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Pequenos grandes ditadores

Os herdeiros de fortunas e grandes empresas são pequenos ditadores que fazem birras públicas sempre que alguém do Governo se mostra inclinado a ser menos permissivo. Sabem que a birra e a agressividade compensam perante manifesta falta de autoridade e que podem contar com um discurso liberal hegemónico na comunicação social em matéria de economia política.

Crónica 74
30 Março 2023

O psicólogo espanhol Javier Urra é autor de livros como O Pequeno Ditador e O Pequeno Ditador Cresceu, onde chama a atenção para os efeitos perversos do excesso de permissividade que transforma crianças excessivamente mimadas, por pais incapazes de impor regras claras, em adolescentes agressivos.

Por analogia, podemos dizer que o atual capitalismo, muito marcado por herdeiros de fortunas e grandes empresas, é constituído por pequenos grandes ditadores, que fazem birras públicas sempre que alguém do Governo se mostra inclinado, ainda que de forma infelizmente inconsequente, a ser menos permissivo. Os pequenos grandes ditadores sabem que a birra e a agressividade compensam perante a manifesta falta de autoridade. E estão habituados a que ninguém os conteste dentro da redoma de privilégio em que vivem.

Atente-se, por exemplo, em Pedro Soares dos Santos, herdeiro de uma das maiores fortunas do país, feita, por exemplo, de relações de força favoráveis perante produtores e trabalhadores esmifrados. Porque houve umas inspeções da ASAE a práticas comerciais duvidosas, num setor useiro e vezeiro em manipulações, veio fazer uma birra pública no preciso momento em que os lucros do seu grupo sobem de forma clara e em que o Governo lhe vai dar mais uma prenda de muitos milhões, com a descida para zero do IVA num cabaz de bens de primeira necessidade.

Como o Governo não tem qualquer vontade ou capacidade, neste quadro regulatório, de exercer o controlo necessário, estes pequenos grandes ditadores podem brincar como quiserem com os preços, ficando as intenções do Governo, com a descida do IVA, dependentes dos seus humores, numa perversa inversão de papeis.

Os pequenos grandes ditadores sabem, ademais, que podem contar com um discurso liberal hegemónico na comunicação social em matéria de economia política. Os liberais nacionais não passam de apoiantes destes indivíduos agressivos e autoritários, como a crónica de João Miguel Tavares no Público, sobre “empresários a falar grosso e a importância do fuck you Money”, ilustra de forma particularmente mal-educada.

Tavares acha que se mais pessoas compreendessem a “ligação histórica entre o dinheiro e a liberdade de opinião, o capitalismo teria uma vida muito mais fácil e o socialismo uma vida muito mais difícil”. Consequentemente, Tavares também acha que “os empresários portugueses devem ter uma palavra a dizer sobre a forma como o sector público gasta a riqueza que o sector privado cria”.  

Na realidade, uma das principais críticas socialistas ao capitalismo reside no facto de neste sistema as liberdades dependerem demasiado do dinheiro que se tem, quer na sua definição, quer no seu usufruto. Pessoas com demasiado dinheiro tendem a comportar-se precisamente como pequenos grandes ditadores, não só nos espaços onde outros trabalham sob o seu comando, ou dos seus capatazes, mas também na esfera pública.

Na realidade, sempre a realidade, a democracia, a soberania do povo, está sob ameaça permanente no capitalismo, porque nele quem tende a ter a última palavra são precisamente os que controlam a esfera da produção e da circulação. É por isso que os liberais querem remover os obstáculos que ainda existem no regresso a tempos oligárquicos e, para isso, servem-se de várias ideias equivocadas sobre a criação de riqueza.

Os trabalhadores do sector público criam riqueza como os trabalhadores do sector privado. Os bens e serviços produzidos pelo sector público têm, pela sua natureza tipicamente não-mercantil, quando muito, um preço socializado a que chamamos imposto e o seu acesso tem, por isso, menos barreiras pecuniárias. Além disso, sem Estado não há sector privado, mas o contrário não é necessariamente verdadeiro. De resto, a despesa de uns, pública ou privada, é rendimento de outros.

Já somos crescidos e não gostamos de pequenos grandes ditadores.

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