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Voltar à página da austeridade: o regresso dos mitos sobre a economia portuguesa

A última crise não resultou do despesismo do Estado, do excesso de dívida pública ou do crescimento desmesurado dos salários. Não será a redução da dívida pública que o Governo tem feito que vai proteger o país da próxima crise. Entretanto, dizem-nos que os salários e as pensões têm de sofrer cortes reais para não alimentar uma suposta espiral inflacionista.

Crónica 74
3 Novembro 2022

“Responsabilidade” e “prudência” foram as palavras mais utilizadas para descrever o Orçamento do Estado para 2023. Num ano em que as receitas públicas aumentaram substancialmente por via da inflação, o Governo apresentou um Orçamento cuja prioridade é conter a despesa para reduzir a dívida pública e que fará de Portugal o quarto país do mundo com maior redução da dívida desde o início da pandemia. Além dos aumentos de salários e pensões abaixo da inflação esperada, a despesa com medidas de resposta à inflação será cinco vezes menor que a deste ano.

O que pode causar surpresa é que o discurso do Governo para justificar as opções orçamentais se tem assemelhado em larga medida ao que a direita utilizou há uma década para defender o programa de ajustamento da Troika. Fernando Medina, ministro das Finanças, disse que o enorme esforço de redução da dívida pública é indispensável para proteger o país de crises: “Não fomos nos cantos de sereia daqueles que diziam que a dívida não conta e que devíamos expandir o défice […] Se há algo que é hoje um fator de confiança para enfrentarmos o ano de 2023 é precisamente a redução da dívida”.

Também a ideia de que o empobrecimento é inevitável voltou a fazer parte do discurso. Desta vez, é-nos dito que os salários e as pensões têm de sofrer cortes reais para não alimentar uma suposta espiral inflacionista que tem muito pouca fundamentação, tanto teórica como empírica. Depois de ter assinado acordos com os partidos de esquerda para “voltar a página da austeridade”, António Costa parece querer voltar à página da austeridade. Por isso, vale a pena voltar a desconstruir os mitos em que a direita se baseou durante a última crise.

Mito 1: a dívida pública cresceu demasiado antes da crise

O primeiro mito difundido por boa parte dos economistas, ao centro e à direita, foi o de que a crise de financiamento que atingiu a economia portuguesa entre 2010 e 2012 resultou do crescimento desmesurado da dívida pública. O corte das “gorduras” do Estado e o fim do despesismo tornaram-se bandeiras do discurso com que o PSD venceria as eleições.

dívida pública em portugal e na zona euro, antes e depois de 2008.PNG

Só que a realidade foi bastante diferente. Entre 2001 e 2008, a dívida pública portuguesa passou de 57,4% do PIB para 75,6%, não se afastando muito da média da Zona Euro. Esse afastamento só se deu com o impacto da crise financeira de 2007-08, com as medidas de resposta à crise – que a Comissão Europeia apoiou inicialmente – e, sobretudo, com a austeridade, que agravou a recessão e fez disparar a dívida para 132,4% do PIB em 2014.

Mito 2: os salários cresceram demasiado antes da crise

O segundo mito que legitimou a estratégia de austeridade teve por base os custos unitários do trabalho (CUT). Os CUT correspondem ao rácio entre as remunerações dos trabalhadores (salários, contribuições para a segurança social, etc.) e o produto real (PIB). A tese construída foi a de que os custos unitários do trabalho teriam crescido demasiado em países como Portugal, por comparação com a restrição que aconteceu na Alemanha. O sucesso das exportações alemãs contrastava com a estagnação das economias periféricas, que teriam perdido competitividade devido a este aumento dos custos do trabalho. “Viver acima das possibilidades” foi a frase que se tornou célebre.

AMECO - peso ajustado dos salários no PIB em portugal.PNG

Este argumento também não sobrevive ao confronto com os factos. Os economistas Jesus Felipe e Utsav Kumar desmontaram a tese dos custos unitários do trabalho num artigo que se tornou célebre. De forma resumida, a fórmula de cálculo dos CUT é equivalente à multiplicação do peso dos salários no rendimento nacional por um deflator de preços; logo, os CUT podem crescer por via do aumento do peso dos salários no PIB ou pelo aumento do deflator de preços. Usando os dados da Comissão Europeia, os dois economistas demonstraram que, em Portugal, os CUT cresceram por via da inflação e não dos salários. Na verdade, a fatia dos salários no PIB tem vindo a cair desde a adesão ao euro.

O que é que se passou realmente?

O verdadeiro problema da economia portuguesa foi o crescimento do endividamento externo, maioritariamente privado, alimentado pela adesão ao euro. Com a adoção da moeda única, as taxas de juro da dívida pública baixaram significativamente porque os investidores passaram a considerar os títulos mais seguros. A redução dos juros da dívida e a liberalização dos movimentos de capitais originaram fluxos financeiros dos bancos do centro (Alemanha, França) para a periferia (Portugal, Espanha, Grécia e Itália), onde a expectativa de retorno era maior, alimentando desequilíbrios entre países credores e devedores e tornando os últimos mais vulneráveis a crises.

O fraco desempenho das exportações portuguesas tem pouco a ver com os custos do trabalho e bastante mais a ver com outros aspetos, como a entrada da China na Organização Mundial do Comércio ou a adesão dos países de Leste à União Europeia, cujas exportações competiam com as portuguesas e cujos salários eram muito inferiores.

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Ao mesmo tempo, contrariando a tese do “despesismo” do Estado, a quebra acentuada do investimento público e da despesa em áreas como a educação, a investigação ou os transportes atrasou o desenvolvimento do país. Portugal foi o país da União Europeia que mais reduziu o investimento público em percentagem do PIB e o Estado cortou em virtualmente todas as despesas que a Comissão Europeia classifica como “amigas do crescimento”, pelo impacto positivo que têm na produtividade da economia.

Regresso ao passado

Ao contrário do que nos foi dito há dez anos, a última crise não resultou do despesismo do Estado, do excesso de dívida pública ou do crescimento desmesurado dos salários. Da mesma forma, não será a redução da dívida pública que o atual Governo tem levado a cabo que vai proteger o país da próxima crise, cujo desenrolar depende sobretudo da decisão do Banco Central Europeu sobre se se deve ou não proteger os países periféricos da especulação dos mercados.

No entanto, nada na estratégia do Governo indica uma mudança de orientação face ao passado. Em nome da redução da dívida, o investimento público continua a ser negligenciado e o corte real dos rendimentos, talvez feito com esperança que o investimento e as exportações o compensassem, acontece numa altura em que o consumo doméstico e o investimento já estão a recuar, de acordo com o INE. Como, para o conjunto da economia, os gastos de uns são o rendimento de outros, a quebra da procura terá efeitos negativos na atividade económica e no emprego e aumenta o risco de uma recessão. É uma experiência que o país já conhece bem.

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