O outro PIB
O PIB per capita é um indicador económico importante, mas a sua reificação no debate público não faz sentido e é manifestamente redutora. Ele nada nos diz sobre os níveis de desigualdade económica, sendo testemunho disso as palavras de Luís Montenegro em 2014: “a vida das pessoas não está melhor, mas o país está muito melhor".
Calculada através do rácio entre o número de óbitos de crianças com menos de um ano e o total de nascimentos, a taxa de mortalidade infantil é um dos indicadores mais relevantes para aferir o grau de desenvolvimento e bem-estar de uma dada comunidade. De facto, na medida em que reflete múltiplos fatores relacionados com as condições de vida (saúde e acesso à saúde, alimentação, rendimentos, condições de habitabilidade, escolarização, etc.), a mortalidade infantil acaba por dizer muito mais que a sua designação, à partida, sugere.
No caso português, e a evidenciar os progressos que o país alcançou desde o 25 de Abril, recorde-se que a taxa de mortalidade infantil passou do valor de 37,9‰, registado em 1974, para os 2,9‰, em 2020.
O mesmo se passa, de certa forma, com o Produto Interno Bruto (PIB), que traduz a riqueza criada pelo conjunto das atividades produtivas num dado país. A diferença, relativamente à taxa de mortalidade infantil, decorre, porém, do facto de que se assume muito mais facilmente o PIB como um indicador de síntese da economia de um país, do que a taxa de mortalidade infantil como indicador de síntese, entre outros, do seu desenvolvimento social.
Acresce, além disso, que o PIB nada diz, por exemplo, sobre o grau de repartição da riqueza e, portanto, sobre os níveis de desigualdade existentes, sendo muitas vezes inclusivamente questionada a forma como se procede ao seu cálculo e assinalado o facto de não captar elementos importantes, sobretudo numa perspetiva mais abrangente do estado de desenvolvimento de uma sociedade (ver por exemplo aqui).
Vem tudo isto a propósito da referência recorrente ao PIB per capita como sendo o alfa e ómega irredutível do posicionamento comparativo de um país. "Desde 2020, Portugal foi ultrapassado por seis países", sentenciou recentemente Miranda Sarmento; "Estónia e Letónia ultrapassam Portugal no PIB per capita", noticiava em março a CNN; "Roménia ultrapassa Portugal no PIB per capita já em 2024", afiançava o Expresso, no final de 2022.

Nenhum problema, evidentemente, em considerar o PIB per capita como, entre outros, um indicador de desenvolvimento comparativo e do grau de convergência ou divergência entre países. A questão é mesmo a sua reificação como sendo "O" indicador desses processos, a ponto de gerar a ocultação de outros, porventura até mais relevantes, enquanto expressão de síntese de dinâmicas diversas de desenvolvimento.
Suponha-se, por exemplo, que a variação da população num dado período é assumida com a mesma relevância que se atribui ao PIB. Como ficariam as recorrentes referências, em regra redutoras, aos rankings e ultrapassagens dos países baseadas no PIB per capita? Poderia continuar a dizer-se, por exemplo, que Portugal se deixou apanhar, e mesmo ultrapassar, pelos países do Leste europeu? O facto de, em regra, estes países terem quebras significativas de população na última década, não significa nada do ponto de vista da sua situação económica e social?
Não serão as dinâmicas demográficas, assentes na combinação de saldos naturais e migratórios, tão ou mais reveladoras das condições de vida e expetativas relativamente ao futuro, expressas de modo particular na evolução da natalidade e dos processos de emigração e imigração? Não correm as análises excessivamente centradas no PIB o risco de pretender que os "países estão melhor", mesmo quando "a vida das pessoas não está a melhorar", como disse sem pestanejar Luís Montenegro, em 2014, para descrever a situação da economia portuguesa?
Lembram-se da estratégia então seguida pela maioria de direita, ao abrigo da troika, empenhada num processo de "empobrecimento competitivo" que levaria o país para o "pelotão da frente", sem perceber os efeitos e os limites que, a jusante, essa estratégia implicou, tanto ao nível da quebra da natalidade como do aumento da emigração?