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O arquitecto, a borboleta, a Pandora e a caixa dela

Assim como Zeus sabia que estava a dar a Pandora (e aos homens) um presente envenenado, também os políticos, os media e a população em geral sabem (ou deviam saber) que ao abrir-se a caixa do populismo saltam logo cá para fora os neo-fascismos, os atropelos aos direitos humanos e a consequente degradação da democracia. 

Crónica 74
8 Novembro 2022

“Manutenção é não deixar uma construção degradar-se. A princípio é só pouca coisa e, portanto, vai-se deixando andar até que se transforma numa degradação total. E depois já não se trata de manutenção mas de recuperação.” Assim falava acertadamente o arquiteto Álvaro Siza Vieira sobre a necessidade de cuidar de forma sistematizada a obra feita, de maneira a prolongar no tempo aquilo que, com o devido empenho, pode ser perene e não caduco.

Ninguém gosta de ver um edifício degradado assim como ninguém deveria gostar de ver uma democracia degradada. Utilizando a citação de Siza Vieira para me ajudar na metáfora, se substituirmos a palavra “manutenção” por “responsabilidade política” e “construção” por “democracia” vemos que a afirmação não só mantém o seu sentido como aumenta de relevância, principalmente nos tempos que correm. Senão vejamos: “responsabilidade política” é não deixar a “democracia” degradar-se. Faz sentido, não faz? E como se degrada o edifício da democracia? Da mesma forma como se degrada uma qualquer casa, com infiltrações, actos de vandalismo e abandono.

No caso, infiltrações antidemocráticas, vandalização do debate político e abandono dos direitos e deveres da cidadania. Volto ao Siza: “a princípio (pode parecer que) é só pouca coisa”, uma legitimação de ideologias anti-democráticas por parte dos media e dos próprios partidos aqui, uma invasão de populismo no debate político ali, um divórcio entre a população e as classes dirigentes acolá, e “vai-se deixando andar até que se transforma numa degradação total” da democracia.

Posso entender o sentimento de revolta, injustiça ou até abandono por parte de quem, em desespero, acredita em qualquer vendedor de banha da cobra, mas por muitas imperfeições que a democracia tenha, há caminhos que pura e simplesmente não podem ser trilhados.

Todos conhecemos o mito da caixa de Pandora, mas nunca é demais relembrar. Chateado por Prometeu ter dado o segredo do fogo aos homens, Zeus mandou criar Pandora para enviá-la à Terra como vingança. E em que consistia esta vingança? É que Pandora, apesar de ter sido criada com todas as perfeições, trazia consigo e em si uma mistura explosiva e antagónica: uma caixa que não poderia abrir sob nenhum pretexto e um incontrolável espírito curioso. E o inevitável aconteceu: a curiosa Pandora abriu a caixa e ao fazê-lo libertou do seu interior todos os males até então desconhecidos pelos homens, como doenças, guerra, mentira e ódio.

Assim como Zeus sabia que estava a dar a Pandora (e aos homens) um presente envenenado, também os políticos, os media e a população em geral sabem (ou deviam saber) que ao abrir-se a caixa do populismo saltam logo cá para fora os neo-fascismos, os atropelos aos direitos humanos e a consequente degradação da democracia. E se nada for feito a tempo, em vez de mantida, a democracia terá de ser recuperada, talvez do zero. Outra vez. Porque sabemos que a História se repete uma e outra e outra vez, já era altura de termos aprendido algo com o que se passou. Só que olhando para os Estados Unidos pós-Trump, o Brasil pós-Bolsonaro e o Reino Unido pós-Boris, países que ao invés de abrir, escancararam a caixa de Pandora do populismo, vemos que não é bem assim e os resultados estão à vista: a América foi palco de um assalto criminoso ao Capitólio com o aval do ex-Presidente, o Brasil é, mesmo com a derrota de Bolsonaro, um país tragicamente fracturado ao meio e o Reino Unido já vai no terceiro Primeiro-Ministro da sua era pós-Brexit. E a lista continua.

Temos a França a tornar cada vez mais inevitável a chegada de Le Pen ao poder máximo, a Itália a eleger sem margem para dúvidas uma Primeira-Ministra fascista, a extrema-direita a ter assento nos Parlamentos dos sofisticados países da Europa do Norte e Portugal a brincar com o fogo.

O populismo é como um rastilho que foi aceso e para mal das democracias não pára de incendiar. É uma combustão que começa discretamente num ponto do globo e pouco depois se faz sentir noutro, mas já sob a forma de um incêndio com dimensões catastróficas. É a comprovação inequívoca da teoria do efeito borboleta, segundo a qual uma pequena variação nas condições num determinado ponto de um sistema dinâmico pode ter consequências de proporções inimagináveis noutro ponto. Temos visto que não só pode, como tem, com a ajuda preciosa das redes sociais (olá Twitter versão Musk) e do insano sensacionalismo das “notícias” que amplificam o que querem segundo agendas tudo menos jornalísticas.

Voltando aos Estados-Unidos, não há nada mais inquietante que ver uma das maiores democracias do mundo a agonizar com o lastro deixado pelo bater de asas de um Presidente que nunca o deveria ter sido. Fala-se que a sua eleição foi resultado do descontentamento face ao sistema político, tenta-se racionalizar o voto de protesto, avançam-se justificações para o injustificável, mas o certo é que os cinco anos de Trump são muito mais que isso, tanto que foi já com Biden como Presidente que se deu a anulação da decisão Roe versus Wade, só para dar um exemplo das consequências da abertura da caixa americana. E quando uma borboleta bate as asas nos Estados Unidos…

Mas felizmente nem todas as borboletas são más e assim como os maus actos têm consequências, também os bons têm o poder de inspirar. Esperemos por isso que o bater de asas da população iraniana tenha repercussões positivas noutros países assolados pelo fundamentalismo. Esperemos que o despertar político de algumas nações sul-americanas como o Chile, o Peru, a Colômbia e mais recentemente o Brasil, leve outras a fazer o mesmo, pondo um termo a regimes injustos e viciados. Esperemos que o espectacular aumento de 7% do orçamento francês para a Cultura em 2023 (um total de 4.2 biliões de euros!) ajude não só os franceses a abrir os olhos, como inspire outros países a finalmente reconhecer a importância vital deste sector. Esperemos isto e muito mais porque falta acabar de contar o mito de Pandora. É que a curiosa mais famosa da História, ao ver tudo o que tinha soltado graças à sua debilidade, consegue a muito custo fechar a caixa e guardar no seu interior uma e apenas uma coisa: a esperança.

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada por:

“Imagine” de John Lennon.

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