ao bar não coincidiram, apontou na altura a jornalista Fernanda Câncio no Diário de Notícias. “Se o respetivo dono, Virgílio Afonso, disse ao Expresso que Giovani saiu com os amigos "por volta das três, quando já estávamos a fechar", atribui-lhe a companhia de apenas duas pessoas (o primo de Giovani fala de três, como já vimos, e outra pessoa ligada ao bar de quatro) e assevera que a altercação existente na fila de pagamento, ‘único problema daquela noite", não incluiu "nem Giovani nem qualquer um dos seus amigos”.
Os jovens que acompanhavam Luís Giovani Rodrigues, que também disseram ter sido vítimas de agressões, chegaram a narrar ao Contacto o que se terá passado naquela noite. Preservando a identidade das vítimas, o jornal sediado no Luxemburgo descreveu-os apenas como três rapazes magros de estatura média e idades entre os 19 e os 23 anos, com a aparência física de três adolescentes. Estaturas que dificilmente fazem deles pessoas ameaçadoras.
O mais velho dos três rapazes confirmou o que Reinaldo Rodrigues, primo de Giovani, havia narrado ao Contacto. Dentro do estabelecimento Lagoa Azul tudo “começou comigo, mas lá fora bateram em nós os quatro”. O jovem conta que “um indivíduo português” o terá empurrado no peito, ao que ele terá também respondido com um empurrão. Terá sido depois do jovem cabo-verdiano levar “um murro no pescoço” que chegaram pessoas do bar para os separar. Uma das testemunhas presentes no bar, que não quis ser identificada, confirmou ao Contacto que Giovani não fez parte deste confronto no interior do bar.
Os três jovens disseram “em uníssono” terem sido aconselhados a esperar, tendo aguardado dentro do estabelecimento “cerca de vinte minutos”, já depois do bar encerrar, relata o jornal luxemburguês. O grupo dos agressores estariam escondidos nos dois lados da rua, “mas primeiro abordaram-nos quatro indivíduos” a cerca de “50 metros do bar”.
Um dos agressores terá olhado para o jovem de 23 anos e terá dito, em português, “aí está o caralho”, servindo de mote ao alegado início das agressões. Terá sido nesse espaço de tempo que os restantes elementos se terão juntado aos primeiros quatro, escreveu o Contacto. “Vieram mais para cima de mim”, contou o jovem ao mesmo tempo que descreveu como o grupo de 10 a 15 elementos o cercava enquanto lhes batia.
Os amigos tentaram ajudar-se uns aos outros, mas terão sido “todos espancados”, os agressores não terão falado durante a agressão, “estavam só a descarregar". Segundo o Contacto, o jovem mais velho falava, de mãos entrelaçadas, dando a oportunidade de se verem “ferimentos nos dedos, ainda marcas do sucedido”. Os agressores, que as vítimas confirmaram serem todos homens, teriam com eles “paus, cintos e ferros”.
Além da primeira reação dos polícias de Giovani estar alcoolizado, contou Joaquim Rodrigues, amigos do filho relataram-lhe que os bombeiros da ambulância lhes disseram “para não mencionar isso, para dizerem que caiu no chão, ou teriam de pagar 150 euros."
“Foi nesse momento em que tentaram socorrer-me que o Giovani foi brutalmente espancado na cabeça”. Um dos recém-chegados a Portugal, o mais novo, descreve que foi criado um círculo à volta de Giovani, e que ele terá sido agredido com uma paulada, “mas que também levou em mais sítios”.
Os jovens cabo-verdianos contaram, na altura, que tudo terá acontecido ao mesmo tempo, “nós também estávamos a ser violentados, mas conseguimos entrar no círculo do Giovani para o tirar”. O jovem estaria no chão, tendo sido retirado do centro pelos amigos. “Lutámos a tentar defender e conseguimos correr os quatro juntos. Só havia uma saída porque o outro lado estava fechado com indivíduos do grupo”. Os jovens terão corrido pela rua, perseguidos pelo grupo, lê-se.
Terá sido apenas quando um carro patrulha da polícia “veio por esse lado que eles fugiram”. “Nós descemos umas escadas que vão para a avenida principal e conseguimos salvar-nos nesse momento”, recorda o jovem de 23 anos.
Giovani ter-se-á sentado, queixando-se com dores na cabeça e os amigos ter-lhe-ão perguntado se queria ir ao hospital, ao que respondeu que não. Um deles ficou com Giovani, enquanto os outros dois voltaram para trás para procurar a carteira e o telemóvel. “Ele estava sentado, eu levantado e eu também não pensei que fosse uma coisa tão grave. Quando voltei a ver o Giovani, o Giovani não estava aí. Corri atrás à procura dele, não o encontrei. Chamei-os [aos outros dois amigos], também procuraram. Fomos até casa e encontrámos o Giovani com a polícia na avenida”.
Num primeiro momento, a PSP adiantou que houve agressões de ambas as partes, do grupo de Giovani e do dos detidos, e dois momentos de agressões, um ainda perto do bar e o outro em local mais afastado, possivelmente próximo do local onde Giovani foi encontrado, inanimado, de acordo com o Diário de Notícias, em janeiro de 2020.
“Houve às 3.15 horas de 21 de dezembro um report de desordem no exterior de um bar na Avenida Sá Carneiro, tendo agentes da PSP, quando chegaram ao local, pelas 3.21 horas, encontrado apenas dois indivíduos, um dos quais disse ter sido agredidos por um grupo de jovens, recusando apresentar queixa ou ser levado ao hospital”, disse uma fonte judicial ao jornal lisboeta.
A PSP afirmou ainda que os seus agentes, já com conhecimento das características dos agressores, fornecidas pelos amigos de Giovani, “realizaram diligências pela cidade no sentido de localizar os suspeitos ou possíveis testemunhas, sem resultados”.
Ao referir dois momentos de agressões, a PSP fala de duas patrulhas diferentes: “Pelas 03h45, um outro meio policial, que se encontrava em serviço de patrulha na cidade, deparou-se com um jovem caído no solo, inanimado e com forte odor a álcool proveniente do vomitado no seu vestuário”. No entanto, o alerta sobre o jovem caído na rua chegou aos bombeiros pelas 4 horas da manhã, quase uma hora depois. O local do bar e onde Giovani caiu estão a pouco mais de 500 metros, o que fez com que o Diário de Notícias questionasse “sobre o que terá acontecido num tão grande período de tempo”.
Joaquim Rodrigues, pai da vítima, que na altura disse ter aguentado “todo o tempo calado”, adiantou na altura que “os miúdos” lhe haviam “contado tudo”: “Os rapazes encontraram o Giovani com a polícia, na rua, e ele tinha a camisa desabotoada e estava deitado de lado", descreveu nos relatos publicados pelo Contacto. "Eles ouviram a polícia telefonar duas vezes para vir a ambulância e disseram em frente a eles que era caso de álcool, ao que eles corrigiram logo dizendo que Giovani tinha levado uma paulada. Só isto em si já é inadmissível, que um agente policial faça esse tipo de comentários sem haver um teste".
Só depois de chegar ao local e avaliar a vítima é "que a equipa de emergência descobriu um ferimento na cabeça” e "verificou que se tratava de um possível traumatismo craniano", indicou o segundo comandante dos bombeiros de Bragança, Carlos Martins. A possibilidade de o ferimento ter resultado de agressão foi levantada já depois de a vítima ter sido conduzida ao hospital de Bragança e transferida para outra unidade hospitalar, desta vez no Porto.
Além da primeira reação dos polícias de Giovani estar alcoolizado, contou Joaquim Rodrigues, amigos do filho relataram-lhe que os bombeiros da ambulância lhes disseram “para não mencionar isso, para dizerem que caiu no chão, ou teriam de pagar 150 euros. A PSP, cujos agentes se mantinham no local, não foi na altura capaz de comentar estas afirmações “por ser domingo, não se apresentava ninguém no posto da PSP de Bragança”.
A PSP, que foi responsável pelo caso antes da PJ, não terá sequer ido ao estabelecimento averiguar o que se havia passado e garantiu que não houve queixas de outras agressões naquela noite em Bragança.
Um dos cinco suspeitos identificados pelo homicídio de Luis Giovani Rodrigues, Ângelo Morais, terá sido bombeiro em Bragança até 2019, noticiou o Correio da Manhã. No entanto, o comandante dos Bombeiros Voluntários de Bragança, José Fernandes, não acredita que nenhum dos seus homens “se meta nessas conversas”. “Fizemos um excelente trabalho em tempo recorde”, garantiu ao jornal luxemburguês ainda em meados de janeiro de 2020, referindo que receberam “o alerta via CODU-INEM às 4h da manhã tendo chegado ao local às 4:03 da manhã”.
Giovani terá sido socorrido em sete minutos, uma vez que a ambulância "saiu do local às 4:10 e chegou ao hospital às 4:19 da manhã". Segundo o comunicado da PSP, a assistência médica do INEM foi acionada às 03:48, pelo que terão passado 15 minutos entre a chamada da PSP e a chegada da ambulância. É sobre este espaço de tempo que o pai de Giovani quis ser esclarecido e até hoje, dois anos depois, não obteve resposta, confirmou ao Setenta e Quatro.
Há, no entanto, outras questões que ainda hoje não saem da cabeça de Joaquim Rodrigues. O pai de Giovani entende que o primeiro erro desta investigação foi ter esperado tanto tempo para começar. "Eles [a polícia] nem quiseram registar queixa. Se me disseram a mim na cara que tinha de ser o próprio a apresentar, imagine”, disse na altura com indignação. A investigação da Polícia Judiciária (PJ) só começou no último dia de 2020, “quando o meu filho morreu”, comentou.
Treze dias depois da morte do seu filho, Rodrigues garantiu ao Contacto que a PSP negou aos três jovens cabo-verdianos que acompanhavam Giovani que apresentassem queixa. Os jovens não desistiram e, no dia seguinte, dirigiram-se novamente à esquadra para denunciar o caso, desta vez com um novo trunfo na manga: um deles já era testemunha na queixa feita no hospital.
"Os miúdos estavam aflitos, não são de cá, fazem o que lhes mandam. Quando eles foram apresentar queixa à esquadra da PSP negaram-lhes que apresentassem queixa. Disseram-lhes que tinha de ser o próprio a apresentar queixa e que Giovani tinha seis meses para o fazer. Claro que os miúdos voltaram para trás”, comentou o pai ao Contacto.
Não foi uma situação única. No final de dezembro, Giovani ainda estava em coma, Joaquim Rodrigues fez-se acompanhar do amigo Paulo para ir à esquadra da PSP de Bragança. Queria apresentar queixa-crime, mas foi “muito muito mal recebido pela polícia” e não o queriam deixar apresentar queixa, garantiu. O seu amigo Paulo confirmou a sua versão dos factos.
“Vim apresentar queixa-crime pelo meu filho, que foi brutalmente agredido", ao que o agente terá respondido: "sobre este caso só o ofendido pode apresentar queixa". O pai de Giovani insistiu: "mas o meu filho está em coma profundo!". A resposta não foi diferente: "Ele tem seis meses para apresentar queixa", descreveu Rodrigues, claramente exaltado pelas memórias. "O Giovani está em coma profundo e nem sequer sabemos se vai sobreviver ou não. Ele pode não ter seis meses!"
Terá sido aí que os mandaram aguardar. Foram então recebidos por outro elemento da esquadra. "Entrei no gabinete, identifiquei-me, disse-me que tiveram ocorrência da situação e em vez de registar queixa-crime, fez um reforço da queixa apresentada no hospital em que eu quis acrescentar que levou com bastão na cabeça e que o estado em que se encontrava era de coma profundo. Não me foi dada nenhuma cópia”, contou ao jornal luxemburguês.
Além das agressões de que o seu filho foi alvo, a motivação do pai de Giovani era clara: não conseguia “ficar mais tempo calado”. O comunicado da PSP sobre os acontecimentos daquela noite, no qual afirmou que “desenvolveu as diligências necessárias para a investigação dos factos e respetivas circunstâncias”, foi a gota de água.
A PSP, que foi responsável pelo caso antes da PJ, não terá sequer ido ao estabelecimento averiguar o que se havia passado e garantiu que não houve queixas de outras agressões naquela noite em Bragança. O Diário de Notícias, citando um membro da PJ, escreveu que a polícia científica chegou “dez dias atrasada ao caso”, indicando não haver nenhuma investigação prévia.
A PSP contesta, porém, esta versão dos factos e assegurou que “desde o primeiro momento desenvolveu as diligências necessárias para a investigação dos factos e respetivas circunstâncias, designadamente salvaguardando as imagens dos sistemas de videovigilância e promovendo a recolha de testemunhos”. “Perante o conhecimento do falecimento deste cidadão, a PSP informou de imediato a Polícia Judiciária de Vila Real, por força das competências legais de investigação", lê-se no comunicado da PSP.
Mal a PJ tomou conta das investigações à morte de Giovani, não demorou muito até que identificasse e detivesse alguns dos 15 suspeitos que terão estado envolvidos nas agressões ao estudante cabo-verdiano. E, duas semanas depois, deteve outros cinco elementos do grupo que considerou pertencerem ao “núcleo duro que perpetrou as agressões”, nas palavras de Luís Neves, diretor nacional da PJ. Os sete elementos, com idades entre os 22 e os 25 anos e residentes em Bragança, não detinham antecedentes criminais.
O tribunal de Bragança ditou a cinco a prisão preventiva por haver “fortes indícios da prática, por cada um dos arguidos, em coautoria material e concurso real, de quatro crimes de homicídio qualificado, um dos quais consumado, sendo dele vítima Giovani Rodrigues, e os restantes três na forma tentada".
A defesa argumenta que o traumatismo craniano não se deveu a agressões, mas sim a uma queda.
O órgão judicial considerou ainda não ter sido “apurado qualquer indício no sentido de os factos praticados pelos arguidos terem sido determinados por ódio racial ou gerado pela cor, origem étnica ou nacionalidade das vítimas”. E a decisão esclareceu que "a especial censurabilidade que, nesta fase indiciária, justifica a qualificação dos crimes assenta na circunstância de os arguidos terem sido determinados nas suas ações por motivo fútil e ainda por atuarem em grupo”.
A morte de Giovani ganhou destaque nacional e, numa conferência de imprensa “inédita” em Vila Real, o diretor nacional da PJ disse que na “base dos factos estão motivos fúteis, motivos de uma desavença que ocorreu no interior do espaço lúdico e que teve, depois, desenvolvimento no seu exterior".
O julgamento que começou a 10 de fevereiro de 2021 encontra-se agora na fase final. O Ministério Público acusou sete arguidos de homicídio qualificado consumado e tentado contra Giovani Rodrigues e os seus três amigos cabo-verdianos. Mas da frase de instrução resultou que as acusações fossem outras: um crime de homicídio qualificado e três de ofensas à integridade física qualificadas. Um oitavo arguido, o antigo bombeiro, foi acusado de favorecimento por alegadamente ter guardado a alegada arma do crime, mas a acusação caiu na fase de instrução.
O julgamento tem tido ainda alguns atrasos, refere Joaquim Rodrigues, que é assistente do processo. Um dos atrasos deveu-se ao advogado de um dos arguidos ter sido candidato a uma junta de freguesia e ter pedido ao tribunal para não marcar novas datas no período oficial da campanha eleitoral. E outra sessão judicial foi adiada por falta de funcionários judiciais devido à greve nacional convocada pelo Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ) para 1 de setembro, em defesa das reivindicações destes trabalhadores.
Por isso, o julgamento apenas foi retomado a 11 de outubro. A defesa tem seguido desde o primeiro momento a estratégia de levantar dúvidas sobre a causa da morte apontada pela acusação. Argumenta que o traumatismo craniano não se deveu a agressões, mas sim a um ferimento que a vítima terá sofrido numa queda, como relataram algumas testemunhas ouvidas no inquérito.
Um dos arguidos, Jorge Liberato, disse ter visto os demais arguidos usarem cintos para baterem nos africanos, nomeadamente em Giovani, que viu ser agredido, ainda, com o pau. No entanto, não se lembra se na cabeça ou no ombro.
A defesa tem usado como elemento de prova o relatório da autópsia, pois este refere que a morte se deveu a um choque violento com algo contundente. Fazem-no ao mesmo tempo que afirmam que o mesmo relatório é inconclusivo sobre a causa do traumatismo. Ao contrário do que esperava a defesa, os depoimentos do médico responsável pela autópsia e do inspetor da Polícia Judiciária não foram considerados esclarecedores.
O médico responsável pela autópsia explicou que a morte do jovem se deveu a um traumatismo craniano frontal, sem que pudesse estabelecer causalidade direta com a sua origem - se o embate com um objeto estático na sequência de uma queda ou se com uma agressão. Também disse não dispor de elementos que possam garantir que a lesão tenha resultado de uma agressão e o corpo não apresentava outras lesões ou cicatrizes, consequências de uma queda, mas como já tinham passados dez dias desde a contenda, eventuais marcas já poderiam ter sarado.
As suas palavras não foram, portanto, conclusivas e a defesa chamou como testemunha um perito forense que também foi incapaz de atribuir a causa da morte. “Há uma pancada única, há. Agora, foi uma pancada única, se foi de agressão, se foi acidental, isso já estaria a caminhar no sentido da adivinhação”, disse Duarte Nuno Vieira, perito forense e ex-presidente do Instituto de Medicina Legal.
Porém, a primeira das três vítimas de agressão a ser ouvida, logo no início de março deste ano, esclareceu que Giovani não caiu nas escadas, apenas tropeçou, tendo-se agarrado a um corrimão para se equilibrar. As agressões na cabeça ao estudante cabo-verdiano foram confirmadas por um dos amigos que acompanhava o jovem na madrugada das agressões e que também foi agredido.
Um dos arguidos, Jorge Liberato, alegando não ter agredido qualquer pessoa, disse ter visto os demais arguidos usarem cintos para baterem nos africanos, nomeadamente em Giovani, que viu ser agredido, ainda, com o pau, escreveu o Diário de Notícias. No entanto, não se lembra se na cabeça ou no ombro.
Paulo Abreu, advogado dos pais de Giovani, considera que em vários momentos o processo confirma que a causa da morte se deve às agressões. "Na nossa interpretação, a autópsia não é inconclusiva", frisou. A família pede uma indemnização, cujo valor Paulo Abreu não quis revelar, mas chegará a 300 mil euros.
Entretanto, em julho deste ano, o Ministério Público pediu alteração das medidas de coação, por se estar a esgotar o prazo máximo da prisão preventiva a que estavam sujeitos três dos arguidos. Os restantes quatro, que se encontravam com pulseira eletrónica, também se viram em liberdade. Todos os arguidos passaram a estar obrigados a apresentarem-se duas vezes por semana à autoridade policial da zona de residência e proibidos de saírem do concelho.
O julgamento teve uma nova sessão esta sexta-feira, terminando com a fase da produção de prova, e as alegações finais foram agendadas para daqui a dois meses, por o procurador ter pedido um prazo de 30 dias para se inteirar do processo, uma vez que ficou responsável pelo caso numa fase já adiantada, escreveu a Lusa.
Quase dois anos depois da primeira saída noturna de Giovani Rodrigues, a sua morte continua por explicar. A família não duvida que se tratou de uma agressão, a defesa alega que a sua morte foi consequência de uma queda. O tribunal terá de julgar.