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O meu voto é negro

A resistência do eleitorado negro em votar é compreensível, mas não deve ser considerada irreversível. Sobretudo porque por mais desanimador que seja constatar o vazio anti-racista da esmagadora maioria dos programas políticos, essa é uma realidade com a qual podemos viver, ao contrário da alternativa de validarmos – com a nossa abstenção –, a ascensão de programas racistas.

Crónica 74
28 Janeiro 2022

“Votar negro é votar em quem?”. A pergunta desponta entre posts de divulgação da campanha “Voto Negro”, dinamizada nas redes sociais.  Para quem ainda não conhece, trata-se de uma iniciativa apartidária de apelo à participação do eleitorado negro nas Legislativas do próximo domingo, 30.

Mas por mais que a campanha assuma o propósito de combater a abstenção e mobilizar apoios contra a ascensão da extrema-direita, o que sobressai aos olhos de quem se habituou a ver apenas pessoas brancas a disputar e a decidir quem ocupa o poder é a palavra negro associada a voto.

Soará a afronta esse exercício de autodeterminação, num país em que o sistema de ensino reduz pessoas negras à condição de escravizadas ou colonizadas, e até de mercadoria? Será que a simples nomeação da existência de um eleitorado negro em Portugal activa fantasmas de lutas de libertação?

Mais do que matutar sobre os motivos que levam alguém a estranhar o repto ao Voto Negro, interessa-me observar quem se empenha em declará-lo nulo, assinando de cruz contra a campanha. Neste registo: “Lá vêm vocês com as vossas divisões, sempre a fomentar ódios. Voto é voto. Não basta apelarem ao voto?”.

Não basta. Talvez bastasse se os partidos políticos, na sua generalidade, nos vissem como eleitores, integrando nos programas eleitorais medidas concretas para combater o racismo e a xenofobia. Mas, em vez disso, identificamos apenas um par de forças, das 21 na corrida às legislativas, com propostas específicas nesse domínio, e sem receio de evocar a palavra-bicho-papão. Afinal, racismo é racismo, e não desaparece por artes de negação e omissão.

De igual modo, por mais que cada voto valha o mesmo nas urnas – independentemente da cor de pele de quem o deposita –, o jogo político sugere uma leitura diferente, acentuando o afastamento de quem já se sente de parte.

No fundo, para quê votar, se nenhuma das candidaturas parece minimamente interessada ou sequer preparada para reconhecer o impacto do racismo no quotidiano das pessoas negras em Portugal? Como votar em partidos que nem sequer percebem que há portugueses negros, e que essa condição difere da realidade da população imigrante?

Mapear e fortalecer

Esse distanciamento sobressai do resultado do questionário que o movimento SOS Racismo dirigiu às forças que concorrem às Legislativas, para avaliar o seu compromisso em relação ao combate ao racismo e à discriminação nas suas mais diversas formas.

“Até 23 de Janeiro, já após a data-limite estipulada, apenas cinco candidaturas apresentaram as suas respostas”, informou o SOS, adiantando, no seu site, que, além do PS – que remeteu para o seu programa, sem responder directamente ao solicitado –, CDU, Livre, Volt e Bloco de Esquerda também se pronunciaram.

Neste cenário, a resistência do eleitorado negro em votar é compreensível, mas não deve ser considerada irreversível. Sobretudo porque por mais desanimador que seja constatar o vazio anti-racista da esmagadora maioria dos programas políticos, essa é uma realidade com a qual podemos viver, ao contrário da alternativa de validarmos – com a nossa abstenção –, a ascensão de programas racistas.

Também por isso é preciso apelar ao voto negro.

Talvez não fosse se as listas partidárias incluíssem pessoas negras em posições elegíveis; ou se o espaço de comentário político nos diferentes veículos de informação deixasse de ser exclusivamente – ou quase exclusivamente – branco.

Talvez tudo isso fosse suficiente para não falarmos do Voto Negro. Mas ainda não é, e enquanto assim for é urgente mobilizar o voto, que entendo como ferramenta de afirmação contra processos de silenciamento e apagamento, e como uma plataforma de pressão contra o racismo estrutural que nos desgoverna.

Acredito ainda que face à ausência de dados que permitam aferir a pertença étnico-racial dos votantes portugueses, a obliteração do eleitorado negro só se poderá combater com uma demonstração de força nas urnas, construída a partir da mobilização e visibilização das nossas lideranças comunitárias.

A partir desse mapeamento e fortalecimento colectivo, não tenho dúvidas de que teremos o poder de influenciar decisões, e de marcar a agenda política.

A partir desse mapeamento e fortalecimento colectivo, tenho a certeza que os bairros de maioria negra deixarão de ser apenas material de propaganda eleitoralista e visitas de conveniência, para se tornarem centros de consciencialização e acção política.

Votar Negro é viabilizar essa mudança. É muito mais do que escolher representantes alinhados com o meu compromisso anti-racista. É fazer de tudo para tornar indesmentível a existência de racismo em Portugal, intolerável a normalização do ódio, e inadiável o reconhecimento e reparação de desigualdades históricas alicerçadas em ideais supremacistas brancos.

Votar negro é exigir fazer parte, apesar das múltiplas forças que urdem para nos pôr de parte.

Votar negro é votar em defesa da nossa democracia. Por tudo isso e tanto mais, eu voto. O meu voto é reflectido, informado, e conscientemente negro.

A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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