Índice

Primavera das Ocupas, outono do capitalismo fóssil

Os atores do capitalismo fóssil continuam a desempenhar o papel principal nas negociações internacionais sobre o clima. O planeta arde e a indústria fóssil floresce. 2022 foi o mais rentável de sempre para as cinco maiores empresas ocidentais de petróleo e gás: lucraram 200 mil milhões de dólares.

Crónica 74
25 Maio 2023

Abril da Liberdade trouxe a “Primavera das Ocupas”, a segunda onda de ocupações de estabelecimentos do ensino secundário e superior (a primeira foi em novembro de 2022) no âmbito do movimento internacional “Fim ao Fóssil: Ocupa!”. As reivindicações são inequívocas e, sobretudo, urgentes: o fim do investimento em combustíveis fósseis em Portugal até 2030 e eletricidade de fontes 100% renováveis, acessível a todas as famílias, até 2025. Estas exigências revelam uma aguda consciência política: de facto, não existe justiça climática sem justiça social.

As ações intensificaram-se a partir de 2 de maio, com a ocupação de mais de uma dezena de escolas secundárias e faculdades em Lisboa, Porto e Coimbra, e culminaram a 13 de maio, quando, durante mais de sete horas, centenas de militantes da plataforma “Parar o Gás” bloquearam o terminal de gás natural liquefeito do porto Sines, a principal entrada de gás fóssil em Portugal.

Um dos momentos mais marcantes desta “Primavera das Ocupas” foi a greve de fome das corajosas Jade Lebre e Teresa Cintra, cuja luta merece a nossa total solidariedade e admiração. Num contexto do que se designa por “apatia perante o colapso climático” (palavras de Teresa Cintra), viram-se forçadas a recorrer a meios radicais para transmitir uma mensagem simples: pediam à Reitoria da Universidade de Lisboa que divulgasse o apelo à participação da comunidade académica na ação de 13 de maio, em Sines.

Num dos cartazes afixados na porta da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, onde permaneceram em greve de fome durante dois dias, lia-se: “Cumprir a Ciência”. E a ciência, insisto, é incontornável. Felizmente, também há cientistas que não viram as costas à luta política, compreendendo que só a organização política permite dar o salto do diagnóstico para uma prescrição poderosa. Ter razão não é suficiente. Assim, a 10 de maio, membros da Scientist Rebellion Portugal tentaram fechar a cadeado a entrada do Ministério do Ambiente e da (In)Ação Climática e colaram artigos científicos nas paredes do edifício. A ação pacífica pretendia alertar para o “caos climático” (expressão de António Guterres) e denunciar a inércia dos governos, que continuam reféns da indústria fóssil.

Podemos acrescentar o relatório Global Annual to Decadal Climate Update da Organização Meteorológica Mundial (OMM), publicado a 17 de maio, aos artigos afixados no Ministério. De acordo com a OMM, existe uma probabilidade de 66% de que pelo menos num dos anos entre 2023 e 2027 o aumento da temperatura média global supere o teto de 1,5 °C estipulado no Acordo de Paris. A média mais elevada nos anos anteriores foi de 1,28 °C acima dos níveis pré-industriais. Recorde-se que, em 2015, os 195 signatários do Acordo de Paris comprometeram-se a envidar esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5 °C (em relação ao período pré-industrial), limiar a partir do qual os impactos das alterações climáticas poderão tornar-se catastróficos e potencialmente irreversíveis.

O cruzamento desse limiar deverá ser apenas temporário. No entanto, representaria uma aceleração acentuada dos impactos humanos (ou melhor, de alguns humanos) no sistema climático terrestre. Além disso, segundo a OMM, é provável que os 1,5 °C sejam pontualmente ultrapassados com cada vez maior frequência, oferecendo-nos um vislumbre do que poderá ser o futuro num planeta que continua a aquecer. No último ano, verificaram-se recordes de temperatura máxima um pouco por todo o mundo, mas poderá ser apenas o início.

Com efeito, segundo a OMM, há também 98% de probabilidades de que um dos próximos cinco anos seja o mais quente na Terra desde que existem registos, batendo o recorde de 2016. Espera-se que o El Niño, um padrão climático que se desenvolve no Oceano Pacífico e que pode afetar as condições meteorológicas a nível global, em combinação com as alterações climáticas de origem antropogénica, “empurre as temperaturas globais para território desconhecido”, referiu Petteri Taalas, Secretário-Geral da OMM.

No final de novembro, na Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP28), serão avaliados os progressos realizados no cumprimento dos objetivos do Acordo de Paris. Essa avaliação irá revelar o óbvio: estamos longe de conseguir cortar as emissões de gases com efeito de estufa em 43% durante esta década – aliás, as emissões resultantes do uso de combustíveis fósseis continuam a subir. Este corte é, no entanto, absolutamente imprescindível para limitar o aumento da temperatura a 1,5 °C. Para alcançar essas metas, a esmagadora maioria das reservas conhecidas de combustíveis fósseis tem de permanecer no subsolo.

Ora, não só os Emirados Árabes Unidos, anfitriões da COP28, são um grande produtor de petróleo e gás, como o presidente designado da conferência é o Sultão Ahmed Al Jaber que, note-se a perversidade, é também CEO do Grupo ADNOC – Abu Dhabi National Oil Company, uma petrolífera. Não existem coincidências em política. Os atores do capitalismo fóssil continuam a desempenhar o papel principal nas negociações internacionais sobre o clima, sem qualquer pudor.

Enquanto o planeta arde, a indústria fóssil floresce. O ano de 2022 foi o mais rentável de sempre para as cinco maiores empresas ocidentais de petróleo e gás – Exxon, Chevron, Shell, BP e TotalEnergies –, que obtiveram, em conjunto, “lucros monstruosos” (citando, uma vez mais, o Secretário-Geral das Nações Unidas), na ordem dos 200 mil milhões de dólares. Em Portugal, a Galp de Amorim e companhia não lhes fica atrás nos lucros recorde. Que não restem dúvidas: tal como a plataforma “Parar o Gás” fez ao fechar a válvula de emergência do gasoduto de Sines, temos de travar o capitalismo fóssil que condena os povos.

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt