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Para que precisamos de artistas?

Se queremos acabar com as elevadas taxas de abstenção nas eleições, se queremos uma maior participação das cidadãs e cidadãos nas várias esferas da política, precisamos de acabar com a ideia de que o lugar de comentário, de crítica, de reflexão, de opinião é reservado a certas actividades, pessoas, idades, profissões.

Crónica 74
28 Julho 2021

Não demorou um dia. Depois de ter sido publicada a primeira rubrica que escrevi para o Setenta e Quatro, há duas semanas, não demorou um dia até começar a receber mensagens menos agradáveis, usando a palavra “atriz” como sinónimo de “acéfala”, e incentivando-me a ficar calada e a usar a minha voz apenas para reproduzir texto decorado.

Não é a primeira vez que acontece, aliás, é frequente tentarem reduzir a minha capacidade de pensar e escrever por ser atriz, como se ambas as coisas fossem incompatíveis, ou como se pelo facto de ser atriz não fosse esperado que o fizesse.

E desengane-se quem pensa que este é um fenómeno apenas relativo às redes sociais. Lembro-me de, no meu primeiro trabalho, ter ouvido “atriz não pensa, técnico não fala e encenador é um génio”. É certo que foi dito em tom de brincadeira, mas, à medida que continuei a trabalhar, verifiquei (e senti na pele) como ainda se vai tentando dar sentido esta máxima. É certo que este tipo de relações nas artes está a acabar, mas é ainda muito comum que a sociedade não espere que os atores saiam das suas personagens e ocupem uma voz pública, um pensamento próprio, um lugar de fala. E quem diz atores, diz atrizes, onde a luta por credibilidade é ainda mais difícil. E quem diz atrizes, diz outro tipo de profissões que, apesar do enorme alcance mediático, não se pretende que formulem nenhum tipo de pensamento, muito menos de politização.

Não será necessário um grande esforço para nos lembrarmos de alguns exemplos recentes de jogadores de futebol em que, ao usarem o seu lugar de fala para denunciar atos racistas, para lutar contra a discriminação, ou para darem a sua opinião sobre política ou políticos, logo se levantam algumas vozes que os tentam reduzir àquela que julgam ser a sua única condição: jogar à bola, não pensar, usar a cabeça apenas para marcar golos e, sobretudo, estar calados.

São as mesmas vozes que, quando cantores, manequins ou artistas, se manifestam publicamente sobre afirmações de certos agentes políticos, sobre propostas de partidos, ou sobre temas da ordem do dia, se levantam de imediato acusando-os de não trabalhar, de viver à custa de subsídios, de viverem em pedestais. O mais curioso é que este argumento só é válido para quem usa o espaço público para os criticar. Quando outras figuras públicas usam o mesmo espaço para manifestarem o seu apoio às ideias de extrema-direita, as atrizes que até então eram parasitas, passam, subitamente, a trabalhadoras honestas, a pessoas talentosas com espírito de sacrifício e intelecto reconhecido.

Também não será necessário grande esforço para nos lembrarmos do episódio recente de um cantor que aceitou ser contratado para um comício político e que, em poucas horas, passou de bestial a besta. Enquanto tocava, foram várias as publicações de militantes enaltecendo o seu talento e humildade, gabando-lhe a coragem em apoiar o partido. Quando o concerto acabou e o músico se apercebeu que o evento para o qual tinha sido contratado se estava a apropriar da sua imagem e da sua presença, fez um comunicado esclarecendo que não se revia naquela ideologia nem nas ideias daquele partido. Que apenas tinha aceitado o trabalho de cantar, e que isso não significava uma prova de simpatia ou militância.

Afinal, o mesmo artista que minutos antes cantara tão bem, que era um homem tão honesto, tão trabalhador, que tanto os honrava com o seu apoio e que por isso era tão diferente dos outros artistas, rapidamente passou a fraude e a cobarde, a um que afinal era igual aos outros, e que foi lembrado de que um artista não deve meter-se em política.

Não está aqui em causa o debate sobre para que servem os artistas, sobre a instrumentalização a que estão sujeitos, ou sobre a sua responsabilidade perante o mundo. Mas, se queremos acabar com as elevadas taxas de abstenção nas eleições, se queremos uma maior participação das cidadãs e cidadãos nas várias esferas da política, precisamos de acabar com a ideia de que o lugar de comentário, de crítica, de reflexão, de opinião é reservado a certas atividades, pessoas, idades, profissões.

No livro A Utilidade do Inútil, Nuccio Ordine diz que “no universo do utilitarismo um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave inglesa mais do que um quadro, porque é mais fácil perceber a eficácia de um utensílio e cada vez mais difícil compreender para que servem a música, a literatura ou a arte.”

Se os artistas não servem para nada, porque é que temos tanto medo do que dizem? Porque é que os tentamos tão desesperadamente descredibilizar? Se não servem para nada porque é que queremos tanto ser vistos com eles?

A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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