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Porque escrevo o que escrevo

 Os tons de cinzento do nim vão perdendo terreno para uma ânsia insana pelo preto ou pelo branco, por algo ou o seu contrário, pelo 100% contra ou o inflexivelmente a favor.

Crónica 74
22 Dezembro 2022

Tudo começou com um convite desta plataforma chamada Setenta e Quatro para escrever uma crónica mensal. Era uma proposta em aberto, uma carta branca, em que me era dada total liberdade para escolher o tema e o tom. Por se tratar de uma importante inquietação pessoal, não demorei muito a encontrar aquele que seria o foco das minhas crónicas e o mote foi lançado logo com a primeira, que saiu a 4 de março deste ano, à qual dei o título de “A coragem de dizem nim”. 

Nim, nem não nem sim, era (e continua a ser) para mim sinónimo de compromisso, esse delicado equilíbrio entre as vontades, desejos, ambições e ideologias de cada um, vital para uma saudável convivência em sociedade. No entanto, este nim parece ser hoje em dia uma atitude completamente contra-corrente face à polarização a que temos o infortúnio de assistir nestes tempos contrários à temperança. Os tons de cinzento do nim vão perdendo terreno para uma ânsia insana pelo preto ou pelo branco, por algo ou o seu contrário, pelo 100% contra ou o inflexivelmente a favor.

Durante anos assisti à normalização do discurso radicalizado nessa polaroid da atualidade chamada Facebook, em que lovers e haters encontraram o campo perfeito para as suas batalhas políticas, estéticas, sociais, sexuais e outras que tais. E, com os anos, a polarização instalou-se confortavelmente não só nas plataformas sociais, como o Twitter e o supracitado Facebook, mas para mal de todos, na sociedade em geral, media tradicional incluída.

Os clicbaits, as partilhas e as audiências dão mais valor à forma, preferencialmente acusatória e incendiária, ignorando olimpicamente a qualidade do conteúdo e os benefícios do debate construtivo. A culpa deste status quo não só não morre solteira como tem vários maridos: jornalistas, cronistas, políticos, grupos económicos e também o chamado “público em geral” são apenas alguns dos tóxicos cônjuges deste casamento desastroso com resultados nefastos para a democracia a nível global.

Foi justamente a leitura de um relatório sobre o estado das democracias do planeta  que me suscitou a vontade de escrever uma crónica mais factual que opinativa sobre as razões da minha aflição política e social. Trata-se do “Global State of Democracy Report 2022: Forging Global Social Contracts in a Time of Discontent” (parte da “Global State of Democracy Initiative” da responsabilidade do International Institute for Democracy and Electoral Assistance) que não hesita em constatar que a Democracia, no geral e no concreto, está sob ataque em todo o mundo.

Não é de hoje esta constatação e justamente um dos problemas assinalados pelo relatório é o risco de que todos os alarmes que vão soando se tornem, com o tempo, numa espécie de ruído de fundo, ao qual tragicamente nos vamos habituando, fazendo com que as crises de hoje se convertam no novo normal de amanhã. O certo é que as democracias sempre correram sérios riscos, como a corrupção e a abstenção por exemplo, mas a situação agravou-se substancialmente graças às mazelas da pandemia, às novas guerras, à recessão global e aos efeitos das alterações climáticas - uma autêntica perfect-storm.

O relatório não faz um diagnóstico tão grave para a Europa como faz para os Estados-Unidos pós-Trump, colocando a América do Norte na lista dos países com a democracia em risco (!), mas regista uma situação geral de estagnação e alguns retrocessos no espaço europeu. Quase metade das nações europeias sofreram uma erosão das suas democracias nos últimos cinco anos, sendo que dentro deste número estão 8 das chamadas “high-performance democracies”. Ou seja, mesmo nos países com uma maior solidez democrática e económica, os riscos são reais.

Apesar de termos várias conquistas sociais e políticas já enraizadas nas nossas sociedades e mentalidades que fazem com que as conclusões não sejam totalmente pessimistas, há sinais que seria irresponsável ignorar, como por exemplo o declínio da integridade dos media. E que este aconteça precisamente em países de “primeira linha” como a Áustria ou a Alemanha, deve fazer soar vários alarmes, principalmente porque este declínio acontece num período de guerra e crise económica, em que a existência de uma informação fiável e imparcial se torna ainda mais vital.

Se injectarmos neste corpo enfermo doses consideráveis de um decréscimo continuado na confiança que o povo deposita no Estado em geral e na classe política em particular, deparamo-nos com um diagnóstico preocupante do coração do estado de direito, ou seja, o pacto social. Este acordo expresso e tácito assenta numa consentida autoridade do Estado sobre o indivíduo, com desejados benefícios para ambos. O pacto social tem por obrigação cumprir uma miríade de items, como o respeito pelo indivíduo, a garantia dos seus direitos políticos, a realização de eleições justas, o equilíbrio do poder e o acesso a bens e serviços que tornem digna a vida de todos.

Mas o relatório revela que se vive atualmente no espaço europeu uma crença global de que os pactos sociais já não estão em forma e não tardaram a surgir os pessimistas da democracia com as suas tentativas de reengenharia destes acordos, cujo resultado tem sido não um regresso a um status quo pré-democrático, mas um “avanço” para novas formas de liderança política anti-democrática. Estes sistemas alternativos de governação levado a cabo por países com regimes autoritários (ou tendencialmente autoritários) têm provado não ser melhores que os existentes, muito antes pelo contrário, o que leva a reafirmar que, apesar dos seus defeitos, a Democracia continua a ser o mais perfeito dos imperfeitos modelos de governação.

Confesso que, apesar de a radiografia europeia feita por este relatório não ser apocalíptica, a sua leitura deixa um indisfarçável amargo de boca, mesmo para um optimista empedernido como eu. E o sabor azeda ainda mais quando deitamos um olho ao resto do globo: o galopar do autoritarismo, do despotismo, do populismo e de todos esses -ismos contra-natura ouve-se das Américas à Àsia, passando por África. São centenas de países em apuros, vítimas da crise, da corrupção, do déficit democrático e das consequências nefastas das alterações climatéricas. Se encararmos o mundo como um todo, depressa realizamos que não há realidades isoladas, e que o mal de um hoje, será o de muitos amanhã.

Lembro-me muitas vezes de uma aula na escola de teatro em que se falava da verdade na atuação, que esta deveria estar sempre presente na forma como vivemos uma personagem. “Mas, e se a minha personagem tiver morto alguém? Eu nunca matei ninguém, por isso como posso dar verdade a essa situação?” perguntou um colega meu. Ao que o professor respondeu: “Já mataste uma mosca não mataste? Por isso já sentiste a sensação de matar, de acabar com a vida de um ser. Só tens de ampliar essa sensação ao máximo, e assim vais dar verdade ao teu assassino.”

Se ampliarmos ao máximo um trivial comentário levemente racista, sexista ou homofóbico, podemos facilmente vislumbrar uma sociedade sem respeito algum pela diversidade. Se ampliarmos ao máximo um discurso populista proferido por um patético líder extremista, podemos facilmente vislumbrar uma musculada ditadura. Se ampliarmos ao máximo uma simples fake-news que seja, podemos facilmente vislumbrar um mundo afogado na manipulação. Por isso temos de ser intransigentes face ao mais pequeno ataque à nossa liberdade e integridade. E este momento de crise que atravessamos é a lupa perfeita para que todos estes ataques microscópicos às nossas democracias se tornem no homicídio de factum do nosso estilo de vida.

Os sinais estão lá, todos, no relatório que inspirou esta crónica e temos de agir em conformidade: ser responsáveis na crítica, adultos na contestação e, acima de tudo, não abrir mão dos princípios básicos que nos formaram. É por isto que escrevo o que escrevo.

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada por:

 “Don’t stop believin” de Journey

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