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Procuro em vão terminar sessão

Pensar em desligar quando nunca estivemos tão ligados e desligados simultaneamente. Pensar que, assim que desconectamos, alguém nos puxa novamente para a rede e nos sufoca com ela. Pensar que a Internet ainda nem chegou aos quarenta e já está assim. Je cherche en vain le mot exit.

Crónica 74
21 Julho 2021

Je cherche en vain la porte exacte, dizia Serge Gainsbourg. À conversa com André Barata, outro tipo de filósofo e autor de “O desligamento do mundo e a questão do humano” (Documenta, 2020), propiciada pelo BUALA, Livraria Barata e CML sobre a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (Lei n.º 27/2021), juntou-se Francisco Teixeira da Mota.

O advogado de Direitos Humanos, como muitos, expressou preocupação pelo artigo 6.º da dita Carta. O documento, votado em consenso (com abstenção do PCP, PEV, Chega e Iniciativa Liberal), declara o Direito à proteção contra a desinformação (previamente conhecida como fake news). O direito ao esquecimento, o testamento digital e o acesso a internet de qualidade a preço justo são alguns dos aspectos contemplados na Carta.

Segundo o Artigo 6.º, cabe ao Estado combater a desinformação, a qual pode tomar a forma de textos, vídeos e outros, intencionalmente criados e manipulados com má fé, sendo que são consideradas excepções os erros de comunicação, as sátiras e paródias. Até aqui, tudo certo. É o ponto 5 do Artigo 6.º que causa celeuma, o que muitos diriam ser um sintoma da censura que a Carta supostamente implementa: “Todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social queixas contra as entidades que pratiquem os atos previstos no presente artigo”, ainda que, como referido no ponto 6, o Estado apoie “a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”.

Não é só a vulnerabilidade económica que importa colmatar, mas também a tecnológica, informática, intelectual, democrática e social, e é aí que entram iniciativas como o Projecto Inocência, o Polígrafo, publicações independentes como o Fumaça, e agora, o Setenta e Quatro.

Portugal deixou a Presidência rotativa do Concelho da União Europeia no fim de Junho. O país (neutro ou pelo menos mais lento a reagir em algumas situações) decidiu dar passos à frente nesta questão sem ter ainda a certeza de onde está a pisar. Como tal, é previsível que o documento venha a sofrer alterações, pois falamos em regulação mas não em penalização. Como refere Teixeira da Mota, é importante compreender qual a idoneidade e imparcialidade da ERC para desempenhar tais funções.

Qualquer cidadão pode apresentar queixa, no entanto o que pode o Estado perante as políticas de uso e os termos e condições de empresas privadas como o Facebook e o Google, regras essas que são simultaneamente externas e internas, em constante reajuste?

Idealmente, diz Teixeira da Mota, qualquer crime punível no real deveria ser igualmente punível no digital. Esta é, na verdade, uma das guias de actuação interna dos gigantes das redes sociais. No entanto, o caso muda de figura muitas vezes se se tratar de uma crise de comunicação que envolva uma figura pública. Aí, o que se aplicava de manhã pode não ser o que se aplicará à noite.

De notar também que quase tudo pode ser dito sobre figuras públicas ali, desde jornalistas a políticos ou cantores, actores e outros. As regras pretendem ser o mais universais possível, excepto algumas exigências histórico-geográficas. Sabiam, por exemplo, que é proibido negar que houve um Holocausto judeu? Seria bom que também fosse proibido, nessa mesma rede social, negar que há racismo em Portugal.

Segundo André Barata, o direito ao esquecimento é fundamental, sob o risco de quebrarmos o ciclo biológico saudável de esquecer e lembrar e tornar a esquecer e a lembrar. A verdade é que o Facebook, o Instagram e o Google Photos são apenas algumas das aplicações que não nos deixam esquecer. Pelo menos fazem questão de nos lembrar, na secção “Neste dia”.

As memórias podem ser chocantes, confusas, felizes. Somos vítimas delas ou podemos ter sorte. Numa sociedade obcecada com o detox e a purga, mesmo não sendo necessários ou verdadeiramente eficazes, o filósofo defende que não deveríamos sobrecarregar-nos nem às nossas memórias. Mais vale um jogo de Tangram, se o problema é esse (boa sorte). Por seu lado, Teixeira da Mota defende (e quem sabe se não terá já patenteado a ideia) cemitérios digitais.

A verdade é que a protecção de dados assegura, por um lado, a eliminação de dados dos utilizadores que se viam constantemente assediados por empresas com as quais pareciam jamais poder cortar ligações. Contudo, parecemos abdicar desse direito quando designamos a alguém o nosso legado digital, sendo que esse alguém (da nossa confiança, esperamos) pode com ele fazer o que quiser, clonando a nossa presença num pós-vida, num simulacro do simulacro. Para pós-morte temos já os memoriais do Facebook, uma espécie de jazigo do perfil onde podemos depositar emoji e comentários como se de flores digitais se tratassem. Onde poderíamos ir, depois disto? Estaremos condenados a ficar, absorvidos pela rede?

A Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital contempla os valores ideais que devem ser seguidos quer por humanos quer por robôs: “os princípios da beneficência, da não-maleficência, do respeito pela autonomia humana e pela justiça, a não discriminação e a tolerância.”

A questão que coloco é: num mundo em que todos são cidadãos, quem protege os que guardam as redes e tomam centenas de decisões por hora (e são também pagos precariamente) sobre o que pode ou não estar na Internet, e de que forma? Quem protege os moderadores de conteúdo, esta nova e perigosa profissão, como considerou o Economist num artigo de 2019, os legisladores não reconhecidos do mundo online? Como gerir as redes, a sanidade mental e a integridade física, enquanto participantes da sociedade civil na esfera pessoal e como actuantes e justiceiros na esfera profissional?

Atentemos que esta profissão é uma alternativa drástica aos precários call centers, sem interacção directa com o utilizador, mas com a diferença de que a Internet funciona 24 horas por dia, sete dias por semana e é utilizada por todos e todas, desde gangues a pedófilos a nazis e terroristas. O algoritmo é, ainda e em última instância, afinado pela consciência humana, a quem cabe essas decisões. O mesmo algoritmo detecta o que deve ser visto de mais perto, a par do que os nossos vizinhos, colegas de trabalho ou familiares decidiram reportar, seja por razões levianas ou válidas. A violência de conteúdos obriga a acompanhamento psicológico regular dos trabalhadores, bem como a pausas para recuperação de triggers, sendo que os mesmos podem ser imediatos ou apercebidos mais tarde, já fora do horário de trabalho, com efeitos incomensuráveis na vida pessoal.

No final, é sempre o humano a punir o humano quando, por exemplo, e não foi aqui que ouviram dizer, o líder de um certo grupo nazi tem as suas fotos denunciadas, fotos em que está em traje de danças de salão, em modo casal, a posar para uma sessão fotográfica em estúdio. Estas são aquelas imagens que não se pode apagar (as monitorias são constantes e os bónus dependem dos erros ou ausência deles), nem da rede nem da memória, como não se pode apagar a ida do mesmo a um certo programa de TV, com um certo apresentador agora aliado a uma certa candidata à Amadora.

É esta a mesma pessoa que, vendo todo o seu conteúdo ser finalmente apagado, ao descobrir onde era feita essa gestão, foi vista a cercar a empresa e identificada a organizar medidas vingativas, via uma rede sem vigilância e a que deu a vitória a Bolsonaro (WhatsApp), o que levou à necessidade de protecção policial permanente aos trabalhadores da mesma. Reza ainda a lenda que um supervisor teria, certo dia, ido com uma camisola do white pride para o trabalho, que teria uma suástica tatuada, que teria sido admoestado e suspenso, apenas para logo depois retomar funções.

Os acordos de confidencialidade não deveriam proteger só as empresas capitalistas mas sim quem deles depende para se proteger quando tem de deixar a sua personalidade, as suas crenças, o seu sentido de justiça à porta e reger-se por regras que, muitas vezes, não parecem fazer sentido e expõem os trabalhadores no mínimo a discurso de ódio e, em última instância, a um esgotamento nervoso.

Pensar no quanto ainda é interpretação e subjectividade, na lei. Pensar no pouco que podemos fazer contra o que é tão somente implícito. Pensar em desligar quando nunca estivemos tão ligados e desligados simultaneamente. Pensar que, assim que desconectamos, alguém nos puxa novamente para a rede e nos sufoca com ela. Pensar que a Internet ainda nem chegou aos quarenta e já está assim. Je cherche en vain le mot exit.

A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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