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Putin e Tina

A União Europeia, num gesto admirável, abriu portas aos refugiados da Ucrânia. Sendo inequivocamente justo e bom, a dúvida que fica é: então era possível? O que era impossível em 2021, em 2015, em sucessivas vagas de refugiados que tentam atravessar o Mediterrâneo em circunstâncias aterradoras, agora é possível.

Crónica 74
24 Março 2022

Não Há Alternativa. There Is No Alternative. TINA. Como muitas das piores coisas que moldaram o nosso presente, podemos agradecer à Thatcher pelo slogan.

É o que nos dizem quando querem avançar políticas impopulares como privatizações e austeridade. A TINA absolve os políticos da culpa de fazer o que sempre quiseram. Mas também serve para fechar as portas às alternativas. A expansão do estado social sai da mesa e apenas se pode discutir quanto se corta e a quem.

Em 2020 o que era impossível tornou-se subitamente possível. Uma pandemia mortífera parou o mundo. Não havia uma resposta de mercado individual para um vírus que se recusava a circunscrever a um qualquer país pobre ou classe discriminada. A partir do momento em que ameaçou a economia, todos sabiam que a solução seria colectiva e não individual.

Os serviços nacionais de saúde, sub-investidos e criticados para abrir portas à privatização fizeram o trabalho que o mercado não quis fazer de combater a pandemia. Os trabalhadores considerados “não qualificados” afinal eram “essenciais” e capazes de exigir salários mais elevados. Mesmo a típica resposta de contenção e austeridade foi substituída, tanto na UE como nos EUA por estímulos económicos, keynesianos. 

Nos EUA, Trump e Biden, depois de décadas de moralizar e fiscalizar apoios sociais, de testes de recursos de meios, decidiram simplesmente dar dinheiro aos americanos. Sem qualquer pré-condição. E quem diria? Baixaram a pobreza, especialmente a infantil.

Isto não é dizer que não houve áreas em que se tomou a lição completamente oposta. Países ricos a açambarcar vacinas e a proteger patentes e lucros farmecêuticos, políticos e patrões a defender o corte às prestações sociais para obrigar a resolver a “falta de mão de obra”, mas provou-se que afinal havia alternativa.

Vivemos um momento parecido com a invasão russa da Ucrânia. O crime de Putin e a reação ocidental revelaram que afinal havia alternativa a vários dogmas na Europa e nos EUA.

 A começar em 2021, a Bielorússia de Lukashenko, aliada de Putin, foi acusada de fraude eleitoral, houve protestos, que foram reprimidos com acusações de ingerência externa em assuntos internos da Bielorússia. Pararam um avião da Ryanair para prender um opositor, começaram a sofrer sanções da União Europeia. Como retaliação, Lukashenko começou a conduzir imigrantes e refugiados, maioritariamente curdos e iazidis iraquianos para as fronteiras da Polónia, Lituânia e Letónia. A fronteira polaca em particular tornou-se palco para uma enorme crise humanitária, repleta de abusos aos direitos humanos, uma militarização crescente e um muro.

Mesmo reconhecendo que estavam a ser instrumentalizados, a solução parecia-me óbvia: se os aceitarem, tiram qualquer alavancagem a Lukashenko, além de, obviamente, ser solução moral. Aqueles refugiados fogem na busca de uma vida melhor, em grande parte como consequência das intervenções passadas do Ocidente nos seus países.

“Mas a UE não pode aceitar toda a gente!”, diziam, com naturalidade, realismo e racionalidade.

Ora, esta semana a União Europeia, num gesto admirável, abriu as portas aos refugiados da Ucrânia. Sendo inequivocamente justo e bom, a dúvida que fica é: então era possível? O que era impossível em 2021, em 2015, em sucessivas vagas de refugiados que tentam atravessar o Mediterrâneo em circunstâncias aterradoras, agora é possível. 

As justificações nos orgãos de comunicação social são arrepiantes: é diferente porque são civilizados, são loiros, são cristãos, são europeus, são “mais como nós”. No fim percebemos, não, não há bons motivos. E o objectivo não deve ser “bem, então para ser coerentes não aceitamos nenhuns.” Não, precisamente para sermos coerentes com a nossa generosidade, com a moralidade que descobrimos, devemos aceitá-los todos. Afinal havia alternativa e estamos a prová-lo.

A nossa benevolência recém-descoberta para com a Ucrânia não se esgota nos refugiados. Desde a invasão da Crimeia em 2014, que a UE está a prestar um programa de assistência financeira à Ucrânia. Programa esse que, tal como o português, impunha condições de reformas ultraliberais e austeritárias à economia ucraniana como condição de emprestar dinheiro para um país, que devo lembrar, já estava em guerra no Donbass. Mas pelos vistos havia alternativa! Parece que vão largar estas exigências e o apoio passará a ser a fundo perdido.

Esperemos que também aproveitem o embalo para cancelar a atual dívida da Ucrânia.

Outro exemplo tem sido a maneira como se têm ido atrás das fortunas dos oligarcas russos sancionados. O que antes era visto como impossível, encontrar fortunas internacionalmente, em offshores, em criptomoeda, em iates, em propriedades, agora acontece diante dos nossos olhos. 

Cancelar vistos gold? Seis anos de maioria de esquerda não foram capazes de acabar com eles, mas se for a oligarcas russos já é possível.

Proibir jatos privados por serem a forma mais poluente de andar? Impensável, mas agora é possível para jatos privados russos!  

Há décadas que ambientalistas tentam pedir para cortar nos combustíveis fósseis como petróleo e gás natural. Além das emissões, deixam-nos sujeitos a tolerar ditaduras como a Arábia Saudita e a Rússia. Esta semana, pelos vistos havia alternativa. Empresas como a GALP pararam de comprar petróleo russo.

Finalmente, eu congratulo todos os que rejeitam as perspectivas de relações internacionais realistas como Mearsheimer, rejeitando a ideia de blocos e “esferas de influência” como ilegítimas e imposições imorais sobre a soberania de estados. A única questão é se manterão essa coerência da próxima vez que forem os EUA e os seus aliados a interferir em eleições de outros países, a sancioná-los ou a invadi-los. 

Tempos de guerra infelizmente criam a sua própria TINA. O espectro da ameaça militar de uma Rússia Putinista leva muita gente a aceitar o que em tempos de guerra seria impensável. Desde países neutros como a Finlândia e a Suécia a considerarem juntar-se à NATO, a Alemanha e a Dinamarca anunciarem enormes aumentos no orçamento de defesa, fecharem-se canais de notícias russos na UE ou justificar armar, financiar e condecorar fascistas convictos como os Batalhões Azov porque estão, por agora, do “lado certo”. 

Tal como com a covid-19, cabe-nos a nós escolher o que é que esta crise significará para nós. Se um aumento de solidariedade entre povos, um aprofundar da democracia face ao autoritarismo externo e um reconhecimento do poder de combater as fortunas de oligarcas e combustíveis fósseis. 


Ou, se pelo outro lado, significará uma crescente militarização, restrições democráticas na UE, crescimento da mesma extrema-direita que Putin financiava e o passar para segundo plano permanente qualquer preocupação com a emergência climática na mesma altura em que a IPCC nos avisa que meias-medidas não chegarão para nos salvar do pior que está para vir.

Até porque, afinal, há alternativa.

 

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

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