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Portugal dos pequenitos

Repetentes e betinhos disputam o domínio do recreio com batalhas campais pelo simples gosto de lutar. Até que todos os outros alunos se levantam num coro de protesto contra aquela luta sem nexo e por aquilo que verdadeiramente interessa.

Crónica 74
11 Maio 2023

Imaginemos que Portugal é uma escola em cujo recreio se trava uma luta sem tréguas entre dois gangues tão diferentes como iguais: os repetentes e os betinhos.

Os repetentes são os reis do recreio, muito graças ao facto de serem exactamente isso, repetentes, e estarem há anos a fio na mesma instituição de ensino. No entanto, anos de chumbos nos resultados escolares acabaram por lhes trazer mais vantagens que inconvenientes, uma vez que foram acumulando outro tipo de saber, o da escola da vida.

Por exemplo, no recreio aprenderam que a união fazia a força e que certas alianças estratégicas com alguns grupos seus rivais lhes permitia dar coças ainda maiores nos betinhos (mais tarde também aprenderam que o ódio aos betinhos não era cola suficientemente forte para unir o que a génese ideológica tinha separado).

Já na cantina, ficaram especialistas em identificar as cozinheiras que também eram mães de repetentes para assim beneficiar de uma dose extra no prato do almoço. Na sala de aula aperfeiçoaram a política de oferecer maçãs reluzentes aos professores, o que funcionou durante uns tempos, até que um dos repetentes ofereceu uma maçã podre e, pronto, lá se foi a paz igualmente podre. Mas com mais ou menos sucesso, com alianças mais ou menos eficazes, a escola era deles. Com um senão, aliás dois: a memória recente dos tempos em que eram os betinhos os reis do recreio, e o facto de que o actual diretor da escola tinha feito parte desse tempo. Estes factos pendiam sobre as cabeças dos repetentes como uma assustadoramente afiada espada de Damocles.

Mas, apesar destes fantasmas, nada parecia pôr realmente em perigo a sua enraizada e musculada hegemonia. Até que um dia, num qualquer intervalo, levados em euforia por mais uma batalha campal, os repetentes tiveram o azar de atirar uma pedra que falhou uma beta cabeça e acabou por acertar na janela do diretor da escola. O pátio gelou. Perceberam todos, uns e outros, que estava o caldo entornado porque o diretor nunca tinha escondido a sua predileção pelo grupo dos betinhos.

O seu saudosismo da época alaranjada em que reinaram (ele incluído) o recreio era mais que evidente em cada puxão de orelhas a um repetente, em cada suspensão aplicada a outro, em cada lição de moral dada a todos nos discursos de abertura e encerramento dos anos escolares. E foi furibundo que o diretor se levantou da sua cadeira, pisou os cacos da janela partida e encaminhou-se para recreio.

Perante este deslize dos repetentes, os betinhos esfregaram as mãos de contentes e perceberam que este era o seu momento. Organizaram-se rápida mas atabalhoadamente, era agora ou nunca, discutiram estratégias, perceberam que não tinham, ou que tinham estratégias a mais, discutiram mais, elegeram um líder ao acaso e a sua sede de poder era tal que a certa altura até ponderaram aliar-se ao rufia da escola, ídolo dos ultra-betinhos, o que acabou por dividi-los ainda mais. A reconquista do recreio parecia mais complicada do que inicialmente calculado. Mas havia sempre o diretor…

Do lado dos repetentes o cenário não era mais animador. O deslize tinha instaurado o pânico, era preciso encontrar um testa de ferro, amputar o membro gangrenado, segurar a liderança do recreio. Apontaram-se dedos, ressuscitaram-se antigas quezílias, os mais fracos fugiram para casa a chorar, os resilientes dedicaram-se a uma frenética atividade de demonstração de poder, trocaram-se cromos raros de futebol, mediram-se pilinhas. E os passos do diretor aproximavam-se cada vez mais…

Enquanto repetentes e betinhos se dedicavam de alma e coração a este novo capítulo da sua sempiterna rixa, agora ainda mais inflamada pela presença do diretor, o resto da escola começou a perder o interesse no incessante atirar de pedras e palavrões.

Por um lado, os alunos realizaram que o seu mundo, os seus interesses, nada tinham a ver com as atividades egocentricamente bélicas daquele recreio. Abandonaram o seu posto de espectadores passivos de uma guerra perdida para se concentrarem nos seus próprios problemas, muitos deles resultantes da alienação dos gangues dominantes. E começaram a falar uns com os outros. Perceberam que muitos deles estavam perdidos, desorientados, deprimidos. Perceberam que este desespero vinha de uma sensação de abandono, de uma falta de esperança no futuro, das cicatrizes de uma pandemia que os apanhou na pior altura. Perceberam que o suicídio era agora a principal causa de morte da sua geração. Perceberam que os adultos nada percebiam das questões de género, que nada faziam pelo ambiente, que pura e simplesmente não falavam a sua língua.

Resolveram sair daquele torpor, ir falar com outros alunos de outras escolas, contrastar opiniões, concertar esforços, procurar aliados. Até falaram de, um dia, ocupar a escola para defender o ambiente… E nesta caminhada para fora do status quo, já a atirar gritos de revolta e empunhando cartazes improvisados, passaram ao largo da guerra do recreio. Ninguém deu por eles.

Por outro lado, os professores, que assistiam da janela da sua sala a um recreio em polvorosa, com diretor pelo meio e tudo, perceberam que nem ele (ou muito menos ele) nem ninguém poderia resolver os seus problemas como eles próprios. Tinham chegado ao limite, mal pagos, pouco respeitados, sem perspectivas de carreira nem sólidas políticas de educação à vista, saíram da sala de professores e foram para o recreio onde tentaram fazer-se ouvir, dizer aos repetentes e aos betinhos e ao diretor que aquela guerra não beneficiava ninguém. Foram ignorados. Ameaçaram com greves, com manifestações, com mais greves. Foram ignorados. Com a batalha campal como pano de fundo, juraram unir-se como nunca.

A certa altura os gangues rivais, habituados a uma banda sonora de berros e urros de apoio ou oposição, sentiram um silêncio. Perceberam que já não tinham claques, que já ninguém torcia nem pelos repetentes nem pelos betinhos, que tanto uns como outros já não tinham público para os seus jogos de poder e golpes palacianos. Lutavam sozinhos e só pelo simples acto de lutar. E o outrora popular diretor realizou, desconsolado, que já há muito tempo ninguém lhe pedia para tirar uma selfie

Apesar do silêncio que tinha invadido o recreio, ou por causa dele, identificaram um ruído ensurdecedor que se ouvia ao longe. Repetentes, betinhos e diretor abandonaram o campo de batalha e só aí se deram conta que a escola inteira estava do lado de fora do muro, que os professores, os alunos, os pais dos alunos, as cozinheiras da cantina, o motorista do autocarro escolar, as auxiliares de educação, todos se tinham unido num coro de vozes de protesto e palavras de ordem. Contra aquela luta sem nexo e por aquilo que verdadeiramente interessa. E ao seu lado, todos os outros. Nós.

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada pelo piano do Máximo, um jovem músico de 19 anos que acabou de lançar o seu primeiro álbum de originais, ironicamente entitulado Greatest Hits. O Máximo é o exemplo perfeito de uma nova geração de “alunos” que não são nem betinhos nem repetentes nem precisam de rótulos. São simplesmente bons.

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