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O reverso da coragem

O mundo adora uma boa história de superação, pois aí a minoria deixa de o ser, passa a ser elite, justificando assim a sua nacionalidade, a visibilidade, o sustento: um favor constantemente a ser cobrado, um estatuto de membro honorário temporário que pode ser retirado a qualquer momento. Só existem duas formas de existência: sub-humano ou super-humano.

Crónica 74
18 Agosto 2021

Dos seus vários atordoantes contos de Franz Kafka, Desiste! é um dos que mais facilmente fica impregnado na memória. Alguém, numa cidade cujas ruas não domina, vai a caminho da estação quando se apercebe de que o seu relógio está bastante atrasado. Desorientado, qual não é o seu alívio quando avista um polícia e lhe pede indicações. Este parece surpreendido por ter sido abordado e diz ao transeunte que desista enquanto se afasta, como para rir sozinho do absurdo da situação. Como é habitual, não sabemos exactamente o que acontece a seguir. Ficamos apenas desolados.

Actualmente, há muitas pessoas e coisas que nos sussurram ou mesmo gritam "Desiste, desiste", como no conto kafkiano. Antes, nas histórias, eram os espelhos que falavam connosco, agora são sobretudo os dispositivos tecnológicos. Coitados dos espelhos, nunca mais nos apanharam sozinhos. Para nosso mal, a tecnologia nunca se cala. Estamos constantemente acompanhados, a observar e a ser observados, ilusoriamente a conversar mas, a maior parte do tempo, a falar para alguém e não com alguém. Vivemos uma fase em que o policiamento no seu sentido mais clássico quase não tem comparação com os novos polícias que, sem farda oficial, não hesitam contudo em despejar fardos e lançar farpas para toda e qualquer pessoa que passe pelo seu radar.

Em última hipótese, e porque uma coisa leva a outra, a verdade é que somos todos culpados desse policiamento alheio, sendo que ele vai sempre desembocar num auto-policiamento que consegue ser profunda e igualmente extremista, num ciclo vicioso de exigência, expectativa, denúncia e renúncia.

Uma das muitas vezes em que a maior ginasta de todos os tempos ousou quebrar o silêncio e ficar a perder foi quando, em 2018, denunciou o médico que assistia a equipa Norte-Americana por abusos sexuais. A atleta ainda não recuperou deste trauma, e talvez nunca venha a fazê-lo totalmente. Recentemente, Simone Biles teve novamente uma imensa coragem ao não participar em algumas das competições a que se propusera nos Jogos Olímpicos, em prol da sua saúde mental. A mesma saúde mental que a campeã de ténis Naomi Osaka referiu querer proteger quando se recusou a comparecer numa conferência de imprensa e foi multada. Ainda a saúde mental de Serena Williams que terá sem dúvida ficado afectada aquando de um episódio em que, ao confrontar o árbitro Carlos Ramos (nem por acaso num jogo entre ela e Osaka no US Open de 2018) por uma penalização de base sexista, foi criticada pela sua abordagem “enraivecida”, “despropositada”, “incorrecta”, quando frequentemente vemos abordagens semelhantes por parte de atletas homens, sem as mesmas consequências.

Que o diga a equipa feminina holandesa, que também se viu multada e criticada por usar calções e não o bikini para efeitos de entretenimento a que obriga o regulamento, no Campeonato Europeu de Andebol. Os casos multiplicam-se, de tal modo que esta semana, depois de semanas sem se expor, Osaka saiu de uma conferência de imprensa lavada em lágrimas dolorosas e silenciosas.

Quem assistiu ao seu documentário na Netflix compreende que, independentemente do sucesso, o ano de 2020 (e este vai pelo mesmo caminho) foi tão pesado para ela como para muitos de nós, e que a luta pela saúde mental começa por ser uma luta consigo mesmo, passando depois para uma luta contra o mundo. Por vezes, são simultâneas e não nos apercebemos logo.

Todos estes casos correram mundo e o mundo tem muitas opiniões, algumas delas de extrema-direita, sobretudo no que concerne a Biles. Foi atacada por ser imatura, arrogante, egoísta, uma desistente que usa a saúde mental como uma desculpa para o baixo rendimento desportivo, que chama as atenções para si, que tem orgulho em fracassar, que é a antítese de elite.

O mundo adora uma boa história de superação, pois aí a minoria deixa de o ser, passa a ser elite, justificando assim a sua nacionalidade, a visibilidade, o sustento: um favor constantemente a ser cobrado, um estatuto de membro honorário temporário que pode ser retirado a qualquer momento. Só existem duas formas de existência: sub-humano ou super-humano. Normalmente é quem não ocupa nenhuma destas posições que reserva para si o direito de designar o lugar do outro na sociedade. Como diz o ditado, quem não faz, ensina.

Se todos temos muito a aprender uns com os outros, para o bem e para o mal, o que nos mostra o conto de Kafka é que talvez seja melhor confiarmos em nós mesmos em primeiro, segundo, terceiro lugar, seguir o nosso instinto, ouvir o nosso corpo, limpar os espelhos e silenciar as notificações e o síndrome de impostor. Talvez o polícia tenha feito um favor, ao afastar-se. Não nos iludamos: quer os nossos aliados quer os nossos inimigos podem dizer-nos para continuar ou desistir e estarem ambos errados. Cabe-nos o discernimento e a decisão final. A que tomarmos, seja ela qual for, é a correcta. No reverso da coragem, mesmo a coragem para desistir, não está a cobardia e sim a sabedoria.

No reverso da coragem pode nem sempre estar uma medalha, mas está sempre o respeito por si mesma e mais um dia para viver a vida que se sonhou, e não a que os outros querem à força (de)terminar. Para Simone Biles, que sorri como quem sabe o seu valor e vê nitidamente o seu reflexo, não só ao espelho, mas em medalhas, normalmente estão ambos.

A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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