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O perigo de exclusão da pessoa de pele branca

A lista do que pessoas brancas podem fazer sem se darem conta de que têm uma cor é interminável, mas fico-me apenas por mais um exemplo: as viagens ao estrangeiro, que me habituei a planear também segundo o filtro “black friendly” ou “black unfriendly”. Excesso de zelo? As minhas vivências indicam-me o contrário.

Crónica 74
4 Agosto 2021

No auge da indignação, a mulher tenta explicar o incompreensível. Prega assim: “Há um mérito que vos reconheço, sem qualquer ironia e do fundo do coração: experimentar o facto de ser liminarmente excluída apenas e exclusivamente pela cor da pele! É de tal forma duro que me fez repensar se não devia voltar à zona de conforto."

Leio e releio, uma vez e mais outra, como alguém que acaba de acordar de uma noite pouco dormida e, de olhar ainda estremunhado, procura entender o mundo à sua volta.

O melhor que consigo é esbarrar numa realidade de profunda alienação, em que uma mulher branca conta como uma organização de pessoas negras a desestabilizou, a ponto de quase a fazer desistir do seu propósito.

“Fui ao vosso website e, sinceramente, não me identifico convosco, ao contrário do que pensava! Neste momento estou a desenvolver um projecto com Moçambique, país do meu coração, e gostaria de alicerçar também em Portugal. O Afrolink pareceu-me um potencial excelente parceiro, mas, depois de ter consultado a vossa página não posso, tenho a pele branca...!!!”.

Colecciono mensagens como essa desde que decidi dar o meu contributo para a visibilização, em Portugal, das trajectórias de vida e dos projectos de profissionais negros.

Também desde o primeiro momento, preparei-me para lidar com palavras de confronto e incompreensão. Ainda assim confesso que nunca deixo de me espantar com a fragilidade branca, que convive lucrativamente com a existência de grupos de interesse de tudo e mais um par de botas – exclusivamente ou quase exclusivamente formados por pessoas brancas –, mas estranha quando se depara com um colectivo de pessoas negras.

Porquê?

Acredito que por causa da dificuldade – demasiadas vezes intransponível – que as pessoas brancas têm de reconhecer que é um enorme privilégio poderem passar toda uma vida sem pensar na cor de pele que têm.

Por exemplo, vão para a escola e não lhes é apontada a branquitude como característica de não pertença. Prosseguem nos estudos, e não lhes é sentenciado um percurso profissionalizante, seja porque a via regular “é difícil”, seja porque se vão “integrar” melhor no “seu” mercado de trabalho. Entram numa loja e não soam os alarmes de desconfiança. Enviam uma candidatura a um emprego, e não lhes ocorre que possam ser excluídas por exibirem no CV uma foto com uma quantidade de melanina excessiva para as funções. Procuram casa para arrendar e são avaliadas na sua individualidade, e não por aquilo que os inquilinos brancos antes de si fizeram. Saem em grupos numerosos e, por mais desordeiros que sejam, não inspiram ficções de arrastões.

Esse destino é “black friendly?”

A lista do que pessoas brancas podem fazer sem se darem conta de que têm uma cor é interminável, mas fico-me apenas por mais um exemplo: as viagens ao estrangeiro, que me habituei a planear também segundo o filtro “black friendly” ou “black unfriendly”.

Excesso de zelo? As minhas vivências indicam-me o contrário. Escolho esta: em 2006, viajei sozinha para o Mundial de Futebol da Alemanha e, no fruir da liberdade de ir e vir, um dia decidi passear além do centro de Berlim, uma das três cidades que visitei. Sem pensar muito, apanhei um autocarro ao calhas, só para ver até onde me levariam os 30 minutos de percurso estimado, até descer no terminal. De repente, vi-me numa zona surpreendentemente rural, sem comércio nem vida humana assinalável, para além de umas roupas dependuradas em estendais.

Precisei de pouco mais de 10 minutos para reconhecer o nenhures em que me encontrava, mas o autocarro de regresso ao centro só apareceria dali a mais duas horas, por volta das 17h30. Resignada à espera, decidi apreciar o silêncio, enquanto ia rabiscando ideias num bloco de notas.

Estava já perfeitamente instalada à sombra de uma vegetação de beira de caminho-que-não chegava-a-ser-estrada, quando fui abordada por um casal de jovens namorados que verbalizou qualquer coisa como: “Não é bom ficares aí sentada”.

Demorei segundos que pareceram uma eternidade para decifrar o conselho, até que me caiu a ficha: a minha negritude não só destoava daquela paisagem como era indesejada.

Sempre que volto a esse episódio, pergunto-me se teria captado a mensagem com a rapidez que o fiz, se tivesse nascido com o privilégio branco de poder ignorar cores.

Acredito que não. Por isso, ao contrário da mulher branca que se sente acossada pela existência do Afrolink, não pude demorar mais de cinco décadas de vida para “experimentar o facto de ser liminarmente excluída apenas e exclusivamente pela cor da pele”.

Cresci a experimentar e a resistir a isso. Continuo a experimentar e a resistir a isso. Tudo isto sem dispor de uma “zona de conforto racial” à qual possa voltar de cada vez que sinto um desconforto. Também não me posso dar ao luxo de afirmar que “felizmente não preciso disso” que estou a fazer. Nem sequer tenho o privilégio de me poder dedicar ao “que nos une e não ao que nos separa!”, porque aquilo que nos separa ameaça a minha vida e a de milhões de pessoas negras em todo o mundo.

Portanto, e infelizmente, eu ainda preciso de projectos como o Afrolink, O Lado Negro da Força, ou a recém-criada UNA – União Negra das Artes, e faço questão de explicar porquê na morada que criei.

Sei, contudo, que não basta, porque o protagonismo negro tem o poder de distorcer leituras. Por isso, querida mulher branca, dou-me ao trabalho de acrescentar que o que nos separa não é o facto de as pessoas negras se unirem, mas o facto de as pessoas brancas terem criado um sistema de classificação de seres humanos para entronizar a supremacia branca.

Acha que isso já passou à História? Talvez precise de se sentir excluída mais vezes. Ainda bem que o Afrolink pôde ajudar nesse processo. De nada!

A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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