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O Catar é aqui

O Parlamento Europeu foi abalado pelo escândalo de corrupção que envolveu a eurodeputada Eva Kaili. A investigação não deve deixar pedra sobre pedra. As regras do parlamento sobre o lóbi são inúteis: metade dos comissários até 2014 foram recrutados por grandes empresas e centenas de ex-eurodeputados são lobistas. 

Crónica 74
22 Dezembro 2022

Nas últimas semanas, o Parlamento Europeu foi abalado pelo escândalo de corrupção que envolveu, entre outras pessoas, a eurodeputada Eva Kaili. A investigação ainda decorre, e não sabemos que outras pessoas poderão vir a ser envolvidas. Mas o estrago que provocou à reputação do parlamento é irreparável. A forma de minorar esse estrago passa por levar a investigação às suas últimas consequências, não deixar pedra sobre pedra e punir todos os responsáveis. Mas deixar a justiça funcionar está muito longe de ser suficiente.

O relato grotesco que apareceu nos jornais, com malas de dinheiro, flagrantes delitos e tentativas de fuga é digno de filme. Mas a realidade da corrupção é, infelizmente, bem mais disseminada e estrutural. Povoa um território de enormes ambiguidades morais e é endémica nas instituições europeias. Não, não há um trânsito de malas cheias de dinheiro nos corredores do parlamento ou de qualquer outra instituição. Mas há um trânsito (quase um engarrafamento) de lobistas em todas as instituições europeias. Gente que detém credenciais para andar no parlamento, falando com deputados, assistentes, comissários, beneficiando de um acesso ao poder com que o comum dos cidadãos não pode nem sonhar.

Gente que representa grandes empresas, grandes indústrias, ou seja, grandes empregadores com bolsos bem fundos. Bolsos prontos para recompensar quem tenha um bom desempenho no exercício de funções públicas. É por isso que o trânsito mais danoso para o interesse público é o das pessoas que balançam entre instituições públicas e lóbis ou grandes empresas. São valorizadas no acesso a funções de chefia em instituições públicas pelo seu percurso no setor privado. E vice-versa. Assim se fazem carreiras de sucesso.

A Autoridade Bancária Europeia (EBA) é um estudo de caso a este nível. Em Setembro de 2019, a EBA autorizou a saída do seu diretor executivo, Adam Farkas, para a AFME, um dos maiores lóbis da banca. O argumento foi pungente: não se podia impedir o homem de ganhar a vida. E compreensível. O próprio Presidente da EBA, José Manuel Campa, veio direitinho do Santander. E quando sair da EBA, irá certamente ganhar a vida.

Este trânsito beneficia da cultura dos “stakeholders”. As instituições consideram que grandes empresas e lóbis de grandes indústrias devem ser ouvidos no processo de elaboração de leis e políticas. Há toda uma cultura de proximidade, frequentemente pessoal, entre responsáveis políticos em várias instituições e lobistas ou líderes de grandes empresas. O caso dos SMS trocados entre Ursula von der Leyen e o CEO da Pfizer, em grande medida abafado, é um monumento a essa proximidade ou, para ser mais claro, promiscuidade.

Acresce que as regras que protegem a integridade dessas instituições são absolutamente inúteis. Centenas de ex-eurodeputados são hoje lobistas. Metade dos que foram comissários até 2014 foram recrutados por grandes empresas com negócios na União. E um certo Presidente da Comissão foi direitinho para a Goldman Sachs. Devia ser proibido. Mas não é. É protegido.

É por isso que a Presidente do Parlamento tem muita lata quando diz que o Parlamento e as instituições estão sob ataque. É por isso que a Presidente da Comissão tem muita lata quando diz que vai criar uma comissão de ética, ao mesmo tempo que recusa divulgar os SMS trocados com o CEO da Pfizer à comissão de inquérito COVI. A estratégia de corrupção do Qatar funcionou porque teve interlocutores disponíveis nas instituições. E o Catar está em boa companhia: as instituições europeias têm cultivado relações altamente duvidosas com o sistema financeiro, as multinacionais, a indústria fóssil ou com a farmacêutica. Não é preciso sair do continente. O Catar é aqui. 

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