Uma jangada ibérica para a transição energética
A Península Ibérica devia aproveitar a "exceção ibérica" para recuperar a soberania energética e pôr a justiça social no centro das suas prioridades. Isto só se faz com controlo, ou seja, com propriedade pública.
Perante as consequências dramáticas da guerra na Ucrânia para o sector energético, e de modo a evitar que a escalada de preço do gás natural contagie o preço da eletricidade, os governos ibéricos lançaram uma discussão no Conselho Europeu que viria a redundar num estatuto de exceção para a Península Ibérica.
A designada “exceção ibérica” permitirá aos governos de Portugal e Espanha implementar um mecanismo extraordinário e temporário (cuja entrada em vigor foi anunciada para o mês de maio) para controlar a subida de preço da eletricidade, estabelecendo um teto máximo para o custo do gás natural utilizado na sua produção. Infelizmente, foi necessária uma guerra para que Portugal se aliasse a Espanha e ousasse reclamar algum controlo sobre este sector estratégico, ainda que para isso tenha de pedir autorização a uma Comissão Europeia sempre zelosa das regras da concorrência.
Contudo, é importante relembrar que a tendência ascendente do preço do gás natural precede a guerra na Ucrânia, com impacto nos sucessivos recordes de preço médio da eletricidade que se verificaram, ao longo do último ano, no Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL) – o mercado grossista onde se vende e adquire a energia elétrica que as empresas comercializadoras fornecem aos seus clientes finais. A criação do MIBEL, em 2007, inseriu-se no processo de liberalização dos sectores elétricos dos Estados-membros da UE, e deveria lançar as bases para a concretização de um mercado único ibérico, contribuindo, igualmente, para a consolidação do mercado único europeu.
O reconhecimento da Península Ibérica enquanto “ilha energética”, devido à escassez de interconexões com o resto do continente, demonstra que não existe um verdadeiro mercado único e integrado de energia a nível europeu. Este território é, tal como sucede nas dimensões geográfica e económica, uma periferia.
O que tem sido interpretado, contudo, como uma desvantagem para os consumidores portugueses e espanhóis, pode revelar-se como uma vantagem neste momento de turbulência no sector energético. Por um lado, Portugal e Espanha estão menos expostos à volatilidade do mercado do gás natural, por outro lado, a crescente incorporação de renováveis no mix energético ibérico tem contribuído para a diminuição dos custos de produção de eletricidade.
Parece, pois, contraintuitivo que o preço da eletricidade continue a ser condicionado pelas flutuações de preço do gás natural. Poderá dizer-se que tal acontece devido à arquitetura disfuncional do mercado grossista, em que a tecnologia mais cara (precisamente o gás natural) fixa o preço de mercado, ou porque as renováveis (mais baratas) ainda não são suficientes para suprir a procura. No entanto, mais do que a arquitetura disfuncional do MIBEL, o que está em causa é a própria liberalização de um sector onde a construção de mercados não funciona.
O acesso à energia elétrica, garantindo a qualidade, segurança e universalidade do abastecimento, deve constituir um direito dos cidadãos e uma correlativa obrigação dos Estados nacionais. O combate à pobreza energética, começando pelo investimento público na renovação dos edifícios, deveria ser uma das prioridades de qualquer governo que se diz socialista.
A Península Ibérica, qual jangada de pedra, deveria aproveitar esta janela de oportunidade para recuperar a sua soberania energética, tomando as rédeas da transição (atualmente liderada pelas empresas de combustíveis fósseis “enverdecidas”) e colocando a justiça social no centro das suas prioridades. Isto só se faz com controlo, ou seja, com propriedade pública.